Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Do Tirinete de Abrir

e

dos judeus do Nordeste


 

32. Francisco: Voltemos ao poema Psi, a Penúltima: O Tirinete de Abrir. O que é tirinete?

SF: Tirinete é um regionalismo, Nordeste, um trabalho bravo, uma luta feroz, dia e noite, exatamente como é a vida no sertão, domingos e feriados, sem direito a férias, uma beleza. De dia trabalhando; de noite, na farra.


33. Francisco: E se não chover?

SF: Aí muda tudo. De dia, buscando água cada vez mais longe; de noite, rezando para chover. E, todo o tempo, de noite também, tentando escapar os bichos da fome. Ramas de juazeiro e queimando mandacarus para o gado. E a tosse. A poeira. O sol. Uma leve fio de tosse... hemopt...! A febre...! O frio da tarde, ainda que esteja o horizonte esturricando-se de quente, o sol. O pai, foi assim mesmo, ela. Desculpe-me, tenho que sincopar. Esta garganta, esta glot.../

 

34. Francisco: Por que a dedicatória a Gerardo Mello Mourão?

SF: Apenas o reconhecimento a esse estupendo poeta póstumo.

 

35. Francisco: Póstumo? Ele está vivo, não!?

SF: Está e não está. Há um absoluto desconhecimento da obra de Gerardo no meio acadêmico. Duas explicações, uma ou outra. Ou as duas juntas. A primeira, por conta de suas posições políticas. Integralista desde a juventude, depois ligado ao germanismo, com pesadas acusações de espionagem em prol do Eixo, e até mesmo de ter afundado navios durante a 2ª Guerra Mundial. Ele me jurou de pés juntos que jamais botou qualquer navio a pique, pois, à época, estava preso. Bom, isto de estar preso não prova que o cidadão esteja ou não afundando navios. Provaria, no máximo, que não estava al mare, se a prisão era em terra. Há, porém, o processo de absolvição no Supremo Tribunal Federal. Eu vi, eu li sentença. O fato é que suas posições políticas geraram-lhe um profundo ódio da mídia. O escritor Carlos Emílio Correia Lima, bem próximo dele, chegou a residir, quando jovem, em sua casa, garante que, no Brasil, quem falar mal de judeus vai simplesmente para o ostracismo. Deve ser verdade, nunca mais se falou uma linha sobre Gustavo Barroso. Bem feito!

 

36. Francisco: Gustavo Barroso, o de Os protocolos?

SF: Ele mesmo. Entregou-se ao ódio. É o patrono brasileiro, tradutor e divulgador dos Protocolos dos Sábios de Sião. Anti-semita juramentado. No ostracismo absoluto. Dizia-me o poeta César Coelho que, não se sabe como, deram sumiço nos livros de Barroso. Pode não ser verdade, mas até no sebo é difícil de encontrar. Carlos Emílio diz que falar mal de árabes, pode, isto é, não acontece nada; mas de judeus, não. Acho que não se deve falar mal de ninguém. Nem de judeus, nem de árabes. Sequer do crítico local. Pelo contrário, só lhes falo de bem. E do disparateiro. Aquele, dos cinco quilos de xerém. São bons poetas.

 

37. Francisco: Há judeus no Ceará?

SF: Poucos, muito pouco mesmo. A influência maior é árabe, do ramo cristão, maronitas. Valioso o registro de que a convivência é ótima. Diz-se que a maior nação semita do mundo seria o Brasil, preponderantemente o Nordeste. Os fugidos de Espanha e Portugal, fugiam do Santo Ofício. A diáspora, os marranos, cristãos-novos, escondidos. Sem esquecer os holandeses, seus descendentes e simpatizantes, que conseguiram escapar na retomada de Pernambuco. Embrenharam-se de mato adentro, para bem de junto das raposas. A maioria, judeus.

