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Ferreira Gullar




Entrevista de Ferreira Gullar

 


O poeta Weydson Barros Leal, entrevista novamente o poeta Ferreira Gullar, [12 de julho de 1999], a propósito do livro MUITAS VOZES, Ed. José Olympio, 1999.

[Veja a entrevista anterior, o véio tava mordido da cachorra da moléstia... confira!]

 



WEYDSON - Depois de 12 anos sem publicar poesia em livro, 'Muitas Vozes" seria uma comemoração de 50 anos, já que seu primeiro livro, "Um pouco acima do chão", é de 1949?

GULLAR - A rigor está certo. Mas eu não levo em conta esse cálculo. Eu publiquei agora pensando nisso... Na verdade, eu passei esses 12 anos sem publicar apenas porque eu não tinha um número suficiente de poemas para constituir um livro. A partir de 1994, 95, quando eu conheci a Claudia (Claudia Ahimsa, poeta, namorada de Gullar) e saí da Funarte, houve unia retomada. Em 96 já havia alguns poemas, mas eu preferi deixar que aquele veio poético que estava se manifestando se esgotasse. Porque a minha poesia funciona um pouco como a mineração. De repente eu descubro esses veios até esgotá-los. A partir daí eu passo um tempo sem escrever. Assim, quando eu percebi que tinha um número suficiente de poemas, pensei: chegou a hora de publicar.

WEYDSON - Lendo o livro, percebe-se que esse veio é de temática variada, há poemas sobre a vida, a morte, reminiscências da infância, etc...

GULLAR - Pois é. No poema "Evocação de Silêncios", o silêncio é o tema. Ali, tudo nasceu de uma lembrança de quando eu era garoto em São Luís, perto do Largo de Sant´Aninha, onde tinha uma casa com um corredor que ia da calçada até o fundo. O piso dessa casa era de um tipo muito comum naquela época. Então eu lembrei de ter entrado nessa casa numa tarde de muito sol, enquanto brincava por ali, mais o i met7os 2 horas da tarde nessa hora em São Luís a barra é pesada, com muito calor - e eu entrei para descansar um pouco Eu já tinha um certo hábito de sentar ali, naquele chão frio, naquela casa silenciosa - lá, parece que morava apenas um casal idoso...

WEYDSON - Eles lhe, viam?

GULLAR - Não.. Tinha um corredor muito vazio... Eu ficava sentado tio chão frio, olhando aquele corredor, aquele piso, o silêncio, o vazio... Então, de repente, me veio a lembrança de tudo isso, e isso gerou o poema... Eu pensava que ia escrever só um poema, mas o primeiro desencadeou outros, e assim foi uma série de poemas que envolvem a quitanda do meu pai..

WEYDSON - E daí o açúcar...

GULLAR-É.. Na quitanda do meu pai, abaixo das prateleiras de mercadorias, havia uns depósitos com tampas, onde tinha feijão, arroz--, açúcar, farinha... Eu lembro que cabia bastante, açúcar naquele depósito. Quando se levantava aquela tampa, vinha aquele cheiro cálido... E até hoje, mesmo em casa, quando eu abro um recipiente de açúcar, me vem aquela sensação, o cheiro cálido. Então, tio poema, o silêncio é o açúcar, é comparado ao açúcar, e está cheio de vozes. de tumulto. de alarido, da luz da manhã.. Esses são os veios de que eu falo.

WEYDSON - A segunda parte do livro "Muitas Vozes", você intitulou "Ao Rés da Fala". O que há nesse título?

GULLAR - Ali está a saída de um impasse. Quando eu terminei de escrever o último poema de "Barulhos" (I 9 8 7), eu percebi que havia nele muitos elementos prosaicos. Na minha visão, o poema é o lugar onde a prosa se transforma em poesia, é o lugar da metamorfose, onde o processo se dá. O poema não é uma coisa estática, terminada, ele é algo em processo. A leitura desencadeia o processo que está latente ali. Ao lê-lo, o leitor transforma a palavra em poesia. Naturalmente, o meu poema nunca é um poema puro, mas nele a prosa vira poesia, e portanto para haver poesia tem que haver a transformação. A gente sabe que o carvão dá o fogo, mas para haver o fogo tem que existir o carvão. Assim, no poema sempre haverá fogo e carvão.

