Gerana Damulakis
A Força de Quatro Narrativas
Está havendo uma reação quanto ao
rótulo de autor regionalista por parte dos que produzem uma ficção
anteriormente assim também rotulada e, por isso, cabem aqui algumas
reflexões. A narrativa brasileira contemporânea quando enfoca o
condicionamento ambiental, sócio-cultural e existencial do homem que
vive fora dos grandes centros urbanos, coloca o personagem num plano
regional como um ser telúrico para chamar todos os aspectos
universais de sua alma. Antonio Hohfeldt, no seu estudo sobre a
narrativa brasileira contemporânea, diz preferir a designação de
narrativa rural à de narrativa regional, por ser mais abrangente. A
ação dramática está cingida ao espaço rural ou sobre ele se volta
reflexivamente, diz Hohfeldt, para marcar o ambiente literário.
Moema de Castro e Silva Olival lista as causas que caracterizam uma
literatura regionalista, ou melhor, rural: o personagem identificado
com sua região nas dimensões de sua vivência, na consubstanciação
das tradições e costumes locais, nas superstições e nos padrões de
religiosidade, mitos, lendas e, muito importante, na razão da
identificação com a linguagem, através das estruturas da oralidade,
o que tornará a medida regional mais palpável. Ainda seguindo as
palavras da ensaísta Moema Olival, outra característica reside na
relativa freqüência com que encontramos referências explícitas ao
espaço rural.
Já escrevia Júlio Cortázar que um
estilo no qual os elementos formais e expressivos se ajustem, sem a
menor concessão, à índole do tema, lhe dêem a forma visual, a
auditiva mais penetrante, o tornem único, inesquecível, o fixem para
sempre no seu tempo, no seu ambiente e no seu sentido primordial, é
um estilo baseado na intensidade e na tensão, o qual servirá de meio
seguro como única forma de conseguir o seqüestro do leitor. Podemos
concluir sobre a explanação do autor de As Armas Secretas que o
comprometimento com o espaço é fator dos mais importantes para a
fixação do texto.
Dentro de todas essas colocações
inserimos a narrativa de Cyro de Mattos constituída no volume Os
Brabos, agora em reedição revista. O conjunto de quatro textos
arrebanhou o Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos da Academia
Brasileira de Letras em 1978, quando foi destacada, pela comissão
julgadora, justamente a dramaticidade brasileiríssima, seus temas e
sua linguagem, o retrato do povo brasileiro mais humilde e típico do
campo.
A ficção que dá título à coletânea "Os
Brabos" tem nas estruturas da fala e nas deformações vocabulares
representativas da gente rural marcas da presença do homem telúrico.
Assim, evidenciam as angústias, os sentimentos mais diversos. O
drama tem lugar no personagem, no homem rústico, quase animal, o
qual, refletido no seu espaço interior evidencia o primitivismo e o
espírito de sobrevivência diante da violência selvagem. Seria o caso
de Tidoramim, da mercante do Bom-Sereno, chamada Bituta, enfim, da
gente criada na ficção de Cyro de Mattos. Uma ficção que, à primeira
vista e apressadamente pode ser tomada como uma continuação da
marcha regional de 1930. Mas, longe dos comandantes daquela geração,
o encontro que se dá na literatura escrita por Cyro de Mattos é o
encontro do novo tipo humano, porque ainda que telúrico, ainda que
enfatizando as relações dos personagens com o espaço geográfico e as
conseqüências sócio-econômicas daí derivadas, a atual literatura
rural plasma as relações íntimas desse ser telúrico, dando mais
atenção do que aquela dada pelos precursores do regionalismo. A
propósito, a ensaísta Regina Dalcastagnè lembra que uma boa trama
não sobrevive soterrada por um realismo canhestro, do mesmo modo
como estilo nenhum se agüenta em pé se não está servindo a uma
história, haja vista a delicada harmonia, essencial em uma narrativa
curta, como, aliás, em toda a literatura, parecer sempre uma busca
de todo autor.
