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            Ferreira Gullar 
   
            Ferreira Gullar Conta Tudo!!!
 
 
 
			Em entrevista 
            exclusiva, o poeta Ferreira Gullar fala de um montão de coisas ao 
            poeta e crítico literário 
            Weydson Barros 
            Leal. Veja alguns tópicos, quentissimos: 
 a) - ".......No processo do movimento concretista, eu, que sempre 
            fui uma pessoa muito crítica — e autocrítica — percebi que aquilo, 
            que se justificava pelo momento histórico, tinha-se esgotado, e que 
            caminhar na mesma direção seria destruir a poesia mesmo.
 
 b) Eu digo isso por mim, basta você ver o que escrevi depois... Se 
            ainda estivesse naquilo, como o "coitado" do Augusto — que é bom 
            poeta, (e digo apenas o Augusto porque o Haroldo não é poeta — então 
            tanto faz que ele tenha ficado naquilo como não, porque como ele não 
            é poeta mesmo então nada se perdeu, assim como o Décio que também 
            não é).
 
 c) ........eu teria ficado como ele, (Augusto) que depois dos poemas 
            que escreveu antes do movimento concretista — muito bons — virou 
            esse poeta aí, que fica fazendo tradução, fica falando pela voz dos 
            outros, quando ele era um poeta que poderia ter construído uma obra 
            muito importante. Ficou castrado. E eu acho que o Haroldo é o 
            principal responsável pela castração do irmão.
 
 d) "Não existe o exercício da crítica literária porque não há lugar 
            onde exercê-la. Antigamente a gente tinha o rodapé de crítica, tinha 
            o Álvaro Lins que semanalmente escrevia sobre o último romance 
            publicado pelo Graciliano, ou o último livro de Contos do Breno 
            Acioly, ou o último livro de poemas do Jorge Lima. Isso sempre 
            estava lá. Mas os jornais acabaram com a crítica literária como 
            acabaram com a crítica de teatro."
 
 e) E mais e muito mais! Verdadeira aula de poesia, leia e comente. 
            Matéria de maior importância para entender a literatura brasileira 
            dos últimos 50 anos!
 
 Esta entrevista 
            foi publicada originariamente no Diário Oficial de Pernambuco que 
            mantém, por conta de muito idalismo do poeta Mário Hélio, um 
            excelente suplemento literário, de circulação mensal. Ei-la, na 
            íntegra: 
 
   
			Ferreira Gullar 
            nasceu eu em São Luís do Maranhão aos dez dias do mês de novembro do 
            ano de mil novecentos e trinta.  Foi batizado 
            como José Ribamar Ferreira, mas por ter-lhe sido atribuída, quando 
            ainda muito jovem, a autoria de poemas de péssimo gosto escritos por 
            um certo José Ribamar Pereira, resolveu adaptar o sobrenome de sua 
            mãe - Goulart - e criar um novo nome, inconfundível.  Até os 21anos, 
            quando mudou-se definitivamente de São Luís para o Rio de janeiro, 
            foi locutor de rádio, editor de revistas literárias e desenvolveu 
            sua cultura poética com leituras sistemáticas de poetas brasileiros 
            e estrangeiros. Autodidata no aprendizado do francês, foi em visitas 
            à Biblioteca Pública de sua cidade, à maneira de Rimbaud, que passou 
            a compreender a poesia moderna e deu os primeiros passos no estudo 
            da Arte.  Aos dezenove 
            anos foi premiado em um concurso de poesias promovido pelo jornal de 
            Letras e já publicara Um pouco acima do chão (l949), coletânea de 
            poemas com ressonâncias de suas leituras de adolescência, mas que 
            prenunciava o poeta de A Luta Corporal (l954).  A ida para o Rio 
            de janeiro foi para ele a única maneira de avançar sobre os espaços 
            não mais possíveis de encontrar em sua terra natal: "Primeiramente, 
            fugi. Fugi da quitanda, fugi da família, da vida sufocante e pouca. 
            Fugi pela poesia, inventei um mundo feérico e feroz. Um suicídio 
            esplendente: ateei fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se 
            fosse meu corpo. Não era. E sobrevivi, sobrevivi, sobrevivi. Abati a 
            poesia, calquei-a sob os pés, mijei nela. Lavei as mãos, vi-me 
            concretista, neoconcretista, enterrei o poema numa casa da Gávea. E 
            sepultei com ele a metafísica".  No Rio de 
            janeiro, colaborou em jornais e revistas como poeta e principalmente 
            como crítico de arte, sendo com estes os seus primeiros contatos 
            intelectuais. A partir d’A Luta Corporal fez parte do movimento 
            concretista com o qual rompeu para, em 1959, teorizar e liderar o 
            movimento neoconcretista. Em 1961, considerando o novo movimento 
            esgotado, dedicou-se à cultura popular, fazendo parte do CPC da UNE, 
            do qual foi presidente até o golpe militar de 1964.  Mas, a partir de 
            1962, seus textos já refletiam a preocupação em denunciar e combater 
            a opressão e as injustiças sociais. Reelabora então sua experiência 
            poética com textos de cordel até chegar aos poemas de Dentro da 
            Noite Veloz, de 1975. Em 1964 publica o ensaio Cultura Posta em 
            Questão, em que aborda temas de cultura popular, artes plásticas e 
            poesia, e em 1969 reaparece com Vanguarda e Subdesenvolvimento, onde 
            teoriza novos conceitos para uma vanguarda estética.  No teatro, 
            Ferreira Gullar escreveu , em parceria com escritores amigos, peças 
            que também abordavam a situação social do povo brasileiro: Se correr 
            o bicho pega, se ficar o bicho come (l966), com Oduvaldo Viária 
            Filho; A saída? Onde fica a saída? (l967), com Armando Costa e A.C. 
            Fontoura; e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (l968), com Dias 
            Gomes. Em 1979 editou a peça Um rubi no umbigo.  Exilado do 
            Brasil em 1971, Escreveu em Buenos Aires, em 1975, o livro que 
            marcaria toda sua obra, Poema Sujo, publicado em 1976. De volta ao 
            Brasil, publica Antologia Poética e Uma Luz do Chão, em 1978, e Na 
            Vertigem do Dia, um novo livro de poemas. Em 1986, lança Crime na 
            Flora, reflexões escritas ao longo dos últimos trinta anos, e em 
            1989 publica Indagações de hoje e A estranha Vida Banal. O seu 
            último livro de poemas é Barulhos, de 1987.  Hoje, o poeta 
            Ferreira Gullar divide seu tempo entre poemas, análises e reflexões 
            sobre artes plásticas escolhendo escrever rigorosamente sobre o que 
            lhe apaixona; em aparições — quando convocado, no plenário do 
            Conselho Federal de Cultura (órgão fictício na gestão do atual 
            governo) e como consultor e redator da Rede Globo de Televisão 
            realizando textos e adaptações para mini-séries e especiais. Até o 
            início de 1995 foi presidente do IBAC (Instituto Brasileiro de Arte 
            e Cultura), de onde saiu, por conspirações astrais, com larga 
            cobertura da imprensa.  Esta entrevista 
            foi realizada nos últimos dias do mês de novembro de 1995, na casa 
            do poeta, no Rio de janeiro. No primeiro dia de anotações e 
            gravações conversamos cerca de quatro horas ininterruptas, numa das 
            salas de seu apartamento, em Copacabana, cercados por livros de 
            poesia, filosofia, artes, por desenhos e pinturas de artistas amigos 
            (e do próprio poeta) e, no final, na silenciosa companhia de seu 
            gato.  Devido a 
            trabalhos de instalação e ampliação de uma nova rede de cabos 
            telefônicos e de televisão realizados em toda área do bairro, grande 
            parte da entrevista se deu, mesmo a janelas cerradas, com o ruído 
            intermitente de britadeiras dois andares abaixo da janela onde 
            estávamos. Este fato, entretanto, não alterou a delicada atenção com 
            que o poeta, às vezes deitado em seu sofá, sempre respondeu a todas 
            as minhas perguntas. Não houve, antes ou durante a entrevista, 
            restrições a assuntos ou a aprofundamentos em temas que pudessem ser 
            considerados incômodos ou indelicados. Todas as questões, pronta e 
            satisfatoriamente respondidas, refletem o poeta ousado, o homem 
            irreverente e o pensador polêmico que resumem toda a experiência 
            histórica do poeta Ferreira Gullar. Um homem simples, afável, de 
            firme personalidade, mas que não perde, em nenhum momento, a 
            oportunidade do humor ou o halo da delicadeza em seus gestos e 
            palavras. Um poeta como poucos no resumo da melhor poesia 
            brasileira. Um poeta referencial na história recente da poesia 
            moderna da América Latina e do mundo. Um poeta-maior para os olhos 
            que sobre o século vinte buscarem arem uma obra de força, de 
            esperança e de vida. 
 Weydson — Há uma geração de poetas, posterior à sua, para quem os 
            referenciais literários são completamente diversos dos chamados 
            "luminares" da poesia moderna brasileira. Fale um pouco sobre isso.
 
 Gullar — Na verdade, é uma geração que absorveu uma certa desordem e 
            deu a ela uma ordem que é diferente da nossa. Para eles, Quintana, 
            por exemplo, tem uma importância muito maior do que Drummond e 
            outros que foram os orientadores, os "luminares" da nossa geração. O 
            Quintana tem mesmo algo muito pessoal, é um poeta muito interativo, 
            que tem muito humor, ele é diferente... E é por isso que eu também 
            acho importante abrir a discussão, torná-la um pouco mais aberta a 
            coisas diferentes da gente.
 
 Weydson — E qual, então, seria a importância de Mário Quintana 
            dentro do contexto da poesia moderna brasileira?
 
 Gullar — Bem, como se sabe, eu sou de São Luiz do Maranhão, e quando 
            eu li Quintana pela primeira vez eu era bem garoto - numa antologia 
            que caiu na minha mão e tinha alguns poemas dele, eu decorei alguns. 
            Foi um poeta que me chamou a atenção, embora eu não tenha muitas 
            afinidades diretas com ele. Mas uma coisa eu combato, e que é um 
            problema que continuamos a ter na literatura brasileira: a tendência 
            ao exclusivismo. De repente, o único romancista é o Graciliano 
            Ramos, aí os outros desaparecem: então o José Lins "não tem 
            importância nenhuma", nem o Jorge Amado, nem o Schmidt, nem o Ciro 
            dos Anjos...
 
 Weydson — Seria a tendência à moda, no Brasil?
 
 Gullar — É... Uma época é Drummond, e desaparece todo mundo em 
            volta; aí é João Cabral, e desaparece todo mundo em volta. Essa 
            coisa é que é empobrecedora da literatura. Em outros países isso não 
            existe; é uma coisa muito brasileira... Na verdade, cada poeta é um 
            meta, não tem esse negócio de hierarquia. Há coisas que o Quintana 
            diz que só o Quintana diz; há coisas que o João Cabral diz que só o 
            João diz; o que o Drummond diz só ele diz, compreende? É claro que 
            existem poetas que têm mais complexidade, que têm mais riqueza, mas 
            você não pode medir por isso, porque assim você termina empobrecendo 
            a literatura, estabelecendo hierarquia e desconhecendo o valor real 
            da criação literária.
 