WEYDSON - E cabe ao poeta realizar a mistura , e determinar quando o fogo é suficiente, quando já há mais fogo que carvão...

GULLAR - Em "Nasce o poema" (Barulhos, 1987), eu cheguei à conclusão que havia carvão demais. Então eu pensei: se eu puser mais prosa aqui, o avião bate no chão, não há mais como... E durante um certo tempo eu parei.

WEYDSON - Como- resposta a esse mergulho, "Ao Rés da Fala" seria um recuo?

GULLAR - Não, eles avançam, e são quase prosa. Porque neles não há a alquimia evidente que há normalmente em minha poesia, onde a palavra se choca com outra palavra.. Não há a palavra inesperada nesses poemas. _Há quase somente descrição, como no poema "Fotografia de Mallarmé".

WEYDSON - Eu discordaria apenas quanto à ausência da surpresa, da palavra inesperada, uma vez que o primeiro poema do livro ("Ouvindo apenas") é extremamente elaborado, visceralmente sofisticado...

GULLAR - Quando eu digo que esses poemas são prosa e que há neles um processo diferente, não é a alquimia' Ali há uma superação do discurso diferente do que eu fazia em outros poemas. Na verdade, eles dão o tom do livro. Eu estou de acordo com você quando diz que os primeiros poemas são muito elaborados, mas, por exemplo, o primeiro poema é bem anterior aos outros.

WEYDSON - A organização do livro, à exceção dos "Poemas Resgatados', atende a uma ordem cronológica?

GULLAR - Quase sempre eu adoto essa ordem cronológica porque acho que a minha poesia é uma reflexão.

WEYDSON - Vejo que há poemas em "Muitas Vozes" cujos temas já aparecem em livros anteriores a "Barulhos".

GULLAR - É verdade Mas eu prefiro não interferir nisso; ninguém controla o processo da lida. Mas há uma lógica interna nesses poemas. Aí estão indagações e respostas que se sucedem progressivamente. Isso não quer dizer que eu desenvolva um processo filosófico, mas são perguntas e respostas que vão ocorrendo durante a vida, por alguma razão que eu não sei mas que sei que existe. Eu acredito que o meu trabalho com a poesia é a lúcido, exigente, do artesão, mas o que faz o poema nascer, os elementos convocados para fazê-lo, isso eu deixo que venham como vier. Como se eu fosse um metalúrgico que trabalha com qualquer metal, que não fica exigindo prata ou ouro. Com o metal que ele acha que dá, ele faz.

WEYDSON - Como seria esse processo, dando como exemplo um dos poemas de "Muitas Vozes"?

GULLAR - Por exemplo: o poema "Um Instante ". Num domingo à tarde, nessa sala vazia, o sol, o silêncio e a claridade, eu sentei aqui (apontando uma cadeira) e de repente senti que estava pleno, leve, não tinha passado, não tinha futuro, sem culpas, sem remorsos, sem preocupações - era um instante, dois segundos que estão neste poema (pegando o livro e lendo o poema):

Aqui me tenho
como não me conheço nem me quis
sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente


Mas você ainda pode perguntar por que eu fiz o poema, e aí eu vou formular aqui, pela primeira vez a sua gênese: ele é o resultado da reflexão de alguém que pensa sobre o passado, nos problemas da memória, nas coisas que acabaram, e que ao mesmo tempo são um peso sobre sua vida. Então, o momento em que nada disso pesa, é um momento de liberdade e plenitude. De repente eu compreendo que estar sem mim é uma liberdade total. Por isso eu digo que é. um processo de pensamento que não é consciente mas que está sendo feito, e o poema nasce disso. Por isso eu penso que ao alterar essa ordem, eu posso estar violentando um processo mais profundo de reflexão que está tio poema.

WEYDSON - Mas eu percebo no_ livro, ao lado de poemas que podem ser resultados desses processos, outros que parecem revelações instantâneas, como o poema "Tato".