Tratar de histórias curtas conduz o
pensamento ao mestre da moderna narrativa: Edgar Allan Poe e seus
ditos. Ele dizia que para se construir uma narrativa curta era
preciso, antes de tudo, conceber um "certo efeito único ou singular"
e, a partir dessa escolha, inventar incidentes ou combiná-los de
modo a obter o efeito pré-concebido. Um livro que narre várias
histórias deve também conter esse "efeito único", porque se isso não
acontecer, o resultado é um mero exercício de estilo, o qual,
retornando com Dalcastgnè, mesmo se bem executado, deixa uma
sensação de vacuidade. As quatro histórias de Os Brabos são um bloco
singular: "Infância com Bicho e Pesadelo", "Os Brabos", "Ladainha
nas Pedras" e "Somente Ele Escutou a Fúria do Mar". Obedecem um
mesmo processo, e já estamos longe do debate sobre o critério para
adotar a terminologia rural. Não reside no enquadramento rural a
organicidade do livro Os Brabos, tampouco na técnica atualizada,
distante da turma de 30 e conforme as tendências da atualidade. O
bloco está ditado, isto sim, pelos personagens de cada história que,
enfim, é o grande personagem do livro: o personagem que emerge na
literatura de Cyro de Mattos, colhido na sua estrutura mental e
sócio-cultural. É dessa figura emergencial que o autor retrata o
homem regional, seja através dos aspectos de seu caráter, como é
nítido no que vai sendo contado sobre Tidoramim em "Os Brabos", seja
através da alma sentida do menino, que depois se torna o velho
Mundinho, de "Infância com Bicho e Pesadelo".
Insisto nas argumentações de Moema
Olival e na sua conclusão sobre o neo-realismo como uma das
vertentes das narrativas atuais. O realismo social-telúrico hodierno
não limita o foco na subvivência humana derivada do lugar, o mato, o
campo ou a cidade interiorana, mas afastando-se de tal enfoque para
preferir as tramas da mentalidade, a visão do mundo íntimo, ou seja,
a força do texto, centra-se na força própria das reações dos
personagens.
A meta literária em "Os Brabos" e em
"Ladainha nas Pedras" parece mostrar o ritmo da vida pela fala mesma
do narrador e dos personagens. O modo que aproxima uma demonstração
disso está nas falas de Bituta e nas reações instintivas ao meio
ambiente de Tidoramim. A doença social, as convenções e os dogmas
primitivos, assim como a violência dos instintos carnais e, em suma,
a paixão e seu poder formam a riqueza das situações e seus detalhes;
de resto, formam a postura narrativa. Resumindo: ação e reação ao
ambiente na intriga; atitudes do corpo e da alma na trama, definem o
caráter dos personagens.
Em "Infância com Bicho e Pesadelo", um pai tirano será o responsável
pelo triste destino de um menino amante dos bichos que, ao chegar à
velhice, torna-se quase um animal no seu modo de vida. A psicologia
apontaria a falta de reação do menino frente aos traumas causados
pelo pai, mas a densidade da narrativa fica por conta, exatamente,
do destino atingido pelo personagem incapaz de conferir outro
resultado à sua vida.
Em "Os Brabos", as condições rurais,
autênticas nas suas formulações, acompanhadas da linguagem regional,
são também definidores do íntimo das figuras retratadas. Aí o
artista da palavra toma a palavra para o fim bastante explícito de
usá-la como arte. É a palavra que chama a atenção para o homem da
terra e, pelo homem criado, o autor plasma o enigma da vida não
decifrado, por culpa das próprias paixões, ou do impacto dos acasos
erguidos no caminho.
Na narrativa "Ladainha nas Pedras", a
personagem humaníssima, chamada Bituta, labuta com o acaso, reza e
reza, pede outras circunstâncias de vida não apenas para si mesma,
mas para todos que a cercam. Preocupada com destinos alheios, Bituta
é uma personagem forte, mas vencida pelo acaso simbolizado por um
caminhão de bois desgovernado.
