Francisco
Perna Filho
MANOEL DE BARROS
Abrindo fendas com o corpo
FRANCISCO PERNA FILHO
Especial para o Jornal de Poesia
“Há muitas maneiras sérias de não
dizer nada,mas só a poesia é verda-
deira.
(Manoel de Barros) |
Por mais que se queira esquivar, não se pode falar em literatura sem
buscar a sua inserção (mesmo que inconsciente) em um determinado
contexto: histórico, político-social etc. João Alexandre Barbosa no
seu livro As Ilusões da Modernidade assim nos fala:
“(...)a história do poema moderno nada tem a ver com a descrição de
seu apogeus e declínio: é antes uma história que só se desvela no
movimento interno de passagem de um para outro poema.”
O que João Alexandre quer nos dizer é que no fazer poético existe
uma imbricação de muitas vozes ao longo do tempo e que só são
percebidas a partir de um desvelamento do poema no seu processo de
diálogo com o autor-leitor. E é nesse diálogo que irá se estruturar
a poesia de Manoel de Barros, enriquecida pela alma criadora dos
seus predecessores, os quais rompem com os cânones ultrapassados
para estabelecer traços definidores da poesia moderna, como a
subversão da linguagem, o desregramento do sentido, a desumanização
e dispersão do Eu empírico. Traços fundamentais na construção da
novidade poética desse cantor efetivo das coisas do Pantanal.
No presente trabalho, buscarei evidenciar os elementos supracitados,
caracterizadores da poesia barreana, bem como as relações que este
poeta estabelece com o substrato pantaneiro, elevando o seu
bestiário a uma representatividade poética, plurissignificativa do
ponto de vista imagético, enfatizando as manifestações da linguagem
nas suas possibilidades eróticas e, ainda, apontando a presença
criadora de Eros na sua constante luta com Tanatos:vida e morte.
Para esse estudo adotarei, sempre que o autor estudado for citado,
as iniciais do seu nome (M.B.), bem como as das suas obras que forem
mencionadas, ficando, portanto, assim relacionadas: G.E.C.
(Gramática Expositiva do Chão); P.C.S.P. (Poemas Concebidos Sem
Pecado); F.I.(Face Imóvel); P. (Poesias); C.P.U.P.(Compêndio Para
Uso dos Pássaros);M.P.(Matéria de Poesia);; A.A.(Arranjos para
Assobio); L.P.C.(Livro de Pré-coisas); G.A.(O Guardador de Águas);
L.S.N.(Livro Sobre o Nada); L.I.(Livro das ignorãças).
Na construção da sua poesia, M.B. dialoga com Arthur Rimbaud, Oswald
de Andrade, Raul Bopp entre outros, ao passo que vai trilhando por
caminhos, aparentemente banais, mas que se revelam sinuosos,
profundos, num aspecto fragmentário e que vão se estruturando na
desestruturação das construções já cristalizadas e gastas. Como
poderemos comprovar no Livro das Ignorãças:
Em casa de caramujo até o sol encarde
(L.I.)p.25
Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal.
(L.I.)p.25
O autor retoma construções simples, gastas no aspecto semântico e
recria a partir das mesmas um manancial imagético, campos
plurissignificativos.
O primeiro verso pode nos remeter a construções do tipo:
Em casa de ferreiro espeto de pau (adágio popular)
Já o segundo não foge à regra:
Lembro de um papagaio repetindo as palavras naquele quintal.
Construções, que do ponto de vista poético nada representam, ou
seja, não trazem nenhuma novidade significativa.
M.B. Elege uma linguagem onírica, fragmentada; rica em nuances
surrealistas, que escandaliza pela vivacidade das suas imagens, como
no livro Matéria de Poesia:
(...) saudade me urinava na perna
Um moço de fora criava um peixe na mão
Na parte seca do olho, a paisagem tinha formigas mortas(...)
(M.P.)p.196.
Ou ainda, em Arranjos Para Assobio, de composição cubista em que os
blocos semânticos são justapostos, permitindo leituras em vários
planos, onde a única lógica existente é a poética:
(...)Nos monturos do poema os urubus me farreiam.
Estrela é que é meu penacho!
Sou fuga para flauta e pedra doce.
A poesia me desbrava.
Com águas me alinhavo.