 Weydson — Numa entrevista recente, você disse que escreve 
            esporadicamente, e só quando tem "algo novo a dizer". Você acha que 
            o que difere o bom poeta dos demais é esse discernimento na hora de 
            escrever?
 
 Gullar — Sim, claro. Eu não estou querendo estabelecer um 
            "democratismo" que inclui tudo. Mas eu acho que de um determinado 
            patamar em diante todos são poetas, quer dizer, quando você chega no 
            patamar de Vinicius, Jorge de Lima Murilo Mendes, Drummond, todos 
            são poetas... Eu me lembro quando comecei a ler Murilo Mendes — eu 
            era garoto em São Luiz — Mundo Enigma, Poesia Liberdade, eu achei 
            aquilo tudo deslumbrante. Eu deitava na minha rede, à tarde, e punha 
            do lado uma pilha de livros. Todos os dias eu lia Manuel Bandeira, 
            Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Eu adorava todos eles. Eu 
            não estabelecia aquela coisa de que um era melhor de que o outro. 
            Quando eu lia Bandeira, eu gostava daquela emoção contida, pura; 
            depois eu pegava o maluco do Murilo Mendes e lia aquelas coisas: "as 
            nuvens jogam boxe"..., depois ia para Drummond, aquele troço mais 
            denso... Eu sempre procurei passar pros jovens, depois, quando eu já 
            estava mais experimentado, essa idéia da pluralidade, sempre a idéia 
            da pluralidade.
 
 Weydson — E nessa época de S. Luiz, ainda dentro dessa idéia da 
            pluralidade, você chegou também a conhecer poetas estrangeiros?
 
 Gullar — Sim, claro. Alguns eu já havia tido oportunidade de 
            conhecer. Foi aí que eu comecei a aprender francês por minha conta. 
            Pegava umas traduções. Um dia um amigo me mandou as Elegias de Duíno, 
            e eu adorei o Rilke. Agradeci com uma carta entusiasmada dizendo 
            "que poeta maravilhoso", daí eu saía atrás de outros livros desse 
            poeta. E assim, nessa procura, eu fui conhecendo Valéry, Rimbaud, 
            Mallarmé.
 
 Weydson — Que poeta, ou poetas, você recorda de ter, nessa época, 
            mexido realmente com você?
 
 Gullar — Na verdade, não foi um ou dois. Alguns poetas me revelaram 
            o que era a poesia. Porque o fundamental é saber "o que é a poesia". 
            Você nunca chegará a Teresina se não souber pra que lado fica 
            Teresina. Eu não digo que a poesia seja uma coisa definível, mas 
            você tem de saber o que é isto: "aonde eu quero chegar"; ou seja, 
            esse "aonde eu quero chegar" tem de existir. Eu me lembro quando li 
            Fernando Pessoa, Drummond, Valéry, e alguns versos me marcaram ao me 
            mostrar o que era a poesia, como quando Valéry dizia: "Beau Ciel, 
            vrai ciel, regardez-moi, qui change". Isso não é apenas uma idéia, 
            mas a sua colocação diante da realidade...
 
 Weydson — Este é um poeta que me interessa, nesse momento, por me 
            parecer extremamente cerebral, de uma poesia muito elaborada, até 
            certo ponto contida. Em que momentos a sua poesia sé aproxima da 
            dele?
 
 Gullar - Ele é cerebral mas também existe uma lenda em tomo de 
            Valéry. O poema "Le Cimetíère Marin" (0 Cemitério Marinho), por 
            exemplo é um poema altamente comovido. Veja bem, uma coisa é a 
            elaboração, é a atitude do poeta em relação à poesia e aos seus 
            meios de expressão, que em alguns é mais cerebral, mais 
            racionalizado, mas, seja de quem for, se ele não se comove não 
            existe poesia. Porque a única coisa que a poesia faz é comover. A 
            poesia não cura dor de dente, não resolve problema econômico, não 
            desintegra o átomo, não serve para nada. A única coisa que ela faz é 
            comover. Porque não há um conhecimento, algo que se ganhe através da 
            poesia, o que ela faz é nos comover. É uma mentira que nos comove. 
            Afinal, a realidade do mundo é insuportável. Por isso se faz poesia, 
            se faz arte, se faz música, etc.
 
 Weydson — Então a poesia, como a arte em geral, é uma forma de fugir 
            da realidade?
 
 Gullar — Eu não diria que é uma forma de fuga, porque ao mesmo tempo 
            ela procura tomar a vida possível. Ela não quer sair da vida. O 
            homem não faz poesia para sair da vida, ele faz poesia para ter 
            coragem de viver. Além disso, há o fato de que o homem nasce pra 
            morrer. Então, nada tem sentido. E por isso a religião existe, 
            porque ela é a resposta para isso, porque ninguém agüenta...
 
 Weydson — Você tem religião?
 
 Gullar — Não, infelizmente.
 
 Weydson — Por que "infelizmente" ?
 
 Gullar — Porque é bom ter religião. A religião é que alivia você 
            desse pesadelo de que o cara nasce pra morrer. Entremente, você ama, 
            faz poesia, se diverte, faz o que quiser. Agora, numa certa altura 
            da sua vida, quando você leva uma porção de cacetadas é que a morte 
            passa a existir - porque no começo a morte é apenas ficção: você 
            sabe que se morre, mas você não pensa que você vai morrer — mas no 
            momento que ela passa a existir, no momento que morre seu filho, aí 
            é verdade... Na hora que morre o seu amigo querido, aquele que lutou 
            com você, que era seu companheiro (ou sua companheira) e que não 
            existe mais, aí...
 
 Weydson — Apesar de dizer que a morte era um ficção, em toda sua 
            vida — pela própria condição de intelectual contestador, poeta, 
            pensador, em épocas de ditaduras e regimes totalitários — você 
            esteve sempre no limite do risco de morte, ou muito próximo desse 
            limite...
 
 Gullar — A morte é um tema permanente em minha poesia, e eu sempre 
            achei insuportável ter que morrer. A minha poesia está cheia disso, 
            dessa luta com a morte. Mas, hoje, olhando bem, eu vejo que aquilo 
            era brincadeira. Porque eu nunca tinha sentido de fato a morte, eu 
            nunca a tinha palpado.
 
 Weydson - É mais fácil, então, escrever sobre a morte quando não a 
            sentimos tão próxima?
 
 Gullar — Até o amigo, ela ainda é suportável; o negócio é quando 
            você perde um filho... Porque no fundo, esse é o processo da própria 
            vida. E talvez o homem seja constituído de maneira a não conhecer a 
            realidade toda de uma vez, porque, assim, acho que ele não 
            agüentava...
 
 Weydson — Isto quer dizer que o conhecimento da "verdade" seria 
            insuportável?
 
 Gullar - Mas a verdade absoluta não existe...
 
 Weydson — Então como funciona, a seu ver, o processo da criação de 
            tudo?
 
 Gullar — Eu sou uma pessoa perplexa diante do absurdo da existência. 
            Quando eu ouço na televisão que todo o sistema solar é algo em torno 
            de O,2% da massa do sol e que o sol é uma migalha no que se conhece 
            do universo, é uma loucura... (risos) Então o que é meu gatinho 
            (mostrando o seu gato no tapete) dentro disso tudo? Essa idéia de 
            que houve um tempo em que era o Nada é um absurdo, não é possível 
            imaginar que algum dia era Nada... mas é fascinante imaginar que 
            cada um de nós faça parte dessa coisa extraordinária que é o 
            universo.
 
 Weydson — No início de sua vida literária, a forma fixa era algo que 
            você dominava e utilizava com freqüência. Em que momento você 
            percebeu que o verso livre era o seu verdadeiro meio de expressão?
 
 Gullar — Eu tinha, de fato, um grande domínio das formas clássicas, 
            como o soneto, e toda a métrica e rima, que eu aprendi e exercitava 
            sozinho. A tal ponto, que eu falava em decassílabo. Porque isso é 
            uma coisa que você assimila, e, quando eu percebia, estava falando 
            realmente em decassílabo. Quando eu descobri a poesia moderna, 
            quando chegaram seus principais sinais nos suplementos literários em 
            São Luiz, eu fiquei espantado, nos primeiros momentos. E minha 
            primeira reação foi rejeitar aquilo. Eu achei estranho aquele 
            negócio de "lua simétrica", de Drummond, e dizia: "Poxa, que troço 
            esquisito esse!" E não só a adjetivação, mas também o uso das 
            palavras. Palavras banais usadas em poesia... Então eu tratei de 
            buscar explicação para aquilo. E comecei a ir à Biblioteca Municipal 
            e procurei ler livros sobre a poesia moderna. Foi aí que eu descobri 
            O empalbador de passarinhos do Mário de Andrade, Cinzas do 
            Purgatório, do Otto Maria Carpeaux; Álvaro Lins, etc. Fui lendo os 
            críticos modernos e fui entendendo o que era aquilo. E eu vi que 
            aquele "troço" tinha sentido. Que aquilo não era nenhum disparate. 
            Foi exatamente na época que eu havia publicado o meu primeiro livro, 
            Um pouco acima do chão, que é um livro ingênuo, um livro imaturo, 
            mas que já possuía alguma coisa livre. O fundamental é que eu 
            descobri por que havia o verso livre... Eu me lembro que nessa época 
            eu li uma frase que era atribuída a Gauguin, que dizia mais ou menos 
            isso: "Quando eu aprender a pintar com a mão direita, passarei a 
            pintar com a mão esquerda e quando eu aprender a pintar com a mão 
            esquerda, passarei a pintar com os pés". Essa frase teve uma enorme 
            repercussão na minha cabeça porque aí eu vi que a poesia que eu 
            tinha feito até ali era uma poesia de habilidade, do domínio técnico 
            e que a verdadeira arte — que eu acabava de descobrir — tinha de ser 
            a invenção de sua própria técnica. Por isso eu não podia mais me 
            ater a normas prontas, eu tinha de descobrir no processo a forma do 
            poema, e esta é, enfim, a essência do livro A Luta Corporal.
 
 Weydson — Cada poema passaria a ter uma estrutura própria...
 
 Gullar — Bem, cada poema, que nasce de uma experiência, de uma 
            emoção, de uma descoberta, tem que gerar sua própria forma. Então, 
            no fundo isso significava que eu rejeitava os macetes, a habilidade, 
            a própria sabedoria técnica, soluções prontas para serem 
            transferidas de um poema para outro. Mas isso era uma proposta 
            fáustica, uma loucura, ou seja, eu radicalizei a atitude da busca da 
            forma nova de tal maneira. Logo, A Luta Corporal é um livro em que 
            num primeiro momento eu ajusto contas com a poesia clássica e faço 
            uma serie de poemas em que violento suas normas e não uso mais 
            metrificação ou rima, como é o caso dos "poemas portugueses". A 
            partir daí eu começo a buscar uma outra coisa. Agora, o interessante 
            é que quando eu me livrei daquelas formas eu descobri o mundo.
 
 Weydson — Fale um pouco dos poemas portugueses...
 
 Gullar — Quando eu me lembro dos poemas portugueses, a maneira, com 
            que eu os elaborava, eu vejo que só cabia neles o tipo de matéria 
            que era a deles. Eu só via no mundo o que cabia neles, o que cabia 
            na minha técnica, o que sabia na minha linguagem. O que não sabia eu 
            não via. Resultado: quando eu abandonei a antiga linguajem eu vi o 
            mundo só que eu vi o mundo sem explicação. Um mundo inapreensível, 
            que eu não podia formular. Foi aí que eu comecei a buscar, num 
            esforço louco, a minha nova formulação. E para isso eu me apoiei em 
            quem? Eu me apoiei nos poetas que eu acabava de descobrir: em 
            Drummond, em Fernando Pessoa, em Murilo Mendes, em Mallarmé, em 
            Rimbaud, enfim, em tudo que constituía a minha nova cultura poética.
 
 Weydson — Você já deixou claro, em várias oportunidades, uma 
            preocupação permanente com o construir-se do poema, com seu processo 
            de construção, mas parece-me que você também não abdica da sensação 
            — o que veio a ser um dos problemas, a meu ver, do concretismo, com 
            uma perigosa perda da emoção. Você nunca temeu, em nenhum momento, 
            uma diminuição dessa emoção, em nome de um racionalismo exagerado?
 
 Gullar — Eu nunca fiz poesia a partir de poesia. Eu sempre fiz 
            poesia a partir da vida, a partir da experiência. Portanto, quando 
            eu digo "buscar a forma" eu estou dizendo buscar o "modo de 
            expressar" alguma coisa. Por exemplo, quando eu me despi da forma 
            literária clássica — vamos dizer assim, porque na verdade eu me 
            libertei de toda uma literatura, de toda uma "simbolização do 
            mundo", que era aquela linguagem — um dia eu passava na frente de 
            uma janela, à tarde, numa rua de São Luiz, e olhei em cima da mesa 
            umas peras, umas frutas, num prato, naquela sala vazia... O sol 
            forte, queimando São Luiz, e aquelas peras ali... Então, longe da 
            "definição literária", segundo a qual aquilo não tinha nada a ver ou 
            não cabia na literatura (mas, ali, a formulação é a mais imediata 
            possível, é quase descritiva), eu escrevi: "As peras, no prato,/ 
            apodrecem/ O relógio, sobre elas,/ mede a sua morte?" A partir daí o 
            poema vai se desenvolvendo como uma indagação em tomo da própria 
            realidade, de uma coisa que eu acabava de descobrir ali. Logo, nunca 
            é formal, no sentido de que eu esteja atrás da "forma nova", não eu 
            quero descobrir a forma que me permita dizer a vida, que possa dizer 
            a minha experiência vivida. Mas não a forma por si mesma, porque 
            isto não existe, isto conduz ao concretismo, ao formalismo e ao 
            desgaste da arte contemporânea — a forma pela forma, o novo pelo 
            novo, simplesmente.
 
 Weydson — O concretismo fez parte desse desgaste?
 
 Gullar — O concretismo é uma bobagem, como disse Drummond. Eu 
            participei da experiência concretista no seu começo, e era uma 
            tentativa de se responder a um impasse ao qual a Geração de 45 tinha 
            conduzido a poesia brasileira. Porque a poesia moderna brasileira 
            que nasce em 22, que ganha uma formulação nova a partir de 30 — com 
            os poetas de 22 e os novos poetas que aparecem (ou que na verdade 
            amadurecem) como Drummond, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, 
            Murilo Mendes, Jorge de Lima e a Geração de 45. Porque a geração de 
            45 rejeita o expontaneísmo que vem de 22 e ao mesmo tempo rejeita a 
            formulação amadurecida que a geração de Drummond, Murilo Mendes e 
            Jorge de Lima tinha dado à poesia. Isto porque eles já encontram uma 
            poesia pronta, de alto nível e por isso eles resolveram radicalizar 
            na forma. Eu me lembro que se dizia nessa época que a poesia era um 
            exercício profissional, era uma coisa que tinha de ser realizada com 
            lucidez, que o domínio técnico era fundamental, que os poetas 
            parnasianos tinham o seu valor — exatamente o que foi negado por 22. 
            Então, com a revalorização do formalismo, o soneto renasce e o 
            formalismo que está em João Cabral. Só que, como o João Cabral é um 
            grande poeta, nunca deixou que essa formalidade sufocasse nele a 
            criatividade, a emoção, a coisa de vida que ele quer comunicar. Mas 
            outros foram vítimas desse formalismo. Ora, mas aí João Cabral toma 
            a situação pior para nossa geração. Porque aí, quando nós chegamos, 
            não só já tinha o Drummond e os outros, como tinha um cara que 
            chegou e formulou rigorosamente, de uma outra maneira, aquela 
            poesia, dando um nível formal que os caras anteriores não tinham 
            dado. Então é por isso que eu digo que a poesia concreta, embora 
            tenha surgido como a negação da Geração de 45, ela é, na verdade, o 
            prosseguimento dessa geração. A poesia concreta é o formalismo da 
            Geração de 45 levado às suas últimas conseqüências.
 
 Weydson — E a esgota?
 
