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Iacyr Anderson Freitas


 

O desamparo no jardim


Sobre um poema de Ruy Espinheira Filho

 

Nascido em Salvador (BA) em 1942, Ruy Espinheira Filho publicou até o momento nove livros de poesia, além de diversos volumes de ficção e um ensaio sobre o conteúdo social da lírica de Jorge de Lima. Apesar de ter conseguido incluir a sua obra poética nos catálogos das grandes editoras - feito considerável, mormente no que se refere à atual produção brasileira - o autor de Memória da chuva ainda não recebeu, por parte da crítica especializada, a merecida atenção. Poderíamos mesmo afirmar que, infelizmente, o material disponível acerca da sua criação em verso ainda é muito escasso.

Através da análise do poema de abertura do livro Morte secreta, intitulado "Jardim", procuraremos realçar a existência de certos referenciais contínuos em toda a obra do poeta. A constância desses referenciais é o grande desafio que se impõe, enquanto convite, ao leitor do presente estudo. Com efeito, tal coerência interna é impressionante. Por outro lado, o poema escolhido apresenta alguns procedimentos demasiadamente caros à lírica contemporânea. Mas, pondo de parte as justificativas, vamos à peça em questão:


Não a brisa. O que
perpassa é um frêmito
de ternura.
No silêncio, na
carne, marulha
extinta carícia.

Os olhos, cerrados,
resgatam o encanto,
o embalo amoroso.

Ontem. Uma folha
- lenta, amarela -
risca a hora. Morta.
 

A primeira observação relevante - no que se refere ao poema citado - vincula-se ao fato de que não estamos diante de uma construção isométrica. Não obstante, há uma notável preponderância do pentassílabo, que domina, inclusive, as duas últimas estrofes. Ao lado da concisão extrema do discurso, a presença de uma estrofação uniforme, em tercetos, e a citada preferência pela redondilha menor possibilitam uma peculiar impressão de regularidade. Tal impressão, no entanto, é progressiva, vai ganhando força no decorrer da leitura, atingindo o seu ápice na terceira estrofe.

Com efeito, o terceto inicial não possui coincidência de metro, sequer as sílabas fortes ou acentuadas aparecem na mesma posição. Na segunda estrofe, há uma aproximação dos metros, mas ainda com um grande descompasso no que se refere ao esquema rítmico. Já a terceira estrofe é inteiramente composta de pentassílabos, com acentuação fixada na segunda e na quinta sílabas, apresentando, portanto, uma regularidade absoluta. Sem embargo, o último terceto - embora também constituído de pentassílabos - rompe o esquema rítmico consolidado na estrofe precedente. E este rompimento já se efetiva de pronto na palavra que abre a quarta estância, cujos versos não são isorrítmicos, alcançando o seu ponto de maior elevação exatamente na última linha do poema, onde as sílabas fortes aparecem na primeira, na terceira e na quinta posições.

Importante lembrar a coincidência deste fluxo com o próprio desenvolvimento referencial, com a tensão contida que identifica a peça em análise. Logo, na primeira estrofe podemos perceber o caráter positivo do "frêmito / de ternura". Na estrofe seguinte, notamos que este frêmito se relaciona com uma "extinta carícia" que, sem embargo, ainda "marulha", ou seja: ainda não se perdeu completamente no passado, não desapareceu da memória. Aliás, é este o sentido básico que o verbo em pauta assume em toda a obra de Ruy Espinheira Filho, frisando sempre a permanência do tempo vivido. Não obstante, o fato de tratar-se de uma extinta carícia já indicia a presença da morte. Mas o que se encontra expresso até o momento, apesar de tudo, não acusa a existência do exílio e da dor. Ao contrário, indica a tranqüilidade de um instante marcado pela lembrança positiva. Até aqui, como vimos no parágrafo precedente, a estrutura do poema ainda não atingiu a regularidade de metro e de ritmo. A plenitude ainda não foi alcançada.

