Foed Castro Chamma
Fortuna Crítica: Marco Lucchesi
Poesia e Alquimia
(Em O sorriso do caos. Rio de
Janeiro: Record, 1997)
Nicolau de Cusa, num
dos livros mais inspirados da mística ocidental, o De Visione Dei,
aborda, com o seu verbo de fogo, a dimensão infinita e transcendente
de Deus, onde os opostos coincidem, diluídos. Dessas páginas
magistrais, promana uma nostalgia radical do Uno, cuja face brilha
em todas as faces, "em todas as faces aparece a face das faces de
modo velado e enigmático". Para Nicolau de Cusa, o plural guarda
misteriosamente, em suas entranhas, a chama da unidade. Todo o
mistério da visão frontal.
Assim desejo iniciar a
leitura de Pedra da transmutação, esse livro impressionante de Foed
Chamma, evidenciando aquela coincidentia oppositorum que parece
atravessar-lhe toda a obra. Com efeito, Foed sente em profundeza
abissal a nostalgia da unidade. Nada mais drástico: eis o sonho de
Spinoza. O ser e o duplo. A luz e a sombra. O movimento e o repouso.
A luta dos contrários, afinal:
Em seu regaço os pássaros aninham
os bicos mergulhados em suas penas,
sonhando integrarem-se à unidade
do todo indevassável...
Mas tudo isso numa
trama paralela, iniciada e retomada com a imagem do círculo, da
serpente, do Ouroboros. Jamais lhe ocorre uma afirmação irreversível
da luz, como no "Paraíso" de Dante ou no Fausto de Goethe, segundo
seu destino radicalmente luminoso (a ewige Klarheit), de cujo drama
depende a redenção do herói. Pedra da transmutação é realmente
circular, nietzschiana, edificada sobre uma quantidade precisa de
temas, revisitados e reordenados na forma de sonata. Ou, para dizer
como os místicos, o centro de seu poema está em toda parte, embora a
circunferência não se encontre em parte alguma (centrum ubique,
circumferentia vero nusquam). Ou avançamos da sombra para a luz, do
silêncio à palavra, do múltiplo ao uno, sob o signo construtor do
albedo. Ora seguimos do repouso ao movimento, da luz para a sombra,
do eterno ao tempo, quando imperam, então, as forças terríveis do
caos. Mas a pedra -- como afirma o Tratactus Aureus de Lapide --
possui mil nomes, quase como o rosto de Deus. E, por isso mesmo, a
obra de Foed parece depender -- realimentando-se -- da própria
pluralidade nominal, de sua forma circular, de sua vaga peregrinatio
chymica:
O segredo da pedra está no rítmo interior
que a anima
Concentrada em clausura alimenta-se do espaço
em que repousa presa à dura forma
Alimenta-se do espaço
em que repousa e reclama a peregrinação química. Tal o segredo dos
segredos. Foed Chamma envereda pelo árduo caminho do
autoconhecimento. O essencial -- repetem sempre os grandes
alquimistas -- não é transmutar os metais vis em ouro. Nem se trata
do ouro vulgar mas o mistério interno da arte de produzir ouro. Diz
Foed que no interior
Lampeja o brilho, aflora a oculta luz do
fogo primordial, ouro anterior.
Paracelso define-o Homo
maior; Jung, princípio de individuação. Mas é sempre o mesmo ouro. O
poeta peregrino -- a seu modo como Dante e Goethe -- empenha-se numa
bela e estranha viagem ao si-mesmo, com todos os riscos, nas ondas
avassaladoras do inconsciente, nas inquietantes metamorfoses, que
Nise da Silveira estudou em O asno de ouro, de Apuleio. Ou Jung, no
Rosarium Philosophorum. Ainda Foed:
A unidade sombra está nos três Metais: pelo
mercúrio,
enxofre, sal, sua conjugação e multiplicação --
Dissolve-se em coágulo animal.
Da tríade, Foed Chamma
busca a arte interna, o Homo maior, sem lançar mão de ampolas ou
retortas. Trata-se da grande obra. Toda mental. O poeta e a pedra
coincidem aqui. Tudo isso numa poesia tão alta e eloqüente, numa
rede complexa de significados, numa teia de remissões, numa poderosa
música, onde se desdobra sua profunda cosmogonia.
O poeta e a pedra
coincidem. O opus alquímico e o princípio de individuação. O
processo normalmente se inicia -- para se chegar à pedra -- no
nigredo, quando a matéria ainda se encontra no estado de massa
confusa, de caos. O nigredo -- lembra a Dra. Nise da Silveira --
corresponde ao encontro com a sombra -- como a entende Jung --, onde
se entrechocam os mais diversos conteúdos. No trabalho alquímico,
para ultrapassar a sombra, é preciso lavar, separar, dividir o
material. A conquista do embranquecimento (albedo) sugere a
purificação, a retorta das projeções da sombra, embora -- continua a
Dra. Nise -- o nigredo possa retornar. Um aquecimento muito forte
transforma o albedo em rubedo (vermelho). Ambos, na qualidade de Rei
e Rainha, celebram suas núpcias, nessa etapa da união dos opostos. A
pedra é o resultado. Mas, em Foed, tal caminho é todo interno,
enraizado no eu profundo, de forma circular:
O segredo vento jaz oculto no sonho do
alquimista. O fogo gera o próprio ouro e se desmancha
em som que emite o ritmo interior da pedra.
É esse ritmo que se faz
sentir dramaticamente a cada estrofe. Música anterior ao decassílabo
e que não pode ser explicado pelo decassílabo. O ritmo da pedra é
anterior. Mas só o decassílabo - paradoxalmente - seria capaz de
emprestar-lhe uma respiração tão larga e uma unidade tão palpável.
Sim, a nostalgia do
Uno, essa face absoluta do real, essa vontade de ultrapassar a
diferença, tal é o motor de Pedra da transmutação. Mas Foed
salvou-se do abismo do ser. Do todo indistinto. Do não-singular. A
individuação, o princípio de individuação restituíram-se a si mesmo.
Ao próprio coeficiente de solidão:
(...)
No interior de cada coisa
a unidade abstrai-se e se desvenda
à visão do filósofo, do geômetra,
do poeta,que perscruta a cada passo
a pulsação do objeto, sua fórmula
estática, seu ritmo como um pássaro
consciente do vôo mas abstraído
na forma, pois não perde ao deslocar-se
a consciência, apenas ganha o espaço
ao encontro do número que é sua alma.
Como Dante, após a
Comédia. Ao encontro do número. Da anima. Ou o Angelus Silesius
quando escreve: "Deus é o meu centro, se o envolvo em mim: É então
minha circunferència, quando nele me diluo por amor." Eis a Pedra. A
Face. O Princípio.
Leia Marco Lucchesi |