Adriano Espínola
A face
do enigma
Em
22.12.2002
É uma grande honra para mim tecer
algumas palavras de louvor e admiração a duas figuras de minha
particular estima e amizade: José Alcides Pinto e Dimas Macedo. Por
isso, considero esta uma noite especial. Especial na verdade para
todos nós que aqui nos reunimos em torno de um homem de gênio e de
um ensaísta e poeta de primeira ordem, que a ele dedica um
livro-álbum, de bela feitura gráfico-literária, enfeixando pesquisa
biográfica, análise crítica, poesia e ilustrações, como a
simbolizar, através da beleza plástica e conteudística do volume, a
excelência da criação artística do autor de Cantos de Lúcifer.
Afirmei que esta noite é especial
também por uma outra razão que não somente literária. É que o
homenageado fará oitent´anos, em 2003, e o livro de Dimas Macedo
surge, assim, como a primeira das muitas manifestações, que se
aproximam, de carinho e reconhecimento voltados para o amigo, o
mestre e irmão em literatura, o poeta maior, José Alcides Pinto.
Esta noite representa, pois, uma
dupla comemoração: a do artista, com cerca de 50 obras, nos mais
diversos gêneros - poesia, romance, conto, ensaio, crítica, teatro -
e a do homem, que chega, glorioso, aos oitent´anos de vida. Quando
digo comemorar, quero ater-me ao étimo da palavra, que significa
memorar com, isto é, lembrar conjuntamente, tornar a memória
coletiva. Esta por certo a aspiração máxima de toda grande obra
artística, de acordo com Borges, quando participa da memória da
raça, fazendo-se patrimônio comum, com seu universo de símbolos,
significados, gestos, notas ou traços que forjam a identidade e a
capacidade de criar de um povo. Como assim ocorreu e ocorre com a
obra de Camões, em Portugal, com Walt Whitman, nos Estados Unidos,
com José de Alencar, Castro Alves e Jorge Amado, no Brasil, só para
citar alguns exemplos. Toda obra literária, quando devidamente
compartilhada, mercê de suas qualidades estéticas e de um plus
indefinível, torna-se objeto permanente de comemoração: passa a
pertencer à memória coletiva. Como é o caso, entre nós, da obra de
José Alcides Pinto.
Dito isto, louvemos a iniciativa de
Dimas Macedo, materializada neste trabalho, A face do enigma, que
exigiu o concurso de outros tantos talentosos amigos, para que
chegasse a resultado tão fino. Em primeiro lugar, gostaria de
destacar aqui o projeto gráfico, a capa e a formatação eletrônica
realizados por este extraordinário artista gráfico, desenhista e
professor, Geraldo Jesuíno da Costa, a quem o Ceará tanto deve,
nestes últimos 25 anos, ao elevar, nas oficinas da Imprensa
Universitária da UFC, o nível da produção gráfica de numerosas obras
literárias nossas, todas marcadas pelo bom-gosto, elegância e
criatividade. Como podemos de pronto atestar em A face do enigma. Um
livro que realmente dá prazer aos olhos, ao tato e ao olfato. Sim,
porque um livro graficamente bem feito é cheiroso, é sedutor no seu
formato, é elegante e suave ao toque, em tudo lembrando uma bela
mulher. Com uma vantagem adicional: podemos levar os dois para a
cama...
Também o livro contou com a
participação especial do gravurista Audifax Rios e sobretudo dos
xilógrafos Abelardo Brandão, Augusto Amaral, Eduardo Eloy, Francisco
de Almeida, Hélio Rola, Hilton Queiroz, Nauer Spíndola, Nilvan Auad,
Roberto Galvão, Sebastião de Paula, Sérgio Lima e Silvano Tomaz, os
quais, com suas criações na madeira ferida por golpes
expressionistas, ilustram com alta categoria as décimas
heptassilábicas de Dimas Macedo, em louvor de Alcides Pinto. E aí
está, quero crer, o sentido maior da participação desses artistas no
projeto, ao retomarem a tradição popular nordestina/cearense de
juntar os versos de cordel às capas com desenhos talhados na
madeira. Se é verdade que predominam na xilogravura de cordel os
temas religiosos e míticos - herança medieval - numa tentativa
inconsciente de conciliar o sagrado e o profano, configurando um
tempo mítico e visionário, marcado pela dualidade vida e morte,
sonho e realidade, começo e fim, segundo Bakhtine, os traços
contrastivos de preto e branco da xilogravura ilustram à perfeição
esse mundo e esse modo antitético de ver as coisas. Ora, no livro de
Dimas Macedo, os xilógrafos convidados se encontram não só
ilustrando, como manda a tradição, os versos cordelistas de Macedo,
mas também, por tabela, o mundo mítico e visionário, sagrado e
profano de José Alcides Pinto.
Igualmente digna de nota a
iconografia selecionada pelo autor desta obra, representando o
ambiente rural, a família e amigos do poeta nascido em São Francisco
do Estreito, município de Santana de Acaraú. Há, nesta seção, uma
espécie de fotobiografia do poeta maldito. Não só: contempla, ainda,
o resgate fotográfico de personagens que achávamos pertencentes
apenas ao seu universo ficcional. Curiosamente, as figuras de João
Firmo Cajazeiras e do padre Francisco Araken da Frota, por exemplo,
que ali aparecem, deixam de representar pessoas empíricas e passam a
compor, com muito mais verossimilhança, a paisagem física e
imaginária dos personagens Grilo Firmo e do padre Tibúrcio, tal o
poder de impregnação criadora do autor de O dragão.