 

38. Francisco: As fontes? Os ensaios, os estudos?

Soares: Nada! Praticamente, nada. Poucos sabiam ler. O interesse era pelo segredo. Nada sei de meus sangues: Soares, Gondim e Pereira, de mãe; Feitosa, Souto e Teixeira, de pai. O lado materno veio da Paraíba, para os sertões de Independência, há mais de duzentos anos. O lado paterno é mais antigo aqui, não lhe sei as origens.

 

39. Francisco: Conte sobre a casa dos pais.

SF: Pais, vírgula, que só tive mãe, o pai morto no dia do meu nascimento, no Ipu. Minha mãe criava, no quintal, permanentemente, três porcos: um bem novo, recém-desmamado; mais um porcote mediano e um outro, adulto, cevado. Quando o tal cevado não podia mais com o próprio corpo, obrigando-se a comer deitado, a gente o matava. Ah, festa! O bom é que se fazia um estranho doce de sangue de porco, um tal chouriço, uma delícia. Desconfio que aquilo seria um ritual de despistamento. Além de criar porcos, matávamo-los e lhes consumíamos o sangue – uma tríplice blasfêmia. Quem desconfiaria? Morto o cevado, imediatamente minha mãe comprava outro, pequeno, a repor o estoque, promovendo o porcote do meio ao posto avançado de “quase cevado”, a ganhar machado no toitiço tão logo não mais se levantasse para comer, de tanto peso, gordo. Era a próxima festa! Desconfio que aqui, Nordeste, quase todo mundo seria judeu, inclusos os árabes! Nunca vi convivência tão boa. Igual no Acre, onde todo mundo é “cearense”. O Barroso e o Mourão, também.

 

40. Francisco: A matança do porco, datas, dias em especial?

SF: Acho que sim. Um outro calendário, uma marcação do tempo, diferente dos dias comuns. Minha mãe reparava no Sol, na Lua. Ela sabia de “datas”, não apenas as do calendário da folhinha da Terra Santa ou do almanaque do Capivarol. Lá todo mundo repara na carreira do Sol e da Lua. Aprendi, nos matos, um bocado de doidices de sol, de lua, de chuvas, que nem tenho certeza sejam apenas doidices.

 

41. Francisco: Os judeus do Recife teriam ido para os Estados Unidos?

SF: Sim! Também para lá! Em 1654, relata a pesquisadora Tania Kaufman, uma leva de judeus, fugidos do Recife, chegava à ilha de Manhattan, então entreposto da Companhia das Índias Ocidentais, que também administrava o Brasil holandês, de Maurício de Nassau. Foram recebidos com hostilidade, mas por ordem dos acionistas, judeus, a coisa reverteu em boa acolhida. Assim, segundo Tania, o sangue nordestino teria ajudado a fundar a cidade de New York. Quem não pôde viajar, ou não teve “tempo” de pegar o último trem de Berlim, o jeito foi embrenhar-se de matagal a dentro.

 

42. Francisco: O que mais há contra Gerardo?

SF: Na minha conta, posições políticas à parte, Gerardo é o Poeta. Centenas de furos acima da poesia de disparates que se faz no Brasil há muitos anos. Tenho a impressão de que essa gente simplesmente não o lê porque não entende o que ele escreve. Um poeta que se auto-homenageia com a patente de Doutor em Poesia, acho que em Cambridge (está no cartão de visitas dele, assim mesmo, doutor-poeta), me disse que Gerardo não é poeta, que escreve um parapapá que ele acha sem sentido. Fui tomado de profunda compaixão pelo “doutor”. Ganhei uma antologia nova, uma história da literatura brasileira, coisa assim, um trabalho primoroso, graficamente uma rica edição de luxo.