 Gullar — Não... O problema é que essas "últimas conseqüências" são 
            desastrosas. Porque o João Cabral já tinha levado às últimas 
            conseqüências. E a partir dali era a negação da própria poesia... 
            Embora o pessoal de São Paulo queira encobrir ou rescrever a 
            história, eu, como um dos principais formuladores desse movimento, 
            digo que idéia fundamental, a idéia mais sinistra — digo isso me 
            culpando — é minha. Porque a proposta deles, no começo, 1952, 53, 
            54, era fazer o novo verso, e eu entrei com uma idéia radical, 
            subversiva, advinda da Luta Corporal, dizendo: "Não se trata de 
            fazer o novo verso, trata-se de acabar com a sintaxe. Trata-se de 
            acabar com o discurso, Porque eu tinha acabado de fazer A Luta 
            Corporal, e no "Roseiral" eu tinha arrebentado o discurso, logo, 
            para mim, a experiência poética tinha sido levada às últimas 
            conseqüências mesmo. E já tinha acabado. Então eu falei: "Trata-se 
            de fazer uma poesia sem discurso, porque o discurso, dizia eu, é 
            unidirecional... (E eu até usei essa palavra porque como eu havia 
            sido locutor da rádio Timbira, em São Luiz do Maranhão, lá eu dizia 
            assim: "Estamos transmitindo por uma antena unidirecional de 1490 
            Khz..." Portanto, essa expressão "unidirecional" era tão minha — 
            porque nenhum deles tinha sido locutor da rádio Timbira... Por isso 
            que eu disse que a linguagem era "unidirecional" — o que, aliás, é 
            um erro, porque a linguagem poética é ambígua, mesmo com o 
            discurso... Mas eles adotaram essa idéia.. Então a Poesia Concreta, 
            que por outro lado também tinha sido influenciada por Waldemar 
            Cordeiro, que era um teórico dos pintores concretistas de São Paulo, 
            e que era uma pessoa de um esquematismo total como teórico — (isso 
            também porque a poesia concreta bebe na pintura concreta, que era 
            muito anterior) — ele influiu na cabeça do Augusto, do Haroldo, 
            etc., então esse sectarismo empobreceu a poesia de tal maneira que 
            eliminou dela a única coisa que justifica a poesia, que é a emoção.
 
 Weydson — A espontaneidade também ?
 
 Gullar — Não me refiro à espontaneidade porque João Cabral não tem 
            espontaneidade nem emoção. Eu mesmo sou um poeta da maior exigência 
            formal no que faço, mas há sempre emoção. Não é a espontaneidade no 
            sentido de ficar fluindo à toa, eu digo "emoção", e seja por que 
            caminho for, se você não chega à emoção você não chega à poesia. O 
            próprio Valéry, um poeta cerebral, ele só é poeta quando atinge, 
            através daquilo, a emoção.
 
 Weydson — Como pensador e formulador do concretismo, o fato de você 
            ter lançado o neo-concretismo foi uma tentativa de não sucumbir com 
            o que já considerava inviável ?
 
 Gullar — No processo do movimento concretista, eu, que sempre fui 
            uma pessoa muito crítica — e autocrítica — percebi que aquilo, que 
            se justificava pelo momento histórico, tinha-se esgotado, e que 
            caminha na mesma direção seria destruir a poesia mesmo. Eu digo isso 
            por mim, basta você ver o que escrevi depois... Se ainda estivesse 
            naquilo, como o "coitado" do Augusto — que é bom poeta, (e digo 
            apenas o Augusto porque o Haroldo não é poeta — então tanto faz que 
            ele tenha ficado naquilo como não, porque como ele não é poeta mesmo 
            então nada se perdeu, assim como o Décio que também não é) eu teria 
            ficado como ele, que depois dos poemas que escreveu antes do 
            movimento concretista — muito bons — virou esse poeta aí, que fica 
            fazendo tradução, fica falando pela voz dos outros, quando ele era 
            um poeta que poderia ter construído uma obra muito importante. Ficou 
            castrado. E eu acho que o Haroldo é o principal responsável pela 
            castração do irmão.
 
 Weydson — Você acha que os críticos dão excessiva importância à sua 
            poesia política ?
 
 Gullar — A fase estritamente política de minha poesia é muito 
            reduzida, e o número de poemas realmente políticos é insignificante. 
            Mas os críticos, de repente começam a me colocar como se eu fosse um 
            poeta político porque, como cidadão, fui realmente muito atuante. 
            Eles confundem a coisa. A mesma coisa é o concretismo na minha 
            poesia. Esse é um período que dura na verdade poucos anos, e as 
            obras que escrevi aí são de quantidade reduzida. E se eu tivesse 
            insistido naquele caminho eu jamais teria escrito o Poema Sujo, 
            Dentro da Noite Veloz, Na Vertigem do Dia, coisa que me gratificam 
            porque eu sei que representam uma experiência de vida e emoção nas 
            pessoas. E eu sei disso porque as pessoas me dão retorno.
 
 Weydson — Fale um pouco sobre experiência do Livro-Poema.
 
 Gullar — Eu acho que foi bastante interessante, bastante inovadora. 
            O poema "0 formigueiro" - que foi editado, é o precursor do que 
            seria o "Livro-Poema". O "Livro-Poema" não é apenas um depósito de 
            poemas. Nele não uso as páginas do livro, o volume do livro, para 
            depositar arbitrariamente 10, 20 ou 30 poemas. A relação entre o 
            poema e as páginas do livro é tal que o livro tem o número de 
            páginas determinado pelo poema, a posição das palavras está 
            determinada pelo que no poema está dito, e até a forma das páginas. 
            Logo, ele é um livro estruturalmente integrado página e palavra, 
            silêncio e voz. E esse livro, que não tinha nem capa, era só livro, 
            era quase "le-livre" de Mallarmé. Essas experiências então deram 
            origem aos poemas espaciais. Porque quando eu fiz esse poema que não 
            tinha mais capa e que era um corpo tridimensional, quase uma 
            escultura com palavras, eu fui para o espaço diretamente e comecei a 
            construir os poemas não objetos de madeiras — cubos com palavras 
            dentro — e outras coisas.
 