GULLAR - É mais ou menos o mesmo processo... Eu sentei ali (apontando), passei a mão na cabeça, e de repente toquei meu osso. Aí eu pensei: -puxa, sou eu, eu existo, e em vez de dizer como Descartes "penso, logo existo,", é o, contrario , "toco, logo existo" (risos). Em vez de me afirmar pelo pensamento, eu me afirmo pelo tato. Então eu existo aqui, e se isso vai acabar, se não houve antes, se é efêmero, não interessa, eu estou aqui concretamente. Agora, por que eventualmente alguém passa a mão na cabeça e não pensa isso? Por que outros poetas, que fizeram o mesmo gesto, não escreveram esse poema, e eu é que escrevi? Porque eu tenho um tipo de reflexão que faz com que esse ato gere uma resposta determinada. Talvez por isso as pessoas estejam dizendo que esse livro é um livro maduro, por e estão vendo que é um livro decorrente de uma reflexão que que vai sendo feita apesar de mim, uma reflexão subjacente, que termina provocando os poemas em face disso, quer dizer, de pequenos acontecimentos que se refletem nesse modo de ver o mundo. Essa é a razão por que esse "tato me faz escrever o poema e o mesmo tato experimentado por outros poetas não os faz escrever ou faz com que escrevam outro, ou ainda que nem dêem importância a isso...

WEYDSON – Em 'Muitas Vozes', há reminiscências de infància, lembranças de pessoas que passaram por sua vida e não estão mais aqui, e há os "Poemas Resgatados", aqueles que estavam nas gavetas. Depois do livro impresso, você ainda teve a sensação de que faltava algum poema, de que faltava alguém?

GULLAR - Eu custei a entregar o livro ao editor. A Maria Amélia, minha querida amiga (diretora editorial da José Olympio), me cobrou muito o livro depois que leu uma entrevista em que eu dizia que o livro estava terminado. Mas eu fiquei ainda quatro meses lendo os poemas, largava, voltava, foi assim até nascer outro poema, que eu ainda incluí no livro, quando só então eu o dei por encerrado.

WEYDSON - E 4 idéia dos "Poemas Resgatados"? Como foi tirá-los da gaveta?

GULLAR - Eu já te contei essa história- Em 1970, um pouco antes de ir para o exílio, eu escrevi um poema sobre a minha casa em São Luís do Maranhão. Lá, naquela casa de assoalho de tábua corri ia um espaço de quase meio metro entre as tábuas e o chão. Às vezes caía dinheiro por entre as fendas, eu tirava uma tábua e entrava ali para buscar minha moeda que estava lá embaixo. Havia um cheiro forte, de décadas, de todo aquele pó, um pó preto que parecia pólvora . O poema era sobre isso, sobre a casa, essas coisas. Bem, ele estava escrito, mas eu ainda não sabia se estava pronto. A verdade é que eu tive de sair de casa correndo quando começou a minha vida clandestina, e não voltei mais. Quando eu já estava em Moscow, eu lembrei do poema, procurei entre as coisas que tinha levado e terminei pensando: perdi o poema. Foi aí que eu decidi reescrevê-lo, e já em 1975 ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz". O poema se chama "A casa ", e foi então traduzido em várias línguas, despertando interesse em muita gente, como nos meus tradutores nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na Argentina, na Holanda.. Alguns anos depois, de volta do exílio, eu abri uma pasta de manuscritos que encontrei e lá estava o poema original, que agora está em "Muitas Vozes".

WEYDSON - Como ele se chama agora?

GULLAR - "Sob os pés da família ". Mas então, quando eu li o poema que achei, era outro poema O tema era o mesmo, mas o que eu tinha escrito era outra coisa. Eu estava certo que tinha reconstituído tudo, e de repente era outro poema. Evidente que alguns pedaços são idênticos ou parecidos, mas é outro poema. Isso me provocou uma reflexão: se eu não tivesse perdido esse poema eu não teria escrito o outro. Quer dizer, a possibilidade de um mesmo tema gerar poemas diferentes. Porque a gente tem a suposição de que o poema que a gente escreve é a única forma possível do que se quer dizer, mas está provado que não é...

WEYDSON - Então esse poema tem quase 30 anos...