Ora, a terceira estrofe oferece exatamente esta plenitude, materializada nos olhos que "resgatam" - outro verbo amplamente utilizado pelo poeta baiano, com sentido análogo ao de marulhar - "o embalo amoroso". Eis aí a confirmação do que se encontra delineado nas duas estâncias anteriores: a procura de eternização de um evento sentimental de afeição profunda. O resgate do acontecimento amoroso, então, coincide com a absoluta regularidade métrica e rítmica desta terceira estrofe: eis a plenitude do retorno ao passado e da anulação do tempo cronológico puro.

No entanto, a quarta e última estância rompe esta ilusão já na abertura. Com efeito, "Ontem" marca o rompimento do esquema rítmico alcançado e o surgimento do tempo cronológico. O excesso de pausas próximas - bem demarcado pela abundância dos sinais de pontuação - revela "dificuldade de comunicação, clima fortemente emocional", como afirmou Maria Luiza Ramos, ao analisar um poema de Henriqueta Lisboa, em Fenomenologia da obra literária (p. 179). Não é por acaso, assim, que esta estrofe apresenta o maior número de pausas. Também não é por acaso que vemos surgir uma folha, posto que, como bem observou Carlos Bousoño, "la soledad se manifiesta ante lo solo".

Ademais, a única referência material ao plano da realidade - já que a "brisa" do primeiro verso encontra-se acompanhada de um advérbio de negação - é esta folha. A sua presença solitária, singular, evoca desolação, desamparo. Por outro lado, a sua queda funde desamparo e morte: "Uma folha /- lenta, amarela -/ risca a hora. Morta.". Observemos ainda que os adjetivos dialogam com tais referências: ao passo que a cor "amarela" vincula-se ao estágio temporal avançado e à conseqüente morte da folha, "lenta" relaciona-se antes com o movimento de queda desta - e, neste aspecto, evoca tristeza, melancolia. Mas a palavra-chave desta estrofe e de todo o poema é exatamente a palavra de encerramento: "Morta", designando, mais que tudo, encerramento completo. A lógica impõe a ligação adjetiva deste vocábulo com a folha que desce lentamente ao chão. Sem embargo, a proximidade e o parentesco sonoro ligam também "hora" e "Morta". Os bloqueios à expressão - excesso de pausas, indeterminação dos referentes, supressão contínua de informações, escolha de uma atmosfera difusa e impressionista, etc. - mostram-se amplificados pela tensão da dupla leitura. E hora morta grava a falência do momento presente, a realidade da perda, adversa e irreversível. A transposição para a realidade vê-se facilitada pela transferência do âmbito espacial para o âmbito temporal, registrada na folha que "risca a hora" e não o ar ou o espaço, acusando a aproximação vertiginosa do concreto com o abstrato.

Ao vincular a morte ao momento atual, ao aqui e agora da existência, o poema transforma o tempo presente em local de exílio. Mercê de tal ocorrência, o passado torna-se pátria de eleição. Logo, a sua precedência é completa. Todos os termos positivos, aliás, encontram-se ligados a ele de modo irrefutável: carícia, ternura, encanto e embalo amoroso estão presos ao passado. A impossibilidade de retorno reforça a convicção de que nada pode deter o fluxo temporal: a morte é a única e a última certeza. Não podemos deixar de lado a relação deste fato com a ausência absoluta de sentido do estar-no-mundo, um dos temas principais da obra de Ruy Espinheira Filho.

Em virtude do confronto entre a condenação do tempo presente e a impossibilidade de retorno à plenitude representada pelo passado, a tensão domina o poema. Os períodos são curtos, cortados. As reduções sintáticas velam boa parte do texto, forçando o leitor a preencher os vazios, os intervalos de um discurso onde nada é referido com detalhamento e onde o próprio ritmo flui a custo. A atmosfera é vaga e os signos de leveza governam o poema: frêmito de ternura, folha que risca a hora, brisa, carícia que marulha, entre outros. O efeito musical vem à tona com as assonâncias e as aliterações: "OS OlhOS, cerradOS / reSgataM O eNcaNtO / O eMbalO amOrOsO"; "extInta carÍcIa"; "O quE / pErpassa É um frÊmito dE tErnura"; "- lentA, AmARelA - / RiscA A hoRA. MoRtA"; etc.

A pequena incidência de verbos - todos no presente do indicativo, aliás - ainda acusa a identificação referