Foed Castro Chamma
Fortuna Crítica: André Seffrin
Palavra e labirinto
09.07.2001
Foed Castro Chamma talvez tenha
sido um dos poetas mais superestimados de sua geração, sem deixar de
ser, também, um dos mais injustiçados. Superestimado ele foi,
principalmente, em fins dos anos 50 - as injustiças vieram com o
passar dos anos, e condicionaram um afastamento editorial que é,
como apontou recentemente Carlos Newton Júnior, um crime contra a
literatura nacional. Sua poesia, num primeiro momento, amedronta e
fascina, e suas preocupações de ordem filosófica podem parecer
herméticas. Só aos poucos vamos penetrando essa rede de signos, cada
vez mais próximos aos recessos líricos que a sua trama cerrada
oculta, denunciando uma índole pouco afeita a pequenos núcleos
poéticos, tão comuns na lírica contemporânea.
Antes de mais nada, vale ressaltar
que os seus altos vôos de ânimo filosófico não são de agora, e desde
cedo ele se definia um poeta com a ambição do poema-rio. O contato
com Jorge de Lima, anterior à publicação de Invenção de Orfeu, não
foi um episódio gratuito. E mais: desde os anos 50, como veremos
adiante, germinavam nele os andamentos de Pedra da transmutação
(1984). A matéria que publicou num jornal de sua cidade natal é,
nesse sentido, e por vários motivos, paradigmática:
O poema circunstancial, a meu ver,
já não encontra em nossos dias grande praticabilidade e a poesia, ou
se exacerba naquelas experiências requintadas da vanguarda, ou
retorna ao grande leito de sua origem dramática, que o romance
usurpou, e se desenvolve viva na linha difícil mas perceptível do
imaginário, cujos exemplos são a Invenção de Orfeu, de Jorge de
Lima, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Amers,
Exil, Croniques, de Saint-John Perse, Os cantares, de Ezra Pound,
The four quartets, de Eliot, etc. (...) Dentro de um esquema de
evolução do poema circunstancial para o poema maior, a minha
experiência com o poema Ir a ti é tão ambiciosa quanto com
Labirinto, pois ambos atendem a um sentido duplo e simultâneo: o
objetivo e o subjetivo se mesclam, e o que há, na verdade, é a
procura do poema maior - o poema-rio. (Irati, fev. 1966)
Na altura da experiência
“didática” (como apontou Hélio Pólvora) de O poder da palavra, em
1959, Foed já formulava aquele que seria o poema de sua vida (Pedra
da transmutação), do qual Labirinto (1967) é uma antecipação, e para
o qual Ir a ti (1969) representa não apenas um preparo, mas uma
aventura de linguagem particular, que não passou despercebida ao
hoje esquecido crítico José Batista (O Globo, 8 nov. 1969).
Mencione-se ainda que a cristalização da palavra poética em Ir a ti
não escapou também aos olhos experimentados de Fábio Lucas.
Recuando a 1953, ao primeiro
livro, Melodias do estio, temos a revelação de um temperamento
romântico que, através dos anos, sofreu alterações sem nunca
dispersar-se. O título, emprestado a Fagundes Varela, induz a erro,
cometido por um compêndio recente sob a responsabilidade de
pesquisador distraído: “melodias do estilo”. É um engano quase
sintomático frente aos caminhos que o autor assumiria mais tarde. O
poeta de 1953, alheio aos terremotos que, naquela época, abalavam a
poesia, habitava uma pátria distante na qual a poesia era uma
espécie de anacronismo, uma fatalidade. De maneira que pouco desse
livro sobreviveria quando seu autor se viu ao relento das
vanguardas. Já nos poemas formalmente claudicantes de Iniciação ao
sonho (1955), é notável a manipulação de uma rede temática e uma
apropriação de vocábulos que se tornou característica do autor.
Quanto ao livro de 1953, não foi à
toa que um poeta da mesma geração, Ferreira Gullar, confessou que a
poesia era, à época, uma descoberta de conseqüências imprevisíveis
porque, antes disso, “quando comecei a escrever - por volta dos
treze anos - pensava que todos os poetas já haviam morrido, e mesmo
assim entreguei-me entusiasticamente a esse ofício de defuntos.”
(Uma luz do chão, Avenir, 1979). O caminho percorrido por Foed, no
que diz respeito aos anos 50, não dista muito de Ferreira Gullar,
como não dista muito de grande parte dos poetas da geração. O poder
da palavra foi publicado cinco anos depois de A luta corporal
(1954), e ambos são livros programáticos. Se, no caso de Gullar,
procurava-se a reconstrução a partir da desconstrução (caso de um
poema como “Roçzeiral”, por exemplo), em Foed preponderava o verbo,
sua “aritmética de pedra e explosão”, seu fogo e ouro, proposta de
uma poesia possível, mais na linha de um Mário Faustino, bem ao
gosto de uma geração que, como se sabe, não lutou contra as
vanguardas, antes soube conviver com elas. Não vamos agora cair
novamente no bizantinismo das discussões dos prós e contras das
vanguardas dos anos 50, embora seja bom assinalar que quase todos os
poetas que Assis Brasil chamou de “geração da imagem” (para citar
poucos: Fernando Mendes Vianna, Mário Faustino, Octávio Mora, César
Leal, Affonso Ávila, Walmir Ayala e Lélia Coelho Frota), não se
opunham tão radicalmente aos concretos - como, de resto, é sabido,
os concretos não propunham nenhuma novidade, nada que já não fosse
conhecido da arte poética.
