Do Agrimensor
e
da
serpentente dominada
44. Francisco: Voltemos ao poema,
ao Tirinete de Abrir, por que a referência, no final, ao Agrimensor?
Não teria sido mais adequado ao Arquiteto, o Grande Arquiteto, da
Maçonaria?
SF: Sem dúvida, o arquiteto é
importante na, digamos, poesia sacerdotal. Contudo, antes de
construir, há de demarcar, traçar limites, esquadrinhar,
esquadrejar. É a fundação, a requerer uma tarefa de agrimensura. Os
riscos de Ro-ma, a morte de Remo, por Rômulo, fronteiras. A linha do
Jaboc, o registro das fronteiras em Juízes. É verdade, na fundação
do humano, o agrimensor chega primeiro. Um pequeno detalhe: onze
anos depois, no prefácio já referido ao livro de Virgílio Maia, é
que verbalizo a importância do agrimensor: «O catálogo das cercas.
Somos terra e cercas. Daqui para frente, não! Um risco no chão e se
levantam marcos.»
45. Francisco: Por que antes de
socorrer a Comadre, a necessidade de dominar uma serpente? O que
significa, do canto primeiro?
SF: É um canto iniciático, um
episódio verdadeiro. Quinze, dezesseis anos, morava na fazendola
Catuana, às margens do Rio Macacos, um riachote que “aparta” (seca),
mas termina de chover. Faz-se a cacimba do gado (e também das
gentes) no leito do rio, na areaia. Na época das chuvas, a água
rasa, superficial, mas vai afundando à medida que o verão estica.
Pois naquele dia, em companhia de outro adolescente, Mitim, uns 16,
recavávamos tudo, na operação conhecida por baixar o pau da cacimba.
46. Francisco: Baixar o pau?
SF: Sim, isto mesmo. Uma rampa,
chamada praça, com uns vinte metros de extensão por uns seis de
largo, por onde o gado desce até a água. A cacimba é cercada, se não
gado destrói tudo, pisoteando, atropelando, esbarrando, caindo. E,
no final da rampa, mais uma cerquinha, deixando apenas uns dois
palmos de espelho d’água, o suficiente para a rês enfiar a boca e
beber. Mas há de manter um anteparo, para, quando o gado descer, não
entupir a água com areia da rampa. É o “pau da cacimba”, uma madeira
roliça, de bom volume, escorada firmemente com pequenas forquilhas.
De uma lado do pau da cacimba, em direção à rampa, areia; do outro,
água.
47. Francisco: Um serviço
pesado, não?
SF: Muito! É necessário, várias
vezes durante o verão, recavar tudo, aumentar o rampado da praça e,
ao mesmo tempo, baixar o pau da cacimba para o novo nível da água.
Um serviço para gente nova, nós, ainda imberbes, mas taludos. No sol
do sertão, o dia inteiro cavando e jogando areia em grandes pazadas
para os lados, vapo, vapo, lá em cima, no barranco. Sem camisa,
suando muito, bebendo água dali mesmo, da água que a gente cavava,
guardada numa cabaça, na sombra da oiticica, que ninguém é doido
para beber água quente. Era de tardezinha, havia eu saído para abrir
a porteira e trazer o gado que, sedento, esperava há horas o momento
de beber. Quando ela chegou.
48. Francisco: Ela quem? Quem
chegou?
SF: A serpente! Eu já havia soltado
a primeira leva para beber, quando o Mitim gritou, assombrado, em
estado de choque. Corri para acudir. Mitim estatelado, paralisado,
hipnotizado nos olhos da cobra. Ela já estava lá dentro. Descera
para beber, ou tomar banho, se é que cobra toma banho, acho que
toma, mas se assustou com a presença dele. Encurralada entre a água
e as laterais da cacimba. Soltava botes no vento. A língua bífida,
ligeira, no ar. Imensa. E o chocalho, tinindo e retinindo! Era uma
cascavel. Toda apatacada de um amarelo claro e mais escuro, como é
da lei e da estampa daquelas serpentes. Fêmea, no cio, assim
disseram os Piauís, Pedro e Henrique, nossos vizinhos mais velhos,
depois de especularem sobre o chocalho, “meio deitado”, que, no
macho é “em pé”. E a cloaca, túrgida, únida, avermelhada. Pronto, a
cobra estava no cio! Mais valente e mais venenosa! – disseram os
Piauís. E se benzeram.