 

43. Francisco: Com o nome de Gerardo?

SF: Igual a uma cajuína que fabricavam por cá. No meu tempo de Fiscal do Consumo, requeri um exame porque dependia de não ter caju em sua fórmula para cobrar um imposto maior. Veio a resposta: Caju? Nem vestígio! Assim a antologia da moça em relação ao Mello Mourão. Um mínimo de misericórdia me impede de lhes citar o nome, a antologista e o professor-doutor-poeta. Por isto é que vivo dizendo que Gerardo Mello Mourão é poeta póstumo. Está com quase noventa anos (8.1.1917) e eu lhe desejo que rompa os cem! Com sobra. Não está sozinho em ser “póstumo”. Com Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa e Franz Kafka não foi diferente. Melhor lembrá-lo como o grande poeta que sempre foi.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Do Agrimensor

e

da serpentente dominada


 

44. Francisco: Voltemos ao poema, ao Tirinete de Abrir, por que a referência, no final, ao Agrimensor? Não teria sido mais adequado ao Arquiteto, o Grande Arquiteto, da Maçonaria?

SF: Sem dúvida, o arquiteto é importante na, digamos, poesia sacerdotal. Contudo, antes de construir, há de demarcar, traçar limites, esquadrinhar, esquadrejar. É a fundação, a requerer uma tarefa de agrimensura. Os riscos de Ro-ma, a morte de Remo, por Rômulo, fronteiras. A linha do Jaboc, o registro das fronteiras em Juízes. É verdade, na fundação do humano, o agrimensor chega primeiro. Um pequeno detalhe: onze anos depois, no prefácio já referido ao livro de Virgílio Maia, é que verbalizo a importância do agrimensor: «O catálogo das cercas. Somos terra e cercas. Daqui para frente, não! Um risco no chão e se levantam marcos.»


45. Francisco: Por que antes de socorrer a Comadre, a necessidade de dominar uma serpente? O que significa, do canto primeiro?

SF: É um canto iniciático, um episódio verdadeiro. Quinze, dezesseis anos, morava na fazendola Catuana, às margens do Rio Macacos, um riachote que “aparta” (seca), mas termina de chover. Faz-se a cacimba do gado (e também das gentes) no leito do rio, na areaia. Na época das chuvas, a água rasa, superficial, mas vai afundando à medida que o verão estica. Pois naquele dia, em companhia de outro adolescente, Mitim, uns 16, recavávamos tudo, na operação conhecida por baixar o pau da cacimba.


46. Francisco: Baixar o pau?

SF: Sim, isto mesmo. Uma rampa, chamada praça, com uns vinte metros de extensão por uns seis de largo, por onde o gado desce até a água. A cacimba é cercada, se não gado destrói tudo, pisoteando, atropelando, esbarrando, caindo. E, no final da rampa, mais uma cerquinha, deixando apenas uns dois palmos de espelho d’água, o suficiente para a rês enfiar a boca e beber. Mas há de manter um anteparo, para, quando o gado descer, não entupir a água com areia da rampa. É o “pau da cacimba”, uma madeira roliça, de bom volume, escorada firmemente com pequenas forquilhas. De uma lado do pau da cacimba, em direção à rampa, areia; do outro, água.


47. Francisco: Um serviço pesado, não?

SF: Muito! É necessário, várias vezes durante o verão, recavar tudo, aumentar o rampado da praça e, ao mesmo tempo, baixar o pau da cacimba para o novo nível da água. Um serviço para gente nova, nós, ainda imberbes, mas taludos. No sol do sertão, o dia inteiro cavando e jogando areia em grandes pazadas para os lados, vapo, vapo, lá em cima, no barranco. Sem camisa, suando muito, bebendo água dali mesmo, da água que a gente cavava, guardada numa cabaça, na sombra da oiticica, que ninguém é doido para beber água quente. Era de tardezinha, havia eu saído para abrir a porteira e trazer o gado que, sedento, esperava há horas o momento de beber. Quando ela chegou.


48. Francisco: Ela quem? Quem chegou?

SF: A serpente! Eu já havia soltado a primeira leva para beber, quando o Mitim gritou, assombrado, em estado de choque. Corri para acudir. Mitim estatelado, paralisado, hipnotizado nos olhos da cobra. Ela já estava lá dentro. Descera para beber, ou tomar banho, se é que cobra toma banho, acho que toma, mas se assustou com a presença dele. Encurralada entre a água e as laterais da cacimba. Soltava botes no vento. A língua bífida, ligeira, no ar. Imensa. E o chocalho, tinindo e retinindo! Era uma cascavel. Toda apatacada de um amarelo claro e mais escuro, como é da lei e da estampa daquelas serpentes. Fêmea, no cio, assim disseram os Piauís, Pedro e Henrique, nossos vizinhos mais velhos, depois de especularem sobre o chocalho, “meio deitado”, que, no macho é “em pé”. E a cloaca, túrgida, únida, avermelhada. Pronto, a cobra estava no cio! Mais valente e mais venenosa! – disseram os Piauís. E se benzeram.