GULLAR. - É...(pensando)...ele é de 70. Mas entre os "Poemas Resgatados" há poemas ainda anteriores, quer dizer ..(em dúvida) ... pode haver alguns para frente... São poemas que foram apenas anotados.. Por exemplo: quando eu trabalhava na sucursal do Estadão (Jornal Estado de São Paulo) aqui no Rio, eu ficava sozinho lá no meu canto, anotava certas coisas, mas não dava tempo, os caras vinham, "ô Gullar, escreve esse texto aqui! ", e tal coisa... Então interrompia aquilo e eu fui tendo na minha gaveta um monte dessas anotações. Quando eu saí do Jornal, peguei tudo, pus dentro de uma pasta e trouxe para casa. E essa coisa ficou aí, guardada em outra gaveta.

WEYDSON - E como você achou?

GULLAR - É uma coisa estranha... Eu sou um organizado dispersivo - organizo tudo mas depois não acho: tá guardado em algum lugar, onde eu não sei. De repente eu fico achando, coisas "guardadas" que estavam " perdidas ". Foi assim que eu encontrei esses poemas. Quando eu comecei a ler, pensei: eu poderia dar uma forma definitiva a isso. Então trabalhei os poemas. Os "Poemas Resgatados" não estão como foram escritos, entretanto, eu os trabalhei com o espírito com que foram escritos. Eu tentei me reintegrar naquele ambiente e retomar os temas, as coisas..

WEYDSON - Haverá lançamentos fora do Rio de Janeiro? (O lançamento oficial no Rio ocorreu em 12 de julho de 1999).

GULLAR - Eu pretendo fazer o lançamento lá em São Luís do Maranhão. Eu estou devendo essa ida à minha mãe, a meus irmãos, pois eu disse que iria no ano passado e não pude, tive que cancelar. Você sabe que tem um poema aqui (pegando o livro 'Muitas Vozes") que foi escrito lá em São Luís?

WEYDSON - Nos "Poemas Resgatados"?

GULLAR - Não, nos novos. Eu escrevi tia última vez que estive lá, há uns três anos. Chama-se "Volta a São Luís ". É um poema do exílio ao contrário. Porque o Gonçalves Dias, quando escreveu o dele ("Canção do Exílio") estava tio exílio, e manifestou aquele sentimento, de forma muita bonita. "as aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. " Quer dizer, elas são aves, estão cantando, eu estou ouvindo, mas não é a mesma coisa. E essa carência da sua terra, da sua pátria, foi manifestada por ele de forma muito especial. No caso do meu poema, eu estava num hotel lá em São Luís, com um jardim enorme, lindo, mas onde mal se consegue dormir porque muito cedo os bem-te-vis começam a cantar: "bem-te-vi, bem-te-vi, te-vi, te-vi... " E é uma algazarra. Aquilo foi gozado, porque onde eu morava, quando era menino em São Luís, também era cheio de bem-te-vis. Então, de repente, ouvindo esses bem-te-vis, eu estava ouvindo os bem-te-vis de minha infância, não era só aquele pássaro que estava ali, era o contrário, e o poema diz assim (pegando o livro e lendo o poema):

Mal cheguei e já te ouvi
gritar pra mim: bem te vi!
E a brisa é festa nas folhas
Ah, que saudade de mim!

O tempo eterno é presente
no teu canto, bem te vi

(vindo do fundo da vida
como no passado ouvi)

E logo os outros repetem:
bem te vi, te vi, te vi

Como outrora, como agora,
como no passado ouvi

(vindo do fundo da vida)

Meu coração diz pra si:
as aves que lá gorjeiam
não gorjeiam como aqui


Aí foi o contrário (risos). O Gonçalves Dias sentiu longe que as aves que lá gorjeavam não gorjeavam como na sua terra; eu volto à minha terra, e ao ouvir o bem-te-vi percebo que as aves que gorjeiam . fora de São Luís, não gorjeiam como em São Luís. E olha que quando eu estava escrevendo o poema, eu não estava prevendo esse fim...