(A.A.)p.203.
Enlevado pelo seu poder criador, pela sensibilidade de sua
percepção, M.B. libera a sua expressão cheia de plasticidade e com
isso a sua poesia vai ganhando formas, passeando pelos recônditos do
homem pantaneiro, ultimado pelo enlace com uma natureza prenhe, que
anseia revelar-se como organismo vivo, pulsante e que traz em si o
grito de insetos e larvas...um mundo nunca antes revelado, visto de
baixo:
(...)No oco do acurizeiro o grosso canto do sapo é contínuo.
Aranhas caranguejeiras desde ontem aparecem de todo lado.
Dão ares de que saem do fundo da terra.
Formigas de roseiras dormem nuas.
Lua e árvore se estudam de noite.
Por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se
preparando
para nascer.
Todo vivente se assanha.
Até o inseto de estrume está virando.
Se ouve bem de perto o assobio dos bugios na orla do cerrado.
Cupins estão levantando andaimes.
(L.P.C.)p.235.
O poeta matogrossense, como ser criador, vai revelando a
multiplicidade de vidas que habitam o pantanal e que traduzem a
força criadora de Eros em sua constante luta com Tanatos: morte,
traçando a conduta do ser no equilíbrio natural, já que para a
sobrevivência de uns se faz necessário o desaparecimento de outros.
Como nos fala Georges Bataille:
(...)Os que se reproduzem sobrevivem ao nascimento do que eles
geram, mas essa sobrevivência não é senão um sursis. Um prazo é dado
aos recém chegados, mas o aparecimento destes é a prova de um
desaparecimento dos predecessores.”
Esse sursis de fala Bataille é ricamente mostrado no poema Agroval,
onde a relação de trocas que se estabelece – no processo de
multiplicação – entre os seres é bem caracterizada:
Agroval
Por vezes,nas proximidades dos brejos ressecos,
Quando as águas
Encurtam nos brejos, a arraia escolhe
Uma terra propícia,
Pousa sobre ela como um disco, abre
Abre com suas asas uma cama,
Faz chão úbere por baixo, e se
Enterra.
Por baixo de suas abas lateja um
Agroval de vermes, cascudos, girinos
E tantas espécies de insetos e
Parasitas, que procuram o sítio como
Ventre.
E a cabo de três meses de trocas e
Infusões,
A chuva começa a descer...e a arraia
Vai levantar-se.
Seu corpo deu sangue e bebeu.
Na carne ainda está embutido o fedor
De um carrapato.
É a pura inauguração de um outro
Universo.
(L.P.C.)p.232-4
M.B. funde o adjetivo agro, que quer dizer: acre, escabroso, com o
substantivo val, forma apocopada de vale e forma o título do seu
poema: Agroval, portanto um vale acre, escabroso; difícil de se
imaginar que ali haja vida, que possa acontecer algo tão misterioso
como essas trocas entre animais. O Poeta, ser astuto, refletindo a
energia criadora de Eros, traz à tona as coisas ínfimas, ordinárias
e com elas reinventa a natureza, criando espaços que fogem ao
pitoresco, ao superficial fotográfico, como ele mesmo afirma a José
Geraldo Couto – enviado da Folha de S. Paulo – que o entrevistara:
(...)É evidente que não cabe a nós inventar o mundo mais do que está
inventado.
para ter algum sentido, você tem que fazer, através da palavra, um
outro mundo.”
E acrescenta:
“Então, para que se invente um mundo novo, é preciso que a gente
transfigure, em vez de copiar.”
E é na feitura de um outro mundo que M.B. nos apresenta um homem nas
suas múltiplas faces: entranhado nas coisas do chão, participativo
da realidade pantaneira, identificado com o desejo natural dos
bichos do Pantanal e revelado nas pulsões eróticas destes, como
veremos a seguir:
(...)Em passar a sua vagínula sobre as
pobres coisas do chão,
a lesma deixa risquinhos líquidos...
a lesma influi muito em meu desejo de
gosmar sobre as palavras
nesse coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma
Esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma
Pedra a lesma escorre...
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.
(G.A.)p.293.