Nos dois textos centrais, Cyro de
Mattos traz moldes novos da frase, igualmente usa ritmos novos e
formas de expressão dinamizadas como se fossem instrumentos de
estética. Tudo servindo à versatilidade das construções que definem
o tema. Por fim, valores e conceitos regionais, presentes tantas
vezes, como no fato de, na narrativa "Os Brabos", Tidoramim gostar
muito de travar relações com uma vaca ou, como em "Ladainha nas
Pedras", a morte de Bituta atropelada por um caminhão de bois;
valores, enfim, servindo como ingredientes que abastecem as
estruturas dos processos que elaboraram a obra. O espaço revela
organização diante da trama, assim como a trama organiza-se frente
ao espaço exterior e interior, frente ao tempo psicológico e ao
cronológico, das personagens, intermediando planos e vozes, em jogos
de perspectiva. Bom exemplo aqui é o final de "Os Brabos".
Compõem a temática e a estilística do
conjunto de Os Brabos: a realidade e a psique do homem que vive
longe da cidade grande; as mentalidades configurando tipos; o
discurso revelando as mazelas; as forças compulsivas levando às
reações instintivas; a estrutura mimética; a recriação, pela
imaginação, da linguagem. Efeitos expressivos marcam a seleção de
frases em caixa alta na narrativa "Os Brabos", o que é encontrado
também em "Ladainha nas Pedras". Outra marca do livro: o gosto pela
combinação de palavras para recuperar os recursos da oralidade
rural.
A última narrativa, Somente Ele
Escutou a Fúria do Mar, pode receber um paralelo com a novela O Pai
Goriot, de Balzac, no que tange ao relacionamento entre pais ricos e
filhos ansiosos pela herança. Balzac criou duas filhas que recebem a
herança do pai rico, enquanto este ainda está vivo. Elas abandonam o
velho, têm vergonha por ele ter sido um mero burguês bem sucedido e
o fim do pobre homem é a solidão num lugar pobre e deplorável. Cyro
de Mattos cria na sua narrativa filhos igualmente perversos que
afastam o pai, levando-o para junto do mar, pois tal figura, nesta
altura de suas vidas, não passa de um empecilho. O fim do
personagem, entre as ondas do mar e com um facão na mão, confere uma
tragicidade à moda de um Adonias Filho. Mas a história, em todos os
seus momentos, evidencia a presença de seu autor e talvez represente
uma das mais pungentes narrativas de Cyro de Mattos.
A leitura crítica foi feita ao sabor
das lembranças da leitura das narrativas. Talvez o poderio encerrado
pelas cenas que envolvem Tidoramim, de "Os Brabos" ,tenham tomado a
dianteira, seguidas pelo jeito de ser de Bituta, em "Ladainha nas
Pedras". O calor do momento, imediatamente após a conclusão da
leitura do livro, revela as marcas suscitadas pelo menino que
gostava de bichos, do texto "Infância com Bicho e Pesadelo", e a
estupefação diante do destino do velho abandonado pelos filhos, da
última história.
A palavra mais usada neste texto foi
"força". A força do volume foi percebida quando ele, por
unanimidade, conquistou o Prêmio Afonso Arinos da Academia
Brasileira de Letras, e mais: cada história é uma história
antológica. Da sua extensa obra, tantas vezes premiada, o destaque
com essa reedição chega de forma emblemática: o volume de quatro
narrativas simboliza a arte da ficção escrita no século XX, no sul
da Bahia e, entre outros volumes igualmente bem logrados, de Cyro de
Mattos ou de outros autores, Os Brabos se ergue com toda a sua
força.
* Gerana Damulakis é poeta, ensaísta e crítica
literária. Autora de Sosígenes Costa – O Poeta Grego da Bahia e O
Rio e A Ponte. Colaboradora das revistas “Quinto Império”, do
Gabinete Português de Leitura e “Iararana”, e Suplemento Cultural do
jornal A tarde, Salvador..
Leia a obra de Cyro de Mattos
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