49. Francisco: E o que
aconteceu? Alguém mordido?
SF: Mitim não dava um passo. Nem um
ai. Se a cobra viesse para cima dele, era morte certa, que ele nada
faria, talvez até ajudasse a mordê-lo. Peguei uma vara da cerca,
tudo muito ligeiro. Eu já sabia que, em matéria de cobra,
bastava-lhe uma paulada bem firme no espinhaço, que ela, a cobra,
escambichada, com o espinhaço partido, não sairia mais do lugar.
Assim fiz: com todas as forças do universo, ajuntando as duas mãos
na vara, bem no meio da serpente: vaaáaapo! Espinhaço de
cobra para que quero!
50. Francisco: Matou ou não
matou?
SF: Matou coisa nenhuma! Aí foi que
a serpente danou-se a dar botes. No seco, no vento, na sombra, no
ar. Até na direção da lua dava botes. Era um crescente, já
despontando, de tardinha, no assombro do fim da tarde. Ai do cristão
que chegasse perto! Ela, escambichada, a espinha quebrada por conta
da paulada, não conseguia perseguir para atacar. Doida para atacar!
Ciscando! Perversidade absoluta, de que muito me arrependo, insultei
com a cobra. Zombei. Isto não se faz! Então...
51. Francisco: Então o quê? Ela
atacou, mordeu, picou?
SF: Não, que ela, bicho treloso,
sabia que a vara não era coisa de morder. Eu lá, insultando. Com a
vara, pra lá e pra cá, na boca dela, sapateando, zombando. Ela fez
pontaria no meu calcanhar. Arrastou de lá, tal qual a Comadre, um
giro absoluto de todos os graus do transferidor, quase que trouxe
consigo a parte recém-aleijada, da pancada, e vaaáapo, no meu
mocotó! Saltei no vento! Lá longe, um salto grande. Era jovem. Se
fosse hoje, com este barrigão, não teria saído do canto. Estaria
morto!
52. Frandisco: Foi atingido?
SF: Não! Ainda não! Era o Mitim, o
susto era com ele. De joelhos, pedia, aos berros, por todos os
santos do mundo, sobretudo por São Francisco do Canindé – ele, até
que enfim conseguiu falar alguma coisa – que eu matasse logo aquela
fera, se não o companheiro dela haveria de vir, quem sabe, à
traição, pegando a todos nós, inclusive as reses que ali estavam,
doidas para beber, mas recuadas, com medo. O gado sabe, o gado
“sente”. Até o bicho bruto tem medo. Quem não tem?! Então, havia de
cobri-la de pau! Assim fiz. Mas na intenção de lhe aproveitar
chocalho e couro, procurei-lhe a cabeça. Morreu.
53. Francisco: Aproveitar o
couro? Não seria perigoso?
SF: Sim, e muito! Se escorregasse a
mão e batesse numa das presas, tiro e queda, era cair morto, que a
presa da cobra “morde”, ainda que ela esteja morta, todo mundo sabe
disto. O ferrão da abelha também. E das larvas de abelha. Quem se
meter a comer um favo de mel de enxu ou capuchu, precisa ter
cuidado. Pode ganhar uma ferroada sem saber de onde. Ela, a larva
amoitada lá dentro, coberta com uma capinha que parece mel, bem
clarinha. Assim a cobra! Por isto é que a gente usa, nos matos,
alpercatas de solado de pneu, bem grosso. Se pisar descalço numa
carcaça e for atingido pelas presas da cobra, pode encomendar a
alma, que nem ele dá jeito. São Bento, o protetor dos ofendidos de
cobra. Nem ele! Se chegar perto, também morre, o santo!