M.B. concentra as suas imagens no que ele nomina, substantiva,
antropomorfiza, como é o caso da lesma: animal quase sempre
asqueroso, gosmento, marginal, que vem acompanhado de um caracol;
por isso um duplo, como o é o poeta, que vai cavando espaços nas
pedras, abrindo fendas com o corpo...empreendendo-se erótico na
linguagem que adota. Para M.B. a lesma assim é definida:
Lesma, s.f.
Semente molhada de caracol que se
Arrasta
Sobre as pedras, deixando um caminho de
Gosma
Escrito com o corpo
Indivíduo que experimenta a lascívia do
Ínfimo
Aquele que viça de líquem no jardim.
(A.A.)p.215.
Assim como a lesma, os cascudos, o vasto bestiário pantaneiro, numa
relação especular com o poeta, tornam-se matéria poética, liberam
pulsões eróticas, empreendem-se figurativas, na acepção bartheana,
plurissignificativas no momento em que se fundem com a natureza:
“(...)Por baixo das cascas podres, dizem,
esses cascudos metem. Tais
informações foram
sempre dados por devaneios, por indícios, por
força de eflúvios – A partir da fusão com a
natureza esses bichos se
tornam eróticos. Se
encostavam no corpo da natureza para exercê-la.
E se tornavam apêndice dela.”
(G.A.)p.284.
Sobre esse assunto, no livro Erotismo e Literatura, Jesus Antônio
Durigan assim concebe o estabelecimento do erótico:
“(...)O erotismo, se assim podemos dizer,
resultaria de um conjunto
de relações ligadas ao
princípio do ou decorrentes do princípio da
realidade, de cujo inter-relacionamento se
configurariam os lugares
dos sujeitos. Esses
lugares marcados pela falta, pela necessidade,
corresponderiam aos espaços dos sujeitos
mediatizados e orientados
para a consecução do
prazer, a supressão da necessidade, suas
atuações,
seus papéis, no espetáculo erótico.
É interessante observar como o poeta, através da linguagem, vai
tecendo esse conjunto de relações, de que fala Jesus Durigan,
significativas que irão configurar o texto erótico:
Uma palavra abriu o roupão pra
mim
Ela deseja que eu a seja.
(L.S.N.)p.70
Já para Roland Barthes, em O Prazer do Texto, referindo-se sobre o
lugar do erótico no corpo, na cultura e na palavra, assim o define:
“(...) Nem a cultura nem a sua destruição
são eróticas; a fenda
entre ambas é que se torna
erótica”. E acrescenta: O lugar mais
erótico de um
corpo não é o ponto em que o vestuário se entreabre?
O que se pode interpretar dessa fenda é que ela é a novidade
significativa, que, no caráter do inesperado, faz vir à tona a
novidade poética como força da atuação do sujeito no desejo de
revelar-se...do vir a ser. É a linguagem como força reveladora, como
veremos:
“A terapia literária consiste em
desarrumar a linguagem
a ponto que ela expresse nossos mais
fundos desejos.”
(L.S.N.)p.70.
M.B., no conjunto de sua obra, busca a expressão mais pura,
fecundada no seio de uma natureza muitas vezes desconhecida,
anônima, mítica...mas louca por revelar-se. Uma natureza que fala
para quem sabe ouvi-la...uma natureza que também é linguagem, como
afirma Mikel Dufrenne no seu livro O Poético:
“A linguagem é de per si natureza, mas é
uma natureza que fala e que
inspira, testemunha e
expressão, diremos, de uma natureza naturante
que
por si mesma nos fala.” E acrescenta: “Se o poeta
trata a
linguagem como coisa natural, é talvez
pressupondo uma natureza
falante. É em todo caso
respeitando a função semântica da linguagem,
elevando ao máximo seu potencial expressivo; esse
potencial será
tanto mais elevado quanto mais a
palavra for restituída à sua
natureza e reconduzida
à sua origem.”
E foi assim, que, seduzido pela Linguagem-natureza” e pela “natureza-naturante”,
busquei fazer uma reflexão crítica sobre o Poeta do Pantanal e nele
descobri um menino levado, que brinca com as palavras, terapeutizado
pelos seus delírios verbais; congraçado pelas antíteses de
Baudelaire...quando, na pretensão de obter sabedoria vegetal, chega
ao criançamento das palavras e abre um descortínio para o arcano.
Francisco Perna Filho
framper@terra.com.br
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