 Weydson — Como era a idéia do "poema-enterrado"?
 
 Gullar — O poema-enterrado era o seguinte: é uma sala abaixo do 
            chão, no subsolo. Você desce por uma escada, abre a porta do poema, 
            e entra no poema. É um cubo de 2 metros por 2 metros: uma sala que 
            foi construída no quintal do Oiticica. (Eles iam construir uma caixa 
            d'água, mas aí ele insistiu que tínhamos que construir o poema, e o 
            pai dele, também pirado, construiu), Era quase como um túmulo. No 
            centro dessa sala tinha um cubo vermelho de meio metro de lado. 
            Então levantava-se o cubo. Embaixo tinha um cubo verde com trinta 
            centímetros de lado. Levantava-se este cubo. Aí sobrava um cubo 
            branco, este, sólido, compacto, de 15 centímetros de lado e pousado 
            no chão. Ao levantar este cubo, sob a face pousada no chão, lia-se a 
            palavra "Rejuvenesça".
 
 Weydson — Existe esta sala ainda?
 
 Gullar — Não. O poema foi inundado. Choveu e inundou o poema... 
            (risos) Eu costumo brincar com isso quando lamento que perdemos o 
            único poema com endereço da literatura brasileira... (risos) Mas eu 
            não faço nada gratuitamente, e a minha poesia toda é um caminho de 
            descobertas que envolve símbolos, palavras, experiências... Então, 
            se o cara for ler o meu livro Crime na Flora, ele verá escrita uma 
            coisa que diz: "Havia um nome sob uma pedra na flora", e daí sucede 
            toda uma história maluca em que o cara tira a pedra e encontra 
            formigas embaixo, etc... Isto é a idéia de que o nome das coisas 
            está debaixo das coisas. Até lá no mato, na flora, lá onde não se 
            chega, lá naquela solidão, está pulsando o nome das coisas embaixo 
            das coisas... Então, essa idéia de botar esse cubo no chão com um 
            nome e depois o poema (Cubo) lembrar que aquela palavra está 
            pulsando embaixo, eu fiz nessa poesia neo-concreta, essa nova 
            poesia, e isso tem a ver com as minhas fantasias, com a minha vida. 
            Não é uma coisa assim: - "Vou inventar uma forma esquisita que 
            ninguém conheça", não é, é tudo uma tentativa de criar formas 
            capazes de expressar a minha experiência. Por isso eu tenho respeito 
            pelo trabalho que eu fiz ali, os poemas neo-concretos, etc. E eu 
            tenho tanto respeito por eles que quando eu vi que aquilo estava 
            esgotado e que a partir dali iria ser a mera repetição, a 
            habilidade, o exercício da habilidade, eu parei. E fiquei numa 
            situação, cara, de um mato-sem-cachorro" (risos)... Porque eu já 
            tinha destruído a minha poesia toda, tinha transformado naquilo, e 
            de repente ter a coragem de dizer que aquilo tinha cessado, que era 
            um caminho terminado, e que eu não ia continuar naquele mundo, eu 
            entrei em parafuso mais uma vez. Porque tem que ter coragem pra 
            fazer essas coisas...
 
 Weydson — E coragem pra encontrar um outro caminho...
 
 Gullar — E eu fiquei sem caminho! Tanto que eu passei a fazer poemas 
            de cordel. Quer dizer, depois de descer dessas alturas, da mais alta 
            sofisticação — porque nunca, em literatura alguma, se fez poemas 
            espaciais como esses que eu fiz (poema enterrado, com o cara 
            entrando dentro do poema, não existe em literatura alguma) então, do 
            máximo de audácia e sofisticação, o "cara" desce daí e vai fazer 
            "João Boa-Morte Cabra marcado para morrer" e falar como cantador de 
            feira? (risos). Na época "nego" me esculhambou, os críticos 
            literários falavam: "Esse cara é um maluco, um pirado, abandonou a 
            poesia para fazer besteira, porque agora está político, virou 
            comunista". Eu fui execrado pelos intelectuais como o cara que 
            estava menosprezando a literatura.
 
 Weydson — E hoje, você acha que abandonar a poesia culta, 
            intelectual, e passar a escrever cordel, configura um decréscimo, 
            uma queda? Como você vê o cordel no universo da poesia?
 
