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Foed Castro Chamma




A terceira Romaria


 


 

Há em José Inácio Vieira de Melo ressonância tardia do Aedo na maneira de conduzir o poema visando ao ouvinte. A passagem pelo cordel identifica-o com uma tradição poética nordestina de eminente vínculo telúrico emoldurado na década de 30 pela saga imorredoura de Lampião e Maria Bonita. Ariano Suassuna, de um lado, e Carlos Newton Júnior de outro, revigoram sob a centelha armorial do Romance da Pedra do Reino e a epopéia Canudos essa tomada de posição de José Inácio em uma poesia alagoano-baiana fulgurante, marcada diria mesmo a ferro e fogo em todos os poemas de A Terceira Romaria (Aboio Livre Edições, Salvador – Bahia, 2005).

Hildeberto Barbosa Filho no prefácio à edição que traz o apoio do Governo da Bahia discorre sobre “as pulsões vitais dos vocábulos” ao apresentar A Terceira Romaria. A essas pulsões o leitor se detém seguro de que o poeta “sobe a pedra, vai para o alto”, como a cabra (p. 73), busca ali o pedestal, “onde estão o menino e a arte” a contemplar “os olhos daquelas línguas”... As vozes que ouve dizem, “preciso prosseguir”. A metáfora ou pequeno mito na acepção crítica de Franklin de Oliveira é a algaravia do poeta ao rasgar a violência com a bala que dois loucos disparam,“decifrando os segredos das cavernas”. (...), “as tranças azuis de uma poça, ou gota, ou nuvem.”. O vinho é o “sal do mar” dos olhos a inscrever a verdade. Uma pingueira precipita o poeta a lonjuras de um espelho onde a sombra lava os “pingos do sol “ . As plagas dos sertões, o parir do sol, o seixo das estradas e o informe são o labirinto de “O homem da estrada”, p. 30.. “Na boca da noite (...) sou eu quem sorri.” Um cavalo montado na ventania/ o candeeiro aceso pelo homem/ a orquestra das cigarras/ são ingredientes de um “Poema obscuro” construído de madrugada por falta do que fazer, confessa JIVM. “Força verde” do Juízo Final (...) são os “Caramujos” de Manjerona, Paixão, Fachada, Meia-Noite, a ouvir o mar. Em “Tradição” p. 36, a bezerra da Paixão é ferrada por Zé Inácio. Em “Nuvem passageira” (...) um cavalo negro galopa pelos campos azuis. É um dragão cuspindo fumaça, conclui para mais adiante.o poeta confessar que sente “a chuva de leite nos olhos, tem as mãos encardidas de leite, entende-se com as beldroegas (p. 38) . “peitos brutos da brita” é melhor do que “se ordenhar” em “êxtase orgástico”. A figura de “Ciço Cerqueiro”, por outro lado, e a força da coalhada, são o resumo do “Sertão” (p. 39) em um desenho que lembra os carvões de Goya.

José Inácio Vieira de Melo, em descontraída alusão à metafísica da dualidade, díada do ser na negação, que Hegel aborda na Lógica e na Fenomenologia do espírito, ao referir-se à realidade, se confessa “Peregrino de mim mesmo/ no meio da travessia”. A centelha do azul da infância está na brasa da lembrança da tarde queimada no “meio do tempo”. A lua é um voyeur da deusa morena e dos gemidos de cantigas dos deuses. A mudez do urubu é em “forma” de canto, “Disritmia” é vislumbrar o silêncio na menina de teus olhos. Há uma tautologia em meio a tantas metáforas contundentes: “os oráculos não se enganam” (p. 52). Tâmara, sâmaras, cântaros, ancas, tetas, punhais, bodas, são termos a unir Granada de Lorca ao mundo do Sertão nordestino. O galo de sangue de fogo adivinha a beleza que o poeta decanta ao evocar o “bailador gitano.”, p. 54

Em “Toada de Despedida”, a certeza de atemporalidade sobrepaira na simultaneidade virtual de um registro a denotar o Acaso de Um lance de dados mallarmeano. “Brasas do Sol” é o lugar do poeta na decantação do agreste. Suspenso num suspiro, deita-se debaixo do pé de algaroba esquecido das “chaves” e das “palavras”. O fugaz é eternidade na pedra que o poeta pisa e o arvoredo brota, afirma (p.66/7), tal a palha da eterna fogueira de um “eu que és tu e tu és eu”. O mundo é o acender uma luz e revelar o lugar ao filho do Sol, Ígneo – Ignácio – Inácio.

Hildeberto Barbosa Filho escava a “metalingüística do concreto” na poesia nordestinada de JIVM, visceralmente comprometida com o Mito. O “chão rachado” é “solo sagrado”. Um silêncio de fogo fala por José Inácio, “silêncio plural a abrasar as palavras”. “Carotes de lama são as águas” da “Seca”, p. 82, “espelhos d´água e pratos fartos” são a esperança. A água canta loas, o rio acalma. O poeta agradece “ao único Deus qualquer”. No “Jardim das Algarobeiras” os pássaros cantam, a vaca muge, o cavalo relincha, a rã coaxa. (....) O galo inaugura o dia, o vento é andarilho.

Fiat lux: (p. 97.), repitamos, acrescentando-se que no brilho das metáforas de JIVM resplandece um deus. Ao mirar a roça de estrelas o sono é sereno ao pastor peregrino no “Deserto” a buscar o silêncio do corvo doido frente à “Zoada” que o aflige, p. 103. O verso tem leveza de folha. A poesia é salvação. “Um mar de vidro no espelho nos separa”, conclui o poeta. Em aromas da rosa da “Pastora”, José Inácio parodia uma antífona. “A Sagração do Pecado” é “malícia silenciosa” a investir contra Menelau, Urias, Lot, Teseu, José. Quanta lembrança bíblica sugere a doçura do Amor. Em “Decifração de Abismos” está o amortalhar do gênio, p. 117. O menino (...) reconhece-se na “Ave”. O chocalho dos deuses chama o homem à cruz da paixão rumo ao nada, “à verdade de lugar nenhum”. “A morte promete jardins” ao brilho dos cacos de agora, p. 122. “O pó da estrada é o único fim” à boca escancarada a grafar com pena e tinta as palavras. A poesia marca a ferro e fogo, repito, a alma de José Inácio Vieira de Melo.

Tal à leitura acompanhando Hildeberto Barbosa Filho no prefácio a A Terceira Romaria. No núcleo de “O Universo da terra e da origem” não se esgotam as parábolas de uma “romaria lírica entremeada do topos “sagrado”. Nos arredores de uma geografia rural” está a “memória poética” originária de Olho d´Água, terra natal de José Inácio. Ribeira de Traipu, Maturi, Cerca de Pedra, correspondem a uma geolírica repleta de um fulgor estilístico que enriquece a poesia brasileira contemporânea.

A projeção simbólica de “Bodas de Sangue” permeia a fala concreta do amoroso do Sertão. “Filho do Sol”, José Inácio Vieira Melo é inesgotável, como o João Cabral de “Uma faca só lâmina”. O poeta da poesia identificada com a vida está na sedução dos vocábulos, afirma Hildeberto Barbosa Filho. Imagens vertiginosas, acrescento, emolduram a realidade à espreita do canto em A Terceira Romaria.


Foed Castro Chamma é poeta e ensaísta. Publicou, entre outros livros, Pedra de Transmutação (Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, 1984), Navio fantasma (1999) e Antologia poética (2001).
 



José Inácio Vieira de Melo
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11/07/2005