Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Fernando Py




Resenha: A Torre de Babel



 

O episódio da torre de Babel, na Bíblia (Gen. 11: 1-9), indica, ente outras coisas, que o espírito empreendedor do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, estava possuído do pecado do orgulho. Esse orgulho manifestou-se de modo insólito: pretenderam os homens erguer numa planície uma torre tão alta que seu cume atingiria o céu. O que poderia ser homenagem, revelou-se, aos olhos de Deus, prova de um orgulho inominável; assim, para castigar esse orgulho, Deus fez com que os homens deixassem de falar a mesma língua, e de tal forma confundiu-os em suas comunicações entre si que, impossibilitados de continuar a obra monumental, os homens se dispersaram por toda a terra.

Trata-se de uma parábola; primeiro, mostra a impossibilidade de atingir o céu por meios materiais; diversamente de vários animais, como a maioria das aves, muitos insetos e os morcegos, p. ex., o homem não pode voar por sua própria natureza. Segundo, atingir os céus seria, no caso, não uma homenagem e sim dar mostras de soberba, tentando igualar-se a Deus; terceiro, e é o que nos interessa mais de perto neste artigo, um empreendimento dessa natureza exigiria comunicação pronta e perfeita entre as pessoas envolvidas. Assim, foi embaralhando essa comunicação, que Deus evitou a consumação da obra e fez com que os homens — e seus idiomas — se dispersassem sobre o globo.

Não cabe aqui esmiuçar os diversos aspectos desse episódio, mas apenas chamar a atenção do leitor para a maneira como os antigos hebreus procuravam explicar a origem e a existência de tão variadas línguas entre os homens. De um modo geral, a idéia de “babel” está ligada à noção de “confusão”, de “incomunicabilidade” e esse tema está na raiz do livro de poesia de Gabriel Nascente, intitulado justamente A torre de Babel (Goiânia: Editora Kelps, 2000, 616p.).

Apesar do tamanho enorme, ou talvez devido a isso mesmo, o livro de Nascente não se compõe de um único poema, ou seja, não tem a unidade estrutural de um épico do tipo da Eneida e Os Lusíadas, nem abrange um corpus amalgamado, como Divina Comédia, p. ex. Também não possui a unidade épico-lírica da Invenção de Orfeu. Cito estes poemas não só por serem paradigmáticos em si, mas por representarem uma espécie de fonte, de veículo poético para o autor, sobretudo o poema de Jorge de Lima, com o qual, aliás, A torre de Babel tem diversos pontos de contato.

O conjunto se compõe de grande número de poemas, divididos em quatro partes denominadas “Livros”. Dessas partes, as de número I e III são as mais substanciosas, enfeixando praticamente todos os poemas do volume, e intituladas, respectivamente, “Fardos” e “Dardos”. Nessas duas partes principais se concentra quase toda a obra da Torre.

Escrevi acima que o livro não possui a unidade estrutural que observamos nos poemas épicos. Porém, a própria lida com a linguagem, a palavra, uma certa obsessão de formular uma poética baseada na palavra e seus significados já respondem pela unidade do conjunto — ainda que não estrutural — e Gabriel Nascente desenvolve os poemas e as partes do livro com um critério visivelmente ordenador, mesmo caótico na superfície. Afinal, a Invenção de Orfeu também é um poema aparentemente caótico, cuja ordenação não se percebe de pronto. Algumas imagens de Nascente mostram sua visível preocupação com o trabalho de organização de seu caos: “A palavra é meu gatilho: / dispara poesia.” (‘Périplos da palavra-I’, p. 32).

Aliás, o título desse poema também indica o valor da palavra em si para Nascente, e volta e meia o poeta está se referindo à palavra, à linguagem, à poética do poema e do livro em conjunto, ao trabalho de fazer poesia a partir de sua matéria-prima, a palavra. Pois, na superfície, talvez o leitor mais desatento não perceba esse trabalho de artesão do poeta, não enxergue o cuidado no acabamento formal, ainda que, por vezes, em alguns raros poemas, o próprio Nascente deixe a poesia de lado para formar aforismos ou tercetos da mais pura prosa. Na imensa maioria dos textos, deparamo-nos com uma poesia forte, questionadora, irritante e irritada, vertiginosa, livre, de quem não se detém diante de quase coisa alguma, inquieta, ora sussurrante ora em voz bem alta, como a própria vida que estua sob a forma de signos alfabéticos.

Também disse acima que A torre de Babel possui pontos de contato com a Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Um e outro são poemas longos, em grande parte erguidos sobre imagens e metáforas, cuja ampla funcionalidade ainda virá a ser plenamente estudada. No caso da Torre, essas imagens mostram, principalmente, a preocupação do poeta em recriar termos, infundir-lhes vida nova, e assim regenerá-los para a poesia. Num dado trecho do longo prefácio que escreveu para o livro, Gabriel Nascente diz: “O mito deu a palavra. Eu dei a vida. / Espalhei a chama do meu espírito por cada verso desta obra...”. Não importa, no caso, a inocente mostra de orgulho de quem ergueu, sozinho, uma nova torre de Babel, feita de palavras e não de degraus e/ou pavimentos. O importante é reparar a consciência do poeta, sua nítida noção do trabalho realizado. Por isso, principalmente, podemos ver na sua Torre de Babel não a soberba de alcançar os céus e sim o seu amor à poesia, o entregar-se meses a fio à construção de um imenso painel poético que pouco deve (ou até nada) à poesia brasileira de todos os tempos.


[Poiésis - Literatura, Pensamento & Arte - nº 89 - agosto de 2003]
 



Gabriel Nascente
Leia a obra de Gabriel Nascente