Gerana Damulakis
Toda Florbela
Florbela
Espanca recortava as críticas sobre os seus versos. Imagino qual
linha desses pareceres, colocados em extremos opostos, deve ter
feito aflorar um sorriso no rosto da poeta portuguesa: versos
imprimidos de “toda a ternura, todo o sentimento de uma alma de
mulher”, “verdadeiro mimo”, ou, por outro lado, “escrava de harém”,
“lábios literariamente manchados”, “um livro mau, um livro
desmoralizador”. Vacilando entre a moral e o preconceito e a beleza
própria do poema, a poesia de Florbela teve um “frio acolhimento”
durante sua vida. Constatamos a história, “a relação mecanicista
vida e obra”, que se desenrolou em torno da poeta; tudo muito bem
contado, com a base sólida da pesquisa séria de Maria Lúcia Dal
Farra em Poemas de Florbela Espanca (Martins Fontes Editora). Esta é
uma edição preparada e acompanhada de um estudo introdutório para
colocar o leitor de hoje frente às circunstâncias nada favoráveis
que estavam sempre ao lado daquela alma “irmã gêmea da minha”, no
dizer de Fernando Pessoa.
Maria Lúcia Dal
Farra apresenta o resultado de um labor rigoroso, onde salienta a
incompreensão recebida por Florbela em vida. A crítica não entendeu
a poeta, porque, excetuando Américo Durão e Botto de Carvalho, um
parecer como o de Thereza Leitão de Barros, para citar um exemplo,
só vai ser modificado depois do suicídio de Espanca. Debruçada sobre
os papéis pessoais que constam do espólio de Florbela na Biblioteca
Nacional de Lisboa, Dal Farra desvendou, estabeleceu e confirmou,
via reconstituição, todas as vicissitudes da mulher e da poeta,
daquela vida enfim guiada pela angústia existencial.
Já no seu livro
Florbela Espanca, Trocando Olhares (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa
da Moeda), Maria Lúcia trabalha em cima dos 88 poemas do primeiro
manuscrito da poeta e segue os projetos poéticos do ponto de vista
literário e histórico. Mas é neste livro de agora, mirando Guido
Battelli, que a autora faz uma faceta curiosa do que ocorreu após a
morte de Florbela. O professor italiano Guido Battelli, por ocasião
visitante na Universidade de Coimbra, se ofereceu para editar as
últimas produções de Espanca. A Battelli a poeta portuguesa confiou
os originais em 1930 e, logo, em dezembro do mesmo ano, põe em
prática o suicídio. Dal Farra vem contar como se deu o boom
editorial obtido pelo livro de poemas Charneca em Flor, com Florbela
então morta: a imprensa de Portugal, acreditando no conhecimento
íntimo que Battelli desfrutou com Florbela, tece a aderência da
biografia com a obra para explicar inclusive as razões da morte por
opção.
O professor
terá que responder por tal mais tarde, no entanto, no momento
imediato à edição de Charneca em Flor, tiragens sucessivas foram
esgotadas, o que entusiasmou Battelli a publicar tudo o que
encontrou de Florbela: Juvenília reúne os poemas esparsos da
mocidade da poetisa; os dois livros de poesia anteriores a Charneca
têm reedição; Charneca em Flor ganha uma seção intitulada Reliquiae;
e mais, As Máscaras do Destino traz os contos inéditos, além da
publicação da correspondência de Florbela com Júlia Alves e com o
próprio Battelli, e estupendo é o fato de que tudo isso aconteceu
num único ano, o de 1931, alicerçado na ficção criada por Battelli
que chegou a manipular trechos de cartas, datas, interferiu nos
originais, portanto, ultrajes finalmente elaborados para concorrer
com sensacionalismo. O que estarrece é a aceitação pública da
mentira por praticamente 40 anos, pois apenas em 1979, ao valer-se
do espólio para escrever Florbela Espanca, a vida e a obra,
Augustina Bessa-Luís esclarece devidamente a enganação. Atente-se que
também no plano político Florbela foi declarada inimiga do Estado
Novo. Parece incrível como a intimidade pode ser ficcionalizada e
ser sustentada até que José Régio, Jorge de Sena e Vitorino Nemésio
se dedicaram à causa política e aos poemas, quase como uma frente de
libertação para trazer a verdadeira Florbela e a poeta que deve ser
lida pelo que deixou em texto sem vínculos com sua vida particular.
Escândalo ou
fascinação pelo escândalo, com ou sem história de atribulações
novelescamente ligada a uma sucessão de três casamentos, a perdas
familiares dolorosas, a incompreensão pelo preconceito, o que fica é
a voz poética feminina mais autêntica, desatrelada dos filtros
morais: “O maior dum homem? – Terra tão pisada!/ Gota de chuva ao
vento baloiçada.../ Um homem? – Quando eu sonho o amor dum
deus!...”.
Neste livro
organizado por Maria Lúcia Dal Farra, todas as obras em verso de
Florbela Espanca comparecem em ordem cronológica, assim como uma
“Esparsa Seleta”, antologia de peças dispersas. Criterioso e
curioso, o livro acrescenta mais valor ao que já se conhece da poeta
de sonetos tão pungentes como um desespero de amor:
Eu quero amar,
amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele,
o Outro e toda a gente...
Amar! Amar!
E não amar ninguém! |
Leia a obra de Florbela Espanca
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