in Revista Veja,
Edição 1 620 - 20/10/1999
"[...] obra de um paulista como Regis Bonvicino ou de uma maranhense
como Lu Menezes. São versos, porém,
que não falam de nada, a não ser de eventos insignificantes
e objetos do cotidiano. Falsa magra, essa poesia esconde, por trás
da silhueta sequinha, um barrigão que é quase parnasiano
em seu fetiche pela forma". |
.
"Finalmente, o problema da comunicação poética
foi sepultado. Os poetas concretos, justiça seja feita, o levaram
em conta no início de seu movimento. Depois, perderam-se na erudição
hermética. Na década de 70, a poesia marginal tentou restabelecer
algum contato com o público. Mas logo veio
a fenecer, sob o peso de sua mediocridade e inconseqüência.
Hoje, reina o nada. Os poetas brasileiros não falam a ninguém
e parecem resignados com isso. Contentam-se em ser um mero "acúmulo
de material rico em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas
atirado desordenadamente numa caixa de depósito". A frase é
de João Cabral. Pertence a seu ensaio de 1954, mas descreve à
perfeição o insosso cenário
atual da poesia brasileira". |
O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto costumava lidar
com a morte no território em que mais se sentia à vontade:
na própria poesia. Em seu livro Agrestes, de 1985, chegou a dedicar
uma seção inteira ao tema. Sob a rubrica "A indesejada das
gentes", encontram-se textos em que o poeta olha a morte na cara, sem pestanejar,
muitas vezes com um humor áspero.
Mas a preocupação com o tema vinha de muito mais longe.
Cabral era um obcecado pelo fim da própria existência. Culpava
a educação católica por esse temor, que classificava
de "primário e imbecil" e associava inclusive à idéia
de inferno. Nos últimos anos, a cegueira o impediu de escrever,
privando-o da principal arma para lidar com essa inquietação.
Depois disso, ele ainda concluiu alguns poemas, como o que está
reproduzido na página ao lado. No cotidiano, enveredou pelo caminho
das manias, das superstições. "Cabral jamais ficava deitado
depois de acordar", conta Marly de Oliveira, mulher do escritor. "Para
ele, essa era uma atitude de quem está esperando o fim", ela completa.
Ao mesmo tempo, Cabral, educado em colégio de padres maristas, foi
buscar de volta os princípios católicos que tanto repudiara.
"A oração voltou a ser um conforto, como em seus tempos de
menino angustiado no Recife", diz o poeta carioca Armando Freitas Filho,
que foi amigo íntimo do escritor. Para Marly de Oliveira, a conversão
seguiu as mesmas linhas. "Não seria absurdo afirmar que, com os
anos, vieram à tona preocupações metafísicas
que Cabral reprimiu, pois não achava que fossem condizentes com
sua poesia", observa. João Cabral de Melo Neto morreu com 79 anos
no último dia 9 de outubro, às 11h30 da manhã. De
mãos dadas com a mulher, acabara de rezar um Pai-Nosso.
João Cabral, nunca é demais repetir, foi o último
grande poeta brasileiro deste século. O único que lhe fez
sombra foi Carlos Drummond de Andrade. No panorama internacional, sua grandeza
é também inegável. Só não foi reconhecida
por causa da marginalidade em que vive a língua portuguesa. João
Cabral costumava dizer que não tinha biografia, ou que esta se limitava
às mudanças de endereço no cargo de diplomata que
exerceu em boa parte da vida. Mas é claro que há muito mais
em sua história. Há as curiosidades, como um passado de futebolista
ou uma enxaqueca que durou cinqüenta anos (o que proporcionou uma
ode à aspirina). Ou a vida amorosa, que passou por dois casamentos.
Ou as amizades com nomes importantes da arte brasileira e estrangeira,
caso do pintor espanhol Joan Miró. Há também as inclinações
políticas, que se sabia estarem à esquerda, embora o poeta
sempre as tenha disfarçado. Há, enfim, material e até
"segredos" à espera de um grande e aprofundado estudo biográfico.
Desde que não se deixe em segundo plano a própria obra.
Talvez se possa dividir seu legado em três partes. Primeiro, ele
desmitificou a poesia como fruto da inspiração e do "sentimento".
Esse trabalho já vinha sendo feito desde a Semana de Arte Moderna
de 1922, passando depois por Bandeira e Drummond. Mas foi Cabral quem completou
o ciclo. Inimigo declarado dos derramamentos e melosidades, ele fez versos
secos, severamente controlados em seus efeitos. É uma poesia antilírica,
no sentido de que nela a emoção é pensada, as imagens
construídas e tudo que é supérfluo ou enfeitado
de plumas, rejeitado.