54. Frandisco: E o couro?
SF: Eu disse: Mitim, vamos tirar o
couro. Dá um bom dinheiro. E a banha, vamos também tirar, é um ótimo
remédio para garganta. Sim, também para as juntas de reumatismo. Ele
disse que não. Eu disse que sim. Peguei a serpente pelo rabo, a
cabeça pingando, a boca arreganhada, frouxa. As presas, imensas, com
um leite amareloso na ponta, uma gota grossa em cada uma. A morte! O
retrato da morte. Um pescoço ruim de cortar, liso, frio, pegajoso,
de escorregar.
55. Francisco: Cortou ou não
cortou?
SF: Cortei. Um golpe rápido, de
força plena, daqueles em que a gente praticamente arranca o braço,
de tanto esforço. Com a faca peixeira, sempre bem amolada, e tudo se
resolveu num apartar inequívoco: a cobra para um lado, cabeça,
venenos; o corpo para o outro, com um palmo de segurança. Enterrei a
peçonha no formigueiro. Mitim só olhava e rezava. Arrastei o espólio
da serpente, agora sem cabeça, para debaixo da oiticica. Afinal,
precisava liberar a praça d’água para o gado beber. E ali, na
oiticica, pendurei-a num galho alto. Tirei o couro. Abri-lhe a carne
em bandas. Gorda, imensa, cevada. Ela habitava os balseiros do rio,
um grande moitiço de jitiranas e canapuns. Nós, o dia todo pisando
por cima, corrigindo a cerca da cacimba. Estava dormindo, com
certeza, o dia todo, e nós trabalhando em riba dela. Sapateando no
serviço das águas. Não viu, ou, sorte nossa, viu mas não se
importou. Bem feito. Levou cacete. Cacete grosso!
56. Francisco: E o medo, não lhe
chegou o medo?
SF: Sim, chegou, mas a cobra estava
ali, morta, sem cabeça, sem couro, sem nada. Havíamos de temer as
outras cobras, as cobras do mundo inteiro que, certamente já sabiam
do desastre da companheira. Melhor ter cuidado. Em dobro. Ora, lá no
sertão todo mundo sabe que os bichos se “comunicam”. Mas havia o
chocalho. Retirei, com muito cuidado, o chocalho da serpente.
Intacto. Dezesseis enrusgas! Disseram os Piauís que a cobra devia
ter 16 anos. Era imensa. Viram o couro, palmos e palmos. Antônio
Terto, outro vizinho, disse que teria, no barato, 160 anos! Um
doido, como uma cobra poderia ter 160 anos?! Bom, foi para dentro da
viola o chocalho da serpente fêmea das barrancas do Rio Macacos. Os
Piauís garantiram que dava timbre no instrumento e voz de estrondo
ao cantador. Pelo sim, pelo não, ficou lá. Até hoje. A banha, a
madrinha torrou, apurou e botou num pequeno vidro de
aguardente-alemã. Ótima para dor de garganta e nevralgias, assim
confirmaram os Piauís, que até ganharam um pouco, noutro vidrinho. E
o couro, espichei-o em muitas varas, na lateral e a comprido, bem
esticado, no sol, para secar. Não lembro quem passou por lá, num
jipe, um parente, um doutor, o padre ou seria um político, minha mãe
deu-lho ou vendeu. Fui de acordo, já não suportava olhar para o
animal. Sim, o medo. Ah, o Terto também ganhou da banha.
57. Francisco: Por que a
referência às rádios, BBC, Voz da América e Rádio Tirana?
SF: Ora, uma serpente imensa, morta
por um adolescente, mas ninguém tomou conhecimento! Era no tempo da
Guerra Fria, a tal Rádio Tirana, da Albânia, fazia uma latomia que
não tinha tamanho, em português, uma transmissão potente, a favor do
comunismo. Afora as outras duas, que ainda hoje fazem, contra. Dava
para ouvir nos radinhos de pilha do sertão. Menos lá em casa, que
não tinha nem rádio nem jornal.
58. Francisco: Seria motivo para
divulgarem?