Com Iniciação ao sonho, mantendo
uma distância cuidadosa das suas leituras dos poetas românticos
(Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela e outros), Foed
caminhou para O poder da palavra, que, do título à estrutura, é uma
plataforma poética. Esse livro confirma-o definitivamente na
geração, seja porque nos sonetos da série “Chaves” o domínio da
matéria revela mais que habilidade, uma inquietante musicalidade,
seja porque alguns poemas, sozinhos, mostravam-se num nível mental
muito acima de tudo que o poeta havia escrito até aquele momento.
Mais: poemas como “O mágico”, “Arte mágica” ou “O invisível” - nos
quais o ímpeto filosófico (e o referencial emprestado a alquimia,
por exemplo) é um traço forte e marcante -, antecipam andamentos
futuros.
No tempo em que grandes poetas
discursivos, num indisfarçável desejo de cortejar as vanguardas, não
se furtaram a experimentar, inutilmente, algumas idéias
concretistas, o autor de O poder da palavra, ao contrário, apenas
procurou domesticar um espírito romântico e um surrealismo latente
que passariam a acompanhá-lo diuturnamente. Rastros
romântico-simbolistas vamos encontrar em muitos sonetos das
“Chaves”, como por exemplo no último terceto de um deles, onde
aparece “o cisne/ a se clarear nas águas da alvorada”. Nesses polos
de agreste liturgia o poeta equilibrou seu discurso, que a partir de
Labirinto passa a apresentar um compasso de extração neo-simbolista.
Ainda nos sonetos de O poder da palavra, dispostos à moda inglesa
(Shakespeare), o que sobressai é o acento elegíaco e os andamentos
musicais. O soneto! Esparsamente, escreve-se muito sobre o soneto,
mas o seu levantamento, na literatura brasileira, ainda aguarda um
historiador competente.
Todavia, se os poemas de Labirinto
prenunciam os planos reiterativos de Pedra da transmutação, também
antecipam a depuração de linguagem de Ir a ti, sem dúvida um momento
até agora pouco estudado na poesia do autor, exceção feita à rápida
análise (bachelardiana) de José Batista, referida anteriormente.
1971 é, nesse passo, um ano importante: com a publicação de O
andarilho e a aurora, que reúne sua obra até aquele momento, o poeta
recusou os dois primeiros livros, juntou os três posteriores e deu a
público, pela primeira vez, um fragmento do poema-rio que só treze
anos depois seria publicado e no qual confluiram todas as águas de
sua poética: Pedra da transmutação.
De fato, O andarilho e a aurora
encerra o percurso inicial e prepara o caminho para o livro de 1984,
cuja história remonta ao fim dos anos 50, conforme entrevista do
autor a Walmir Ayala:
Há precisamente ano e meio venho
me preparando com certos estudos, sobretudo de mitologia, para um
poema, carregado de encantações, no qual pretendo o absurdo, e temo,
mas realizarei. L’Encantation virgilienne, de Marie Desport, tem me
valido de roteiro preliminar, além de Odisséia, o Fausto, de Goethe,
a Divina comédia, a Teogonia, de Hesíodo, As metamorfoses, e outras
obras clássicas. (Jornal do Brasil, 8 ago. 1959, Suplemento
Dominical)
A mutação dos títulos desse grande
poema explica alguma coisa do longo período de amadurecimento da
idéia e a sua realização definitiva: O livro das alucinações, O
andarilho e a aurora, Geometria da sombra e por fim Pedra da
transmutação. Dez mil decassílabos dispostos em dois mil e
quinhentos quartetos. Poema órfico, mergulho numa mitologia de
revelações agônicas, denuncia um processo que se autorefere a todo
momento, numa orquestração genesíaca. Só o vocabulário de que se
utiliza suscita um estudo à parte, onde se destacam palavras-chaves
como o ouro, o ovo, a Natureza, a sombra, o sol, o cego, o duplo, o
fogo, o espelho, a pedra. A partir daí, criam-se dialogismos
internos que conduzem a um núcleo, à idéia do círculo ou do
infinito, muito embora, como quer Marco Lucchesi: “Para dizer como
os místicos, o centro de seu poema está em toda parte, embora a
circunferência não se encontre em parte alguma.” Uma construção
ciclópica que gira “nos limites da enorme pedra obscura” e que se
completa presa ao mistério do uroboro:
cuja cauda acompanha o soluçar
de círculos de ferro sem o espanto
que torna a sombra mais difícil no ar.
(...)
O seu ventre de treva gera o atrito
a repartir-se em luz, colado rente
à face do que, dividido em dois,
é círculo, e a cauda da serpente.