Como a melhor pintura moderna, uma de suas principais referências.
O segundo legado de Cabral está na poesia de cunho social, que reflete
sobre o Brasil. A dureza em sua poesia não era apenas questão
de gosto. Parecia-lhe a única maneira de retratar o cenário
inóspito do Nordeste brasileiro, um de seus temas fundamentais.
Há também algo de denúncia nesses textos. No entanto,
eles jamais deslizam para o panfletário ou para a comiseração.
Sua base é antes um humanismo exasperado, que, se por um lado acredita
que "a medida do homem/ não é a morte mas a vida", por outro
se dá conta de que as pessoas precisam ser periodicamente despertadas
para esse fato. "Falo somente para quem falo:/ quem padece
sono de morto/ e precisa um despertador/ acre, como o sol sobre
o olho:/ que é quando o sol é estridente,/ a contrapelo,
imperioso,/ e bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos",
escreveu.
O terceiro aspecto importante do legado de João Cabral é
sua preocupação em fazer uma poesia "participativa", que
busca a comunicação com o público. Ele refletiu profundamente
sobre esse assunto. Um dos únicos ensaios críticos que deixou
chama-se Da Função Moderna da Poesia, de 1954. Em seu centro,
estão justamente pensamentos sobre "o abismo que separa o poeta
de seu leitor" e a necessidade de encontrar formas para preencher esse
vácuo. Além disso, em 1956, ao reunir seus poemas num volume
chamado Duas Águas, o escritor redigiu uma nota para explicar o
título. As "duas águas" correspondiam a "duas intenções":
de um lado, fazer textos para serem lidos em silêncio; de outro,
"poemas para auditório, numa comunicação múltipla".
João Cabral (ao lado talvez de Vinicius de Moraes) foi um dos poucos
poetas brasileiros a se preocupar com isso. Daí ter aproximado o
verso da narrativa, em obras-primas como O Rio. Ou ter recuperado formas
populares, em Auto do Frade e, é claro, Morte e Vida Severina, seu
texto mais conhecido, musicado no palco por Chico Buarque de Holanda e
utilizado até pela TV.
De toda a rica herança de Cabral, só mesmo o rigor formal
parece ter sido plenamente explorado pelos poetas que o sucederam. A poesia
brasileira está hoje cheia de escritores competentes, virtuoses
da palavra e do verso. A lição construtivista de Cabral,
não há dúvida, foi aprendida. Está viva na
obra de um paulista como Regis Bonvicino ou de uma maranhense como Lu Menezes.
São
versos, porém, que não falam de nada, a não ser de
eventos insignificantes e objetos do cotidiano. Falsa magra, essa poesia
esconde, por trás da silhueta sequinha, um barrigão que é
quase parnasiano em seu fetiche pela forma. O viés social
que João Cabral procurou imprimir à sua obra também
ficou esquecido. Poucos se deixam assombrar por essa idéia, a de
pensar o Brasil em rimas.
Finalmente, o problema da comunicação poética foi
sepultado. Os poetas concretos, justiça seja feita, o levaram em
conta no início de seu movimento. Depois, perderam-se na erudição
hermética. Na década de 70, a poesia marginal tentou restabelecer
algum contato com o público. Mas logo veio
a fenecer, sob o peso de sua mediocridade e inconseqüência.
Hoje, reina o nada. Os poetas brasileiros não falam a ninguém
e parecem resignados com isso. Contentam-se em ser um mero "acúmulo
de material rico em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas
atirado desordenadamente numa caixa de depósito". A frase é
de João Cabral. Pertence a seu ensaio de 1954, mas descreve à
perfeição o insosso cenário
atual da poesia brasileira.
Pedem-me um poema
Pedem-me um poema,
um poema que seja inédito,
poema é coisa que se faz vendo,
como imaginar Picasso cego?
Um poema se faz vendo,
um poema se faz para a vista,
como fazer o poema ditado
sem vê-lo na folha inscrita?
Poema é composição,
mesmo da coisa vivida,
um poema é o que se arruma,
dentro da desarrumada vida.
Por exemplo, é como um rio,
por exemplo, um Capibaribe,
em suas margens domado
para chegar ao Recife,
onde com o Beberibe,
com o Tejipió, Jaboatão,
para fazer o Atlântico,
todos se juntam a mão.
Poema é coisa de ver,
é coisa sobre um espaço,
como se vê um Franz Weissman,
como não se ouve um quadrado.
Leia outras matérias de Graieb:
1 - As tribos poéticas, todos iguais, como vespas
2 - Reação dos leitores à matéria acima
3 - Os críticos escrevem bobagens |
|
CLÁUDIO WILLER - cjwiller@uol.com.br
Pobre
João Cabral - como se não bastasse ter morrido, como se não
bastasse antes de morrer ter estado cego e deprimido, ainda por cima sua
morte serviu como pretexto para depreciar a poesia contemporânea
brasileira.
Regis Bonvicino - regis@uol.com.br
SF,
só o tempo poderá responder a um jornalista superficial,
só o tempo e paciência !!!! O João Cabral era há
20 anos atacado pelas mesmas razões que o CG me atacou hoje. Cabral
era consiredado frio, cerebral, formalista, antipoeta. RBonvicino
Floriano
Martins <floriano@secrel.com.br>
Carta remetida à redação
de Veja:
Senhor Editor,
Difícil
encontrar um poeta brasileiro que tenha hoje alguma consideração
pelo jornalista Carlos Graieb. Pouco atento à poesia que se escreve
no país, que difere da que é ventilada a partir das redações
de jornais e revistas, Graieb segue articulando um ralo discurso em sua
tribuna na Veja. Ao redigir o necrológio de João Cabral de
Mello Neto, trouxe uma vez mais à tona o impróprio conceito
de poesia participativa, segundo ele a que "busca a comunicação
com o público". O próprio João Cabral entendia que
se há um "poema para auditório", há outro "para o
silêncio", cabendo acrescentar que o conceito de platéia possui
uma variável definida pelo nível de educação
e percepção da mesma. Não há abismo algum a
separar o poeta do leitor, pela simples razão de que o leitor de
poesia será sempre culto. No Brasil, há uma aberração
em curso: a proliferação de poetas incultos. E uma falsa
expectativa de vir a poesia a se confundir com a retórica da indústria
de comunicação de massas.
O
poema seguirá sendo a mais refinada das expressões artísticas.
O "insosso cenário atual da poesia brasileira" a que se refere Graieb
apenas confirma seu desconhecimento de poetas como Dora Ferreira da Silva,
José Santiago Naud, Ruy Espinheira Filho e Adriano Espínola,
para citar nomes de distintas gerações e experiências.
Agora, devemos considerar que há um vazio momentâneo, cujo
motivo de forma alguma deve ser atribuído ao que o jornalista situa
como um sepultamento da comunicação poética. A má
poesia que se escreve hoje no Brasil ressente-se sobretudo da falta daquela
razão ardente que caracteriza toda grande poesia. É uma poesia
que não sangra. Mas não devemos crer na eficácia de
uma inversão de valores, sob o risco de se cair, como já
o fizemos, na tolice participativa referida.
Basta
ver o caso do próprio João Cabral, onde sua defesa da poesia
como uma construção verbal foi confundida com um abandono
do sentido, uma displicência no tocante à ideologia da escrita,
ou seja, sua dimensão ontológica. A imagem poética
de alguma forma foi desmembrada da experiência de vida. Não
se responsabiliza aqui a aposta de Cabral, mas antes sua leitura desfocada,
algo intencional. A poesia é construção verbal, sim,
porém carregada de sentidos. Por outro lado, se não encontram
os poetas brasileiros boa difusão de sua obra, teríamos que
sondar até que ponto, além dos rotineiros problemas editoriais,
não haveria aí uma participação negativa do
chamado jornalismo cultural, até que ponto a imprensa no Brasil
não estaria sendo feita por jornalistas com a qualificação
de um Carlos Graieb.
Atenciosamente,
Floriano Martins
Elaine Pauvolid" <pauvolid@olimpo.com.br>
Amigos,
a questão não
me parece restrita ao contra ou a favor a respeito do que escreveu o colunista
CG sobre o insosso estado da poesia brasileira. Prefiro pensar: precisamos
ser todos João Cabral ou Drummond? Precisamos ser geniais
como eles? Ou queremos escrever nossos versos? Ganha-se mais pensando
na poesia do que analisando o nível de genialidade que se alcança
a cada rima.
Por isso, leio o que CG escreveu
com a consciência clara de que só mais tarde os que escrevem
hoje poderão ser apontados como grandes ou pequenos e que não
é possível que CG não consiga ver quanta gente boa
anda escrevendo poesia de qualidade num país onde a grande maioria
possui acesso limitadíssimo à cultura, quando possui.
Saudações
poéticas!
Elaine Pauvolid
Soares Feitosa comenta o artigo de
Meta a colher, contra ou a favor: email
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