Hildeberto Barbosa Filho
O mágico fabulário de Pedro
Rodrigues Salgueiro
A considerarmos os três livros de
contos do cearense Pedro Rodrigues Salgueiro, isto é, O peso do
morto (1995), O espantalho (1996) e Brincar com armas (2000),
diríamos que suas raízes originais, em que pesem a multiplicidade e
a diversidade das epígrafes de viés erudito, enterram suas forças no
fabulário mágico da tradição oral e popular.
O narrador, ou melhor, os narradores
desse cearense de Tamboril como que reescrevem, no mapa poliédrico
da narratividade moderna e pós-moderna, os apelos do fantástico, do
real e do imaginário que matizam, em ritmo corrente e cadenciado, as
peripécias da arte de contar, emoldurada pelo visor, não raro
irônico, não raro trágico, do narrador oral, a que tanto se refere
Walter Benjamim nos seus estudos sobre Nicolai Leskov. Por este
dado, o autor parece não abdicar das férteis confluências entre a
literatura erudita e a literatura popular, característica fundante,
de resto, de toda uma vasta tendência da própria literatura
universal cristalizada nas vozes modelares de um Boccacio, de um
Chaucer, de um Swift, de um Cervantes, de um Rabelais, entre tantos
outros.
Tanto na primeira, quanto na segunda e
na terceira coletânea, Pedro Rodrigues Salgueiro, na modulação
sistemática das histórias curtas, em grande parte verdadeiros
minicontos, procura, através de seus narradores e através de suas
experiências singulares, rastrear as componentes trágicas, irônicas,
fantásticas e absurdas da anônima condição humana, pondo, no âmbito
da cena literária, suas figuras toscas e singelas face a
situações-limite, como a morte, as perdas, o espanto, a
perplexidade, ou seja, o substrato das vivências inesperadas a que o
Destino – deus cruel – submete suas criaturas.
Tanto em “A longa espera”, como em “Os
loucos de Papaconha” e em “Urubus ou o dedo de D. Júlia”, todos de O
peso do morto, quanto em “A mãe de Gregor Samsa”, em “O escritor de
província” e em “O jogo de damas” de O espantalho, assim como “A
volta”, “O olhar”, “A viagem” e, sobretudo, “Ausência”, de Brincar
com armas, materializam os motivos básicos da narrativa, em Pedro
Rodrigues Salgueiro, unidos e mesclados na recorrência de um clima
que tende a diluir, quer no tom, quer na intensidade, quer na
significação, as fronteiras entre fantasia e realidade.
Em “Ausência”, por exemplo, o impacto
da morte da mulher é fulminante para a percepção e a sensibilidade
do personagem. A morte da mulher, de certa maneira, é também a sua
morte, pois como enuncia o narrador:
“(...) Agora, porém, que ela morrera,
ele adquiriu uma tristeza imensa – comportando-se como se houvesse
morrido também. Não sai do cômodo escuro, nem quando a filha mais
velha aparece depois de longa ausência. O tabuleiro de damas
continua empoeirado em cima do armário, as pedras gastas
minuciosamente arrumadas num saquinho ao lado; o almanaque velho que
ele sempre consultava para saber a posição da lua, hoje permanece
esquecido na sala de jantar; e até as cadeiras de balanço foram
relegadas a um canto da sala.”
Os detalhes que vêm à tona neste
trecho de escrita metonímica, demarcando concretamente o peso da
ausência, compõem, assim, o quadro de solidão e abulia em que
mergulha o personagem, convocado que foi por uma experiência única e
definitiva.
Ora, é de experiências únicas e definitivas que se tece o texto
ficcional de Pedro Rodrigues Salgueiro. Um texto que, para além da
fabulação surpreendente, onde às vezes ecoa algo de Gabriel Garcia
Marquez, de Julio Cortazar ou de J. J. Veiga e de Guimarães Rosa, se
faz presente aquele espírito de síntese inerente ao verdadeiro
contista. Espírito de síntese que se configura tanto na estruturação
do enredo quanto na manipulação da linguagem.
Aliás, poucos contistas da atualidade
têm demonstrado, como Pedro Rodrigues Salgueiro, essa noção de
economia de meios, esse poder de empregar a palavra certa no momento
certo e no ritmo adequado, ao mesmo tempo em que, dispensando as
adiposidades conteudísticas, vai direto ao assunto, captando bem o
motivo e abrindo, em irradiações semânticas, as possibilidades
temáticas. A prova do que dizemos está no começo de cada conto. Aqui
não há circunlóquios nem digressões. A ação é deflagrada de imediato
e, de imediato, o leitor se vê presa de ansiosa expectativa, cujos
resultados – ficcionais e estéticos – são sempre inusitados e
surpreendentes.
O Ceará sempre teve uma boa tradição
de contistas, representada por nomes históricos, como Oliveira
Paiva, Rodolfo Teófilo, Gustavo Barroso e Herman Lima (este,
curiosamente teórico do próprio gênero), assim como pelas vozes
contemporâneas de Fran Martins, Moreira Campos, Nilto Maciel e
Carlos Emílio Correia Lima. Ora, a essa tradição se associa, no
sentido de enriquecê-la e dignificá-la, o nome de Pedro Rodrigues
Salgueiro.
Leia a obra de Pedro
Salgueiro
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