SF: Consta que Apolo matou uma
serpente, sequer venenosa. Está certo que a píton é uma cobra
imensa, que mata o cristão no arrocho, mas não tem veneno, por isto
mesmo não dá para comparar com a minha cascavel, que tanto encantava
dentro do olho, como matava no dente, na peçonha! Apolo tirou o
couro da tal píton, fez um tamborete e nele sentado, ou quem
sentasse, adivinhava até dizer chega! Daí o nome, Apolo Pítio, o
deus adivinhão; a pitonisa, a feiticeira adivinhã, se fosse ela que
estivesse no banquinho. Ainda hoje se fala na cobra do grego.
59. Francisco: Um desprestígio
local?
SF: Com certeza! Por cá, da Seca,
um menino mata uma fera como aquela, mas ninguém fala nada. Uma
injustiça! Veja, a beata Mocinha, do Padre Cícero. Em França, quem
fez semelhante façanha, transformar a hóstia consagrada em sangue,
virou santa, de grandes altares, patentes e milagres. Aqui, a beata
Mocinha é apenas uma fraude fanática. Santos? Só os de fora! São
Francisco é de fora. São José, também. São Pedro, São João e Santo
Antônio, nenhum é daqui. O Conselheiro, o doutor Euclides da Cunha
comprova, por a+b, que era um louco. Pode?! Da mesma forma, a
Comadre. Ela é daqui – pobre raposa cinzenta, está doida, dizem.
60. Francisco: Fale sobre a
buscada da Comadre. A notícia do jornal.
SF: Ante a notícia da tragédia que
se perpetrava contra as raposas – o panfleto –, Chico, em disparada,
corre precipícios, ravinas, grotas, malocas, ocas, garranchos e
carrapichos. Volta de mãos abanando, pois não recebera a
“autorização” do Santo, sem a qual é homem solitário, desprovido de
suas crenças, seus valores e suas lendas. O herói, é evidente, está
sempre em nome, um nome, o nome do Pai. Tenta comunicar-se com as
raposas na língua dos fabulistas clássicos: primeiro, em grego (alopex,
alopex, raposa), via Esopo, o mais antigo deles; em seguida, em
latim: Fedro (vulpes); finalmente em francês: La Fontaine (renard).
Nada consegue com o linguajar erudito. (Grita, para ver se alguém te
responde. Jó, 5, 1). Falar com os bichos requer um salvo-conduto de
Ártemis, deusa dos animais, para os gregos (Diana, para os romanos),
e, por cá, de São Francisco de Assis, da Basílica do Canindé.
61. Francisco: Canindé? Pensei
que fosse em São Paulo...
SF: Sim, por lá tem um Canindé, há
vários outros canindés de Brasil afora, inclusive uma raça de
caprinos otimamente adaptados à região das Secas. É um bode que nem
é branco, nem é preto. O Canindé da Comadre fica a 120km de
Fortaleza. O Maciço de Baturité, o local da tragédia, é bem próximo.
De um lado, a cidade de Baturité. Do outro, a de Canindé, onde tudo
gira em torno do santo. Uma igreja imensa, bem acima dos padrões do
interior, das maiores do Nordeste, com o grau de basílica dado pelo
papa. Canindé é um centro de grandes romarias, justamente na região
mais seca do Ceará.
63. Francisco: A devoção ao
Padre Cícero não é maior?
SF: É, sim! Muito maior. No sul do
Estado, Juazeiro do Norte, numa região menos ingrata, o Cariri, mais
ameno. Chove mais cedo por lá. Na pior seca, dá um feijão ligeiro,
chamado “40 dias”, de moita. Ruinzinho todo, mas é bem rapidinho,
chegador. Em Canindé, não. É sertão brabo. Dos mais pobres. Merece
registro que em Canindé está-se formando um ponto de peregrinação, a
pé, a partir de Fortaleza. Todos os dias, muita gente saindo,
equipes especializadas de apoio, quatro ou cinco dias de viagem,
entrando pela noite, dormindo no relento, uma coisa fantástica, quem
nunca fez uma peregrinação não sabe o que está perdendo. Até o
senador, um que é devoto, irmão terceiro, o Pedro Simon, peregrinou.
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