Quanto à parte propriamente textual e
literária, destacam-se, no livro, o roteiro biográfico, a apreciação
crítica da obra, as décimas encomiásticas e a bibliografia do
inventor de A ilha dos patrupachas.
O levantamento da vida de José
Alcides Pinto aqui se revela minucioso, preciso e com um toque
novelesco na narrativa, de tal sorte que não sabemos, a certos
instantes, se Dimas está compondo a biografia de um personagem
fictício e lúcido, que se chama por vezes José Alcides Pinto, ou se
realiza a biografia de um homem real e louco, como João Pinto de
Maria. Pinto por Pinto, os dois se confundem, a ponto de um não
saber qual dos dois escreveu Os verdes abutres da colina. ´Eu não
escrevi este livro.´, diz um, enfático; e o outro: ´Mas quem o
escreveria senão eu?´...
De qualquer modo, a narrativa de
Dimas Macedo se mostra, a nosso ver, como o melhor esforço
biográfico realizado até hoje sobre o homem - ou o personagem ? -
José Alcides Pinto, se é que ele existe de fato, se é que existe de
se pegar, como diria Drummond a respeito de um outro notável bruxo,
Guimarães Rosa...
Em relação à abordagem crítica,
Macedo atinge momentos de grande penetração interpretativa, não
obstante o aspecto polifônico e multifário da obra alcidiana. Por
exemplo, entende Dimas classificar com propriedade em dois sentidos
diferentes a principal produção ficcional do nosso querido José: a
1ª voltada para o realismo mágico regionalista, abrangendo a
Trilogia da maldição (os romances: O dragão, Os verdes abutres da
colina e João Pinto de Maria - biografia de um louco) e a 2ª
dirigida para a introspecção psicológica, onde se situa a Trilogia
Tempo dos Mortos ( os romances: Estação da morte, O sonho e O
enigma).
Quanto à poesia do autor, Dimas
classifica-a com acerto em ´pelo menos quatro principais matrizes
temáticas´: 1ª a lírico-amorosa (20 sonetos de amor romântico, Águas
premonitórias); 2ª a pornô-fescenina (Os amantes e Relicário pornô);
3ª a épico-social ( Os catadores de siri, O Acaraú - biografia do
rio) e 4ª a existencial-diabólica (Cantos de Lúcifer), não
esquecendo de aludir a uma possível 5ª vertente: a
experimental-vanguardista, a exemplo dos livros Ordem e desordem,
Águas novas e Concreto: estrutura visual-gráfica.
No tocante às décimas, DM expõe seu
talento poético para louvar - dentro da melhor tradição popular
cordelista, acima aludida - o artista e a obra. Destacaria, por seu
poder de síntese descritiva, a seguinte décima:
Erótico e contemplativo
Exótico parece um monge
Seus versos ressoam ao longe
Seu canto é quase profético
Seu jeito quase esquelético
Lhe dá a dimensão de sábio
É um romancista hábil
Porém seu fazer artístico
Revela um poeta místico
Só no murmurar dos lábios.
Por fim, o atento autor de Leitura e
conjuntura elenca, na exaustiva bibliografia, toda a produção
literária de JAP, mencionando até o poema ´Canto da
liberdade´(1945), raramente lembrado
Meus amigos, gostaria de recordar
aqui algumas palavras, certamente insuficientes, que alinhei nas
orelhas do livro Trilogia da maldição, publicada pela editora
Topbooks, em 1999, com as quais busquei delinear o perfil literário
e humano deste agreste filho de Orfeu, ora homenageado: ´José
Alcides Pinto, na excepcionalidade de seu gênio literário, é filho
da grande mãe lunar com as águas escuras do Acaraú; centauro de luz
e sombra, cujo dorso de cristal impuro investe furioso contra o sol
e as estrelas fumegantes. Como Rimbaud, mandou para o inferno as
palmas acadêmicas dos mártires, os raios da arte bem feitinha e bem
acabada, para retornar à adolescência e à sabedoria primeira e
eterna. Ou para seu próprio nascimento. Pois, como ele diz, no seu
poema Fúria: ´Nasci premonitório e vegetal como uma ilha. E, sob a
minha espinha, há todo um alfabeto desconhecido enterrado (como um
tesouro no fundo do mar)´. Cabe a todos nós, leitores, decifrar esse
alfabeto desconhecido, dramático e belo da arte e da figura de José
Alcides Pinto´.
Posso lhes assegurar que, para tentar
decifrar o tesouro literário submerso de José Alcides, não há, - sem
desmerecer outros importantes trabalhos anteriores, como os de José
Lemos Monteiro, Nelly Novaes Coelho, Floriano Martins e de Paulo de
Tarso Pardal - não há, repito, outro roteiro tão belo e seguro
quanto este que nos oferece agora o poeta e crítico Dimas Macedo, ao
contemplar A face do enigma e generosamente compartilhá-la conosco.
* Poeta e ensaísta apresentando a obra no Centro
Cultural Oboé
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