WEYDSON - Em cada poeta, a sensibilidade se exercita ou se manifesta das mais diferentes formas. Em você, eu percebo algo muito curioso: a sua sensibilidade é igualmente apurada nos cinco sentidos, na audição dos "barulhos", dos "alaridos", no olfato que percebe o "grito" do açúcar, no tato de seu próprio corpo, na visão do sol, das coisas, no paladar das frutas que apodrecem... Ou seja, enquanto a maioria dos poetas trabalha muito mais com a percepção visual ou com a memória dessa percepção, você elabora seus poemas com igual densidade a partir da percepção ou da memória dos cinco sentidos.

GULLAR - Eu nunca tinha percebido isso, mas você está dizendo uma coisa que é verdade. Eu sou muito sensorial, todas as coisas me tocam, as sensações têm um poder muito forte sobre mim: o cheiro das coisas, o tato, os sons (não só os musicais, mas o barulho, o silêncio - a ausência do barulho), e a coisa visual, que me é muito intensa. Eu acho que a percepção visual é a percepção mais inteligente, a mais humana. Eu digo mais humana porque as outras sensações são mais obscuras, ou seja, o olfato, o faro, é bem animal, assim como de certa forma o tato e a audição. E embora a audição não seja tão obscura, ela é incontrolável, os sons, os barulhos, te penetram independente de tua vontade; você não fecha o ouvido como fecha o olho. O ouvido não tem pálpebras. Por isso eu entendo muito bem quando o João (João Cabral de Melo Neto) diz que a música desarruma as coisas. Para que ' m é muito mental,. muito racional como o João é - que tem a necessidade de ser, porque ele é um homem muito sensível e tem a necessidade de controlar a sensibilidade - então, ele tem de criar aquela forma objetiva, estruturada, controlada, para não se desintegrar. Nesse sentido, a música vem e acaba com toda ordem. Ela tem uma ordem, mas é dela, não é a tua, da tua razão, da tua lucidez, pois o mundo é organizado por nós a partir da percepção visual Nós percebemos as distâncias, os objetos, a claridade do dia, mas todo esse conhecimento tem por base a percepção visual

WEYDSON - A música, em você, é capaz de desencadear um desvio de sua sensorialidade?

GULLAR - Quando eu cheguei aqui no Rio, com vinte e poucos anos, eu tinha uma certa reserva em relação à música, não era toda música que eu ouvia. E eu não falo em música popular,. mas na música clássica, na música de concerto. Havia certos compositores que eu não podia ouvir, eles me faziam mal Nessa época, eu sentia um pouco essa coisa que o João sente. Uma coisa que me deixava desamparado. Então eu evitava certos compositores que me descontrolavam. Hoje é diferente, eu já não sinto isso. Com a experiência, aprendi a ouvir a música de concerto, a acompanhar as estruturas, os diálogos entre os instrumentos. A Claudia (Claudia Ahimsa), que estudou e conhece bastante Música, me chamou a atenção para o diálogo dos instrumentos. Então, quando você entra nessa fantasia, nessa mágica, você fica mais senhor, e mesmo que você esteja ali meio que intuitivamente, está dentro de uma ordem que sabe qual é.

WEYDSON - O que você ouve hoje?

GULLAR - Ainda há coisas de que eu não gosto. A música muito frenética, muito intensa, muito inquieta.

WEYDSON - Mesmo a clássica?

GULLAR - A clássica sobretudo. A música popular em geral não me provoca isso. Ela me dá rim outro tipo de prazer, porque é mais superficial, está misturada com a letra, etc. Agora, a música de concerto, quando é muito intensa, muito inquieta, começa a me dar dor de estômago, me dá uma aflição. É que a música, além de me atingir sensorialmente, me atinge emocionalmente, e às vezes me causa até irritação.

WEYDSON - Você ouve música todo dia?

GULLAR - Quando eu entro no carro, ligo logo o rádio e só ouço música clássica. E não ouço música popular no carro porque a maioria é insuportável, é muito ruim. A música popular de hoje está muito pobre, e a letra, pior ainda.

WEYDSON - Há exceções?

GULLAR - Sempre há. Os grandes compositores, como o Chico. E tem aí o maranhense Zeca Baleiro, que quando eu ouço tenho prazer em ouvir. Mas a maioria é muito banal, de uma pobreza melódica muito grande.

 



Weydson Barros Leal
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08/09/2005