Gerana Damulakis
Salomão, um século para a ilusão
Estaríamos
todos, um dia, vivendo num século onde os livros seriam os
professores da vida — creio que J. L. Borges teve este sonho. E, por
coincidência aquele outro grande argentino, Júlio Cortázar também.
Aliás, foi Cortázar que em la vuelta al dia en ochenta mundos,
discorreu sobre os vários “Julios”, entre eles Jules laforgue, poeta
maior da afeição de T. S. Eliot. Já Feitosa, discorre sobre os “Antônios”,
não sendo ele próprio um Antônio, mas antes um Francisco, prova de
um elevado espírito mais que poético, divino, nem divino, pois que
aqueles do Olimpo eram chegados a miradas debruçados em leitos
límpidos de rios cristalinos. — Ah! a atração dos cristais.
Falava eu de
caráter, e o que tem o caráter com a poesia? Tem, se no extremo do
caráter há o sentido supremo: o da salvação. Convertido daí em
poesia, meio de salvação, Feitosa cria uma gritaria, ele diz “fazer
uma zoada” e, melhor do que qualquer outro dos seus contemporâneos,
acaba por representar a sensibilidade fin-de-siècle, ou seja, ele
representa o nosso desejo de salvação.
Muito
consciente de que a história, seja a de um século, seja a do homem
desde sempre, é ao fim e ao cabo uma epopéia macabra, o que temos de
permeio é a ilusão. Assim que o texto poético Salomão além de uma
obra literária, traz um quê de obra de profecia: a profecia dos
tempos modernos.
Mas é tanto e
tanto mais que é também uma canção de amor e morte, estes temas
maiores da literatura. E, veja, eles chegam ao papel, assimilados da
vida, oriundos da figuração que a realidade teceu. Portanto, manados
da realidade, relevados em verdadeira arte, toda e qualquer escolha
de Feitosa para ilustrar momentos, são emanadas (as escolhas) da
realidade, contudo ele verte em criação, acrescenta a ilusão, clama
por ela, a que fica no fundo da caixa de Pandora, e, então,
profetiza o século.
Menos filosofia
poética e mais análise textual me levam a dizer que as expressões da
língua falada mais uma sintaxe e um vocabulário muito bem pinçados,
mais o verso liberado, mais a bela arquitetura interna, tudo isso
dentro do universo poético dito no algo de cósmico que ele tem, na
imensidão desde o pessoal atingindo o universal, tudo isso, desde o
som do vocábulo propositadamente ecoando qual tambor no ouvinte dos
leitos. Tã!, desde as nostalgias da história “macabra” da
humanidade, tudo isso até a confissão e até o arrependimento.
Parece
romantismo, parece porém, ao substituir as lamentações próprias do
romantismo por piruetas do construtivismo — veja, os opostos. E
adicionando o tom das cantigas — veja, as cantigas têm origem nas
ruas, no popular — porém digo outra vez, havendo este reflexo
histórico que faz o diálogo, que faz o eco, que faz o coro,
conclui-se que Feitosa criou um mundo poético novo.
Precisamos de
um mundo novo, é preciso inventar, ele inventou a maneira de cantar
a liberdade sem que seja um surrealista, acho que ele inventou a
cena nova que traduz a nossa angústia metafísica pela via direta do
dito e não da sugestão. Ele diz e repete. Afinal, é canção com
refrão. Ele, inclusive, insiste sempre com desenvoltura, tanto para
destruir mitos. Pois que corrói para nos revelar, veja o caso do
fotógrafo premiado; tanto e através dos personagens desajeitados.
Espelho do homem comum, vivente ou sobrevivente de um mundo que está
irremediavelmente ultrapassando nossa perplexidade.
Não tendo como classificar este poeta que cria o novo, o mínimo a
dizer é que ele é autor que abre caminhos. Sua classificação está no
futuro. E, porque agora ele está abrindo o caminho para a literatura
do século XXI. Temos, nós espectadores, a vantagem de ler a
caminhada rumo aos anos 2000.
Leia a obra de
Soares Feitosa
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