 
49. Francisco: E o que aconteceu? Alguém mordido?

SF: Mitim não dava um passo. Nem um ai. Se a cobra viesse para cima dele, era morte certa, que ele nada faria, talvez até ajudasse a mordê-lo. Peguei uma vara da cerca, tudo muito ligeiro. Eu já sabia que, em matéria de cobra, bastava-lhe uma paulada bem firme no espinhaço, que ela, a cobra, escambichada, com o espinhaço partido, não sairia mais do lugar. Assim fiz: com todas as forças do universo, ajuntando as duas mãos na vara, bem no meio da serpente: vaaáaapo! Espinhaço de cobra para que quero!


50. Francisco: Matou ou não matou?

SF: Matou coisa nenhuma! Aí foi que a serpente danou-se a dar botes. No seco, no vento, na sombra, no ar. Até na direção da lua dava botes. Era um crescente, já despontando, de tardinha, no assombro do fim da tarde. Ai do cristão que chegasse perto! Ela, escambichada, a espinha quebrada por conta da paulada, não conseguia perseguir para atacar. Doida para atacar! Ciscando! Perversidade absoluta, de que muito me arrependo, insultei com a cobra. Zombei. Isto não se faz! Então...


51. Francisco: Então o quê? Ela atacou, mordeu, picou?

SF: Não, que ela, bicho treloso, sabia que a vara não era coisa de morder. Eu lá, insultando. Com a vara, pra lá e pra cá, na boca dela, sapateando, zombando. Ela fez pontaria no meu calcanhar. Arrastou de lá, tal qual a Comadre, um giro absoluto de todos os graus do transferidor, quase que trouxe consigo a parte recém-aleijada, da pancada, e vaaáapo, no meu mocotó! Saltei no vento! Lá longe, um salto grande. Era jovem. Se fosse hoje, com este barrigão, não teria saído do canto. Estaria morto!


52. Frandisco: Foi atingido?

SF: Não! Ainda não! Era o Mitim, o susto era com ele. De joelhos, pedia, aos berros, por todos os santos do mundo, sobretudo por São Francisco do Canindé – ele, até que enfim conseguiu falar alguma coisa – que eu matasse logo aquela fera, se não o companheiro dela haveria de vir, quem sabe, à traição, pegando a todos nós, inclusive as reses que ali estavam, doidas para beber, mas recuadas, com medo. O gado sabe, o gado “sente”. Até o bicho bruto tem medo. Quem não tem?! Então, havia de cobri-la de pau! Assim fiz. Mas na intenção de lhe aproveitar chocalho e couro, procurei-lhe a cabeça. Morreu.


53. Francisco: Aproveitar o couro? Não seria perigoso?

SF: Sim, e muito! Se escorregasse a mão e batesse numa das presas, tiro e queda, era cair morto, que a presa da cobra “morde”, ainda que ela esteja morta, todo mundo sabe disto. O ferrão da abelha também. E das larvas de abelha. Quem se meter a comer um favo de mel de enxu ou capuchu, precisa ter cuidado. Pode ganhar uma ferroada sem saber de onde. Ela, a larva amoitada lá dentro, coberta com uma capinha que parece mel, bem clarinha. Assim a cobra! Por isto é que a gente usa, nos matos, alpercatas de solado de pneu, bem grosso. Se pisar descalço numa carcaça e for atingido pelas presas da cobra, pode encomendar a alma, que nem ele dá jeito. São Bento, o protetor dos ofendidos de cobra. Nem ele! Se chegar perto, também morre, o santo!