 Gullar — Do ponto de vista da elaboração literária, é evidente que 
            há uma perda. Porque eu não sou um cantador de feira, eu sou uma 
            homem sofisticado, um poeta que conhece literatura de tudo que é 
            tipo, poemas em todas as línguas, de tudo quanto é época, logo, um 
            homem sofisticado... E depois de ter passado por toda essa 
            experiência da poesia clássica, parnasiana, simbolista, moderna, 
            desde o começo, de toda elaboração, e de repente voltar a fazer 
            poesia como um cantador? Porque o que caracteriza o cordel como toda 
            arte popular, é que eles são feitos de estereótipos. Quer dizer, 
            existe uma cultura e uma criatividade que são próprias daquilo, mas 
            que se apoia na repetição de uma série de fórmulas, que era 
            exatamente o que eu não queria. De fato, o poeta popular tem muito a 
            ver com o novelista de televisão, porque o cordel não é folclore, 
            não é "arte do povo", arte do povo é diferente, arte do povo é 
            anônima (ninguém sabe quem criou "ciranda, cirandinha, vamos todos 
            cirandar"). Quer dizer, ninguém sabe quem fez isso aí, quem inventou 
            que D. Sebastião está no fundo do mar lá em São Luiz, ou na praia 
            dos Lençóis, isso não tem autor, isso é "literatura do povo". Agora, 
            arte popular é outra coisa, é uma coisa urbana, o cara já imprime, 
            já divulga, já vende, tem autor. E a característica que ela tem que 
            a aproxima da música popular e da novela de televisão é a repetição 
            de formas e fórmulas. E o que é literatura no sentido erudito, no 
            sentido da criatividade? É exatamente a busca sempre de uma 
            elaboração mais sofisticada e que corresponde a descobertas e 
            manifestações da experiência do autor. Ele não está ali nem para se 
            repetir, nem para repetir os outros. Ele tem um padrão, que ele não 
            inventou, porque é da cultura literária, e a partir dali ele cria 
            uma coisa própria dele, ele re-elabora. O cordel não permite essa 
            re-elaboração, não quer, não faz parte dele. Mas eu, quando desci 
            daquelas "alturas" e comecei a fazer cordel, não foi por bravura, 
            mas porque eu não tinha pra onde ir, e porque, ideologicamente, eu 
            havia rompido com a literatura e queria fazer a Revolução. A partir 
            dali — eu tenho consciência — eu passei a usar a literatura para 
            fazer a revolução, não para fazer literatura. Eu tenho consciência 
            que quando escrevi "João Boa-Morte", "Quem matou Aparecida", eu 
            estava usando esses cordéis todos para meter idéias "subversivas" na 
            cabeça das pessoas. Era pra isso! Eu não estava querendo entrar para 
            a Academia. Aliás, nunca quis. E muito menos naquele momento. Eu não 
            queria entrar pra nenhuma antologia para mais tarde os estudiosos 
            irem fazer uma exegese, não! Aquilo ali devia estar fora da minha 
            obra literária, e eu só incluo aquilo porque não cabe a mim 
            distinguir entre a minha história e a minha obra. Mas do ponto de 
            vista da qualidade, aquilo ali é uma ruptura, é uma coisa que eu 
            tive de viver para dar um salto adiante, mas na verdade eu não 
            pretendo que aquilo tenha uma qualidade literária ao nível das 
            outras coisas.
 
 Weydson — Sempre que você fala "Academia" eu sinto algo distante, 
            ironicamente distante. Você nunca pretendeu, ou não pretende, entrar 
            pra Academia ?
 
 Gullar — Eu acho que Academia e Poesia são incompatíveis. Eu não 
            tenho nada contra as Academias, mas acho realmente que a cultura 
            tende a se institucionalizar. É um absurdo imaginar a cultura como 
            mera manifestação individual ou sempre marginal. Isto não tem saída. 
            Pelo próprio processo da sociedade a tendência da cultura é se 
            institucionalizar e nisso não há só perdas, há ganhos. Isto é uma 
            coisa. Agora, eu, pessoalmente, com o meu temperamento, e com a 
            minha maneira de ver a poesia, eu me sentiria mal, seria como se eu 
            estivesse me traindo.
 
 Weydson — O que aconteceu entre Josué Montello e Antônio Houaiss, 
            pela sucessão da presidência lhe incomoda?
 
 Gullar — Não, porque eu acho que aquilo é próprio da Academia. Nada 
            mais natural, na Academia, do que isso. Porque, afinal, se trata de 
            uma entidade onde está se disputando o poder. É um aparato social 
            que como todo aparato social tem lá suas coisas.
 
 Weydson — Mas como você vê isso numa Academia de Letras?
 
 Gullar — O que eu acho é que a Academia é uma instituição 
            anacrônica. Primeiro o cara se vestir de fardão e espada, cara, da 
            Academia tem minhas amigas, pessoas que eu admiro como grandes 
            escritores. Tem muitos, dentro da Academia, de modo que essa minha 
            crítica não vai em detrimento deles. Agora, que a Academia é 
            anacrônica, é. Não serve pra nada. Para que serve a Academia? A 
            Academia não tem função alguma. É uma instituição meramente 
            consagratória. Mas aí ela peca. Porque ela consagra, muitas vezes, 
            quem não tem razão de ser consagrado.
 
 Weydson — Mas qual a diferença entre a Academia e o Conselho Federal 
            de Cultura, do qual você faz parte ?
 
 Gullar — O "Conselho" é outra inutilidade. Veja vem, o Conselho não 
            "aconselha"! Pode até aconselhar, mas o ministro não ouve! Então, 
            serve para quê ? Não serve pra nada.
 
 Weydson — Mas isso não depende de que o Ministro esteja à frente do 
            Ministério da Cultura?
 
 Gullar — Não, não depende. Isto é uma outra coisa. Esse ministro aí 
            está desrespeitando as pessoas. Porque o Conselho existe 
            institucionalmente. Dentro da estrutura do Ministério. O Conselho 
            existe e ele não pode desconhecer isso.
 
 Weydson — E o que seria preciso para resolver o problema?
 
 Gullar — O ministro teria que abrir uma discussão com o Conselho 
            para saber que destino dar àquilo. Uma restruturação. De que maneira 
            integrá-lo ao Ministério de modo eficaz. Isso é o que tinha que ser, 
            e não fazer de conta que não existe.
 
 Weydson — E por quê, então, o Conselho é uma "inutilidade"?
 
            
 LEIA O FINAL - IMPERDÍVEL !!!
 
 
 
 
            
  Leia a obra de Weydson Barros Leal
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