A poesia, para Foed Castro Chamma,
como escreveu Wilson Martins a respeito de Saint-John Perse, “é uma
criação da inteligência, é um raciocínio sobre a emoção e a
tentativa de estruturar uma língua que fosse ou seja,
contraditoriamente, poética em si mesma”. Tal qual Edgard Allan Poe,
Foed também poderia ter escrito a “filosofia da composição” de seu
poema. Mas não escreveu, de maneira que se tornou lugar comum
registrar os muitos caminhos de leitura para essa floresta negra da
Pedra da transmutação. Registre-se ainda que a regularidade métrica
e estrófica, diante da magnitude do poema, pode não passar de um
mero dado estrutural, mas é talvez fator preponderante da tendência
fatal e manifesta, em determinadas passagens, à monotonia e, às
vezes, ao exercício hermético (que poema longo escapou disso?). Esse
é um dos tantos desafios para o leitor. Tanto quanto os
conhecimentos da alquimia, da mitologia etc., que nos limitam certas
entradas, os elementos biográficos presentes em vários trechos não
devem ser desprezados. Alguns depoimentos do poeta para jornais e
revistas ajudam a elucidar esses pontos: “Precisava livrar-me de
meus demônios interiores e, no início do trabalho, fui perseguido
por toda sorte de alucinações”, disse em entrevista a Ricardo Vieira
Lima (Tribuna da Imprensa, 11 abr. 1995).
Os fundamentos da alquimia,
contudo, conduzem-nos às suas origens no estoicismo, que nos remete
a leituras da filosofia greco-latina, um referencial que pode
começar em Heráclito e chegar aos nossos dias - horizonte que as
epígrafes de Hart Crane e Hesíodo, de certa forma, acusam. Contra
tudo o que se tem dito a respeito dessa obra, creio que a sua
linhagem não estaria exatamente no Jorge de Lima de Invenção de
Orfeu, que recua ao Sousândrade de O Guesa, ao Manuel de Araújo
Porto-Alegre de Colombo, ao Bento Teixeira de Prosopopéia, ao Camões
de Os Lusíadas, ao Virgílio de Eneida, a Homero, numa regressão
conhecida - pois a Pedra da transmutação não é poema narrativo nem
um épico nacionalista.
Nessa mesma linha, paralelos com
Milton e, como apontou César Leal, com o Lucrécio de A natureza das
coisas, com Goethe, Dante e, de novo, Homero, talvez não passem de
especulações programáticas - e, como tais, só eventualmente poderão
auxiliar no esclarecimento dos vários pontos obscuros nos quais o
livro é pródigo. De fato, O Guesa, conforme anotou Fausto Cunha em
livro indispensável sobre o romantismo no Brasil, é quase todo
construído em quartetos decassilábicos - o que, vale reiterar, não
vai além de um dado técnico sem muitas ressonâncias para o que nos
compete aqui.
Por fim, nos sonetos de Sons de
ferraria (1989), o poeta prolonga a sua magia verbal ao abrir as
portas de sua oficina, seu laboratório
do lavrador de pedras, de metais,
a trabalhar com o calor das mãos
as fulgurantes ligas de uma fórmula
alquímica no forno da oficina.
vinculado sempre, e visceralmente,
à sua vivência na qual a poesia é instrumento de encantação de um
oficiante,
lavrador de pedras, de metais,
a trabalhar com o fulgor da brasa
as misteriosas ligas de uma fórmula
alquímica na obscura ferraria
conforme registra na segunda
versão desse mesmo poema. Um sinal de que a arte mágica das palavras
é contínua, um
metal precioso
do sol a rebrilhar na pele escura,
a faiscar no olhar, nas curvas breves
das filhas de hélio como belas pérolas
da noite
território de domínios
metafísicos, mediúnicos, que não permitem explicação e que
transcendem qualquer parafernália técnica:
Que os amados dos deuses tocam fímbrias
do fogo sem queimar-se também sabem
os poetas, pois eles com a luz
cresceram e coroam-se humildes
na mais santa loucura.
A partir desses sonetos que
guardam muito do intrincado musical de Pedra da transmutação,
chegaremos a essa totalidade existencial que o conjunto da obra
espelha, e podemos assim penetrar nas suas “ruínas do tempo”,
conduzidos por esse dínamo de alegorias que é o poeta, num trânsito
que não termina, pois recomeça onde
a luz é matéria
em movimento,
o sangue
é pensamento.
Pastor do absurdo, Foed Castro
Chamma trabalhou incansavelmente na filtragem de todas as suas
alucinações. Se a sua idéia era fazer com que tudo que escrevesse
tomasse o rumo da obra única e definitiva, opinião que pode nos
seduzir demasiado, é preciso dizer que esta é apenas uma de suas
leituras possíveis. É de bom alvitre desconfiar do que os autores
pensam a respeito da própria obra. Talvez na pequena máquina de
palavras de Ir a ti, permaneçam quietas algumas chaves de
interpretação das tendências fundamentais de sua obra - e não apenas
de sua obra, mas de toda uma geração na moderna poesia brasileira.
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