54. Frandisco: E o couro?

SF: Eu disse: Mitim, vamos tirar o couro. Dá um bom dinheiro. E a banha, vamos também tirar, é um ótimo remédio para garganta. Sim, também para as juntas de reumatismo. Ele disse que não. Eu disse que sim. Peguei a serpente pelo rabo, a cabeça pingando, a boca arreganhada, frouxa. As presas, imensas, com um leite amareloso na ponta, uma gota grossa em cada uma. A morte! O retrato da morte. Um pescoço ruim de cortar, liso, frio, pegajoso, de escorregar.
 

55. Francisco: Cortou ou não cortou?

SF: Cortei. Um golpe rápido, de força plena, daqueles em que a gente praticamente arranca o braço, de tanto esforço. Com a faca peixeira, sempre bem amolada, e tudo se resolveu num apartar inequívoco: a cobra para um lado, cabeça, venenos; o corpo para o outro, com um palmo de segurança. Enterrei a peçonha no formigueiro. Mitim só olhava e rezava. Arrastei o espólio da serpente, agora sem cabeça, para debaixo da oiticica. Afinal, precisava liberar a praça d’água para o gado beber. E ali, na oiticica, pendurei-a num galho alto. Tirei o couro. Abri-lhe a carne em bandas. Gorda, imensa, cevada. Ela habitava os balseiros do rio, um grande moitiço de jitiranas e canapuns. Nós, o dia todo pisando por cima, corrigindo a cerca da cacimba. Estava dormindo, com certeza, o dia todo, e nós trabalhando em riba dela. Sapateando no serviço das águas. Não viu, ou, sorte nossa, viu mas não se importou. Bem feito. Levou cacete. Cacete grosso!

 

56. Francisco: E o medo, não lhe chegou o medo?

SF: Sim, chegou, mas a cobra estava ali, morta, sem cabeça, sem couro, sem nada. Havíamos de temer as outras cobras, as cobras do mundo inteiro que, certamente já sabiam do desastre da companheira. Melhor ter cuidado. Em dobro. Ora, lá no sertão todo mundo sabe que os bichos se “comunicam”. Mas havia o chocalho. Retirei, com muito cuidado, o chocalho da serpente. Intacto. Dezesseis enrusgas! Disseram os Piauís que a cobra devia ter 16 anos. Era imensa. Viram o couro, palmos e palmos. Antônio Terto, outro vizinho, disse que teria, no barato, 160 anos! Um doido, como uma cobra poderia ter 160 anos?! Bom, foi para dentro da viola o chocalho da serpente fêmea das barrancas do Rio Macacos. Os Piauís garantiram que dava timbre no instrumento e voz de estrondo ao cantador. Pelo sim, pelo não, ficou lá. Até hoje. A banha, a madrinha torrou, apurou e botou num pequeno vidro de aguardente-alemã. Ótima para dor de garganta e nevralgias, assim confirmaram os Piauís, que até ganharam um pouco, noutro vidrinho. E o couro, espichei-o em muitas varas, na lateral e a comprido, bem esticado, no sol, para secar. Não lembro quem passou por lá, num jipe, um parente, um doutor, o padre ou seria um político, minha mãe deu-lho ou vendeu. Fui de acordo, já não suportava olhar para o animal. Sim, o medo. Ah, o Terto também ganhou da banha.


57. Francisco: Por que a referência às rádios, BBC, Voz da América e Rádio Tirana?

SF: Ora, uma serpente imensa, morta por um adolescente, mas ninguém tomou conhecimento! Era no tempo da Guerra Fria, a tal Rádio Tirana, da Albânia, fazia uma latomia que não tinha tamanho, em português, uma transmissão potente, a favor do comunismo. Afora as outras duas, que ainda hoje fazem, contra. Dava para ouvir nos radinhos de pilha do sertão. Menos lá em casa, que não tinha nem rádio nem jornal.


58. Francisco: Seria motivo para divulgarem?

SF: Consta que Apolo matou uma serpente, sequer venenosa. Está certo que a píton é uma cobra imensa, que mata o cristão no arrocho, mas não tem veneno, por isto mesmo não dá para comparar com a minha cascavel, que tanto encantava dentro do olho, como matava no dente, na peçonha! Apolo tirou o couro da tal píton, fez um tamborete e nele sentado, ou quem sentasse, adivinhava até dizer chega! Daí o nome, Apolo Pítio, o deus adivinhão; a pitonisa, a feiticeira adivinhã, se fosse ela que estivesse no banquinho. Ainda hoje se fala na cobra do grego.


59. Francisco: Um desprestígio local?

SF: Com certeza! Por cá, da Seca, um menino mata uma fera como aquela, mas ninguém fala nada. Uma injustiça! Veja, a beata Mocinha, do Padre Cícero. Em França, quem fez semelhante façanha, transformar a hóstia consagrada em sangue, virou santa, de grandes altares, patentes e milagres. Aqui, a beata Mocinha é apenas uma fraude fanática. Santos? Só os de fora! São Francisco é de fora. São José, também. São Pedro, São João e Santo Antônio, nenhum é daqui. O Conselheiro, o doutor Euclides da Cunha comprova, por a+b, que era um louco. Pode?! Da mesma forma, a Comadre. Ela é daqui – pobre raposa cinzenta, está doida, dizem.


60. Francisco: Fale sobre a buscada da Comadre. A notícia do jornal.

SF: Ante a notícia da tragédia que se perpetrava contra as raposas – o panfleto –, Chico, em disparada, corre precipícios, ravinas, grotas, malocas, ocas, garranchos e carrapichos. Volta de mãos abanando, pois não recebera a “autorização” do Santo, sem a qual é homem solitário, desprovido de suas crenças, seus valores e suas lendas. O herói, é evidente, está sempre em nome, um nome, o nome do Pai. Tenta comunicar-se com as raposas na língua dos fabulistas clássicos: primeiro, em grego (alopex, alopex, raposa), via Esopo, o mais antigo deles; em seguida, em latim: Fedro (vulpes); finalmente em francês: La Fontaine (renard). Nada consegue com o linguajar erudito. (Grita, para ver se alguém te responde. Jó, 5, 1). Falar com os bichos requer um salvo-conduto de Ártemis, deusa dos animais, para os gregos (Diana, para os romanos), e, por cá, de São Francisco de Assis, da Basílica do Canindé.


61. Francisco: Canindé? Pensei que fosse em São Paulo...

SF: Sim, por lá tem um Canindé, há vários outros canindés de Brasil afora, inclusive uma raça de caprinos otimamente adaptados à região das Secas. É um bode que nem é branco, nem é preto. O Canindé da Comadre fica a 120km de Fortaleza. O Maciço de Baturité, o local da tragédia, é bem próximo. De um lado, a cidade de Baturité. Do outro, a de Canindé, onde tudo gira em torno do santo. Uma igreja imensa, bem acima dos padrões do interior, das maiores do Nordeste, com o grau de basílica dado pelo papa. Canindé é um centro de grandes romarias, justamente na região mais seca do Ceará.


63. Francisco: A devoção ao Padre Cícero não é maior?

SF: É, sim! Muito maior. No sul do Estado, Juazeiro do Norte, numa região menos ingrata, o Cariri, mais ameno. Chove mais cedo por lá. Na pior seca, dá um feijão ligeiro, chamado “40 dias”, de moita. Ruinzinho todo, mas é bem rapidinho, chegador. Em Canindé, não. É sertão brabo. Dos mais pobres. Merece registro que em Canindé está-se formando um ponto de peregrinação, a pé, a partir de Fortaleza. Todos os dias, muita gente saindo, equipes especializadas de apoio, quatro ou cinco dias de viagem, entrando pela noite, dormindo no relento, uma coisa fantástica, quem nunca fez uma peregrinação não sabe o que está perdendo. Até o senador, um que é devoto, irmão terceiro, o Pedro Simon, peregrinou.