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Gerana Damulakis


Música para Ofício dos Mortos

ou a Noite Eterna em Sol da Tarde.

De como se dá a Poesia em Soares Feitosa


 

Para enterdermos Réquiem em Sol da Tarde, de Soares Feitosa, podemos iniciar percorrendo seu beiral: suas margens, suas cercanias. E vamos verificando que há preferencialmente um aliciante contrato com Ezra Pound, embora nosso poeta, sem dúvida, assine um pacto consigo mesmo; por isto não estou falando de plágio, mas de aliciação.

Soares Feitosa não se isenta de engolfar, imergir e entranhar-se visceralmente nas relações humanas loucas ou normais; assim, ele fortalece seu texto com o próprio homem, seja em estado lúcido, seja na irracionalidade dos gestos assoladores, como o ataque da Besta, que em certo poema, transforma o homem ou mostra o homem em sua verdadeira faceta bestial: é o poema “A Outra Margem” que põe um espelho em nossas mãos.

Soares gosta de investigar tais achaques momentâneos, e vai tecendo a trama poética com fragmentos heterogêneos, mesclando frações sombrias, tristes ocorrências e, em igual tempo, vai dando seu grito pincelado de vermelho, berrando sensações, cuja força, paradoxalmente, nasce desse acúmulo embaraçado de desencontros: o discurso, sendo cingido o quanto pode até seus limites, traz o risco de uma certa inclinação demasiado evidente de seu pendor pela erudição. Repito, é um risco deixar que sua imaginação não se liberte dos embaciamentos de uma sabedoria livresca estampada com excedente expressão.

Mas é seguro que Feitosa está alheio a fiadores, avalistas ou abonadores: ele só paga tributo a Pound, e paga caro.

A incorporação do simples, do fato trivial, na dicção poética tão permeada de erudição não compromete a comunicação, antes porque a linguagem fica entre esses extremos como uma verdadeira trapezista. A obsessão do poeta é pelo excesso, pela voracidade do sujeito artífice da palavra frente a realidade cotidiana.

Enfim, Soares Feitosa adere aos que pensam Poesia como retrato de uma época, melhor, de um presente específico e, às vezes, conseqüente de um passado.

Em suma, ele é o poeta do presente imediato ou ele é o poeta que surge imediatamente do presente - o que dá no mesmo.

Ao fim e ao cabo, poeta.


Gerana escreve sobre Salomão


Salomão, um século para a ilusão:
 

Estaríamos todos, um dia, vivendo num século onde os livros seriam os professores da vida — creio que J. L. Borges teve este sonho. E, por coincidência aquele outro grande argentino, Júlio Cortázar também. Aliás, foi Cortázar que em la vuelta al dia en ochenta mundos, discorreu sobre os vários “Julios”, entre eles Jules laforgue, poeta maior da afeição de T. S. Eliot. Já Feitosa, discorre sobre os “Antônios”, não sendo ele próprio um Antônio, mas antes um Francisco, prova de um elevado espírito mais que poético, divino, nem divino, pois que aqueles do Olimpo eram chegados a miradas debruçados em leitos límpidos de rios cristalinos. — Ah! a atração dos cristais.

Falava eu de caráter, e o que tem o caráter com a poesia? Tem, se no extremo do caráter há o sentido supremo: o da salvação. Convertido daí em poesia, meio de salvação, Feitosa cria uma gritaria, ele diz “fazer uma zoada” e, melhor do que qualquer outro dos seus contemporâneos, acaba por representar a sensibilidade fin-de-siècle, ou seja, ele representa o nosso desejo de salvação.

Muito consciente de que a história, seja a de um século, seja a do homem desde sempre, é ao fim e ao cabo uma epopéia macabra, o que temos de permeio é a ilusão. Assim que o texto poético Salomão além de uma obra literária, traz um quê de obra de profecia: a profecia dos tempos modernos.

Mas é tanto e tanto mais que é também uma canção de amor e morte, estes temas maiores da literatura. E, veja, eles chegam ao papel, assimilados da vida, oriundos da figuração que a realidade teceu. Portanto, manados da realidade, relevados em verdadeira arte, toda e qualquer escolha de Feitosa para ilustrar momentos, são emanadas (as escolhas) da realidade, contudo ele verte em criação, acrescenta a ilusão, clama por ela, a que fica no fundo da caixa de Pandora, e, então, profetiza o século.

Menos filosofia poética e mais análise textual me levam a dizer que as expressões da língua falada mais uma sintaxe e um vocabulário muito bem pinçados, mais o verso liberado, mais a bela arquitetura interna, tudo isso dentro do universo poético dito no algo de cósmico que ele tem, na imensidão desde o pessoal atingindo o universal, tudo isso, desde o som do vocábulo propositadamente ecoando qual tambor no ouvinte dos leitos. Tã!, desde as nostalgias da história “macabra” da humanidade, tudo isso até a confissão e até o arrependimento.

Parece romantismo, parece porém, ao substituir as lamentações próprias do romantismo por piruetas do construtivismo — veja, os opostos. E adicionando o tom das cantigas — veja, as cantigas têm origem nas ruas, no popular — porém digo outra vez, havendo este reflexo histórico que faz o diálogo, que faz o eco, que faz o coro, conclui-se que Feitosa criou um mundo poético novo.

Precisamos de um mundo novo, é preciso inventar, ele inventou a maneira de cantar a liberdade sem que seja um surrealista, acho que ele inventou a cena nova que traduz a nossa angústia metafísica pela via direta do dito e não da sugestão. Ele diz e repete. Afinal, é canção com refrão. Ele, inclusive, insiste sempre com desenvoltura, tanto para destruir mitos. Pois que corrói para nos revelar, veja o caso do fotógrafo premiado; tanto e através dos personagens desajeitados. Espelho do homem comum, vivente ou sobrevivente de um mundo que está irremediavelmente ultrapassando nossa perplexidade.

Não tendo como classificar este poeta que cria o novo, o mínimo a dizer é que ele é autor que abre caminhos. Sua classificação está no futuro. E, porque agora ele está abrindo o caminho para a literatura do século XXI. Temos, nós espectadores, a vantagem de ler a caminhada rumo aos anos 2000.

 



Soares Feitosa, 2003
Leia a obra de
Soares Feitosa

 

 

 

Hélio Rola

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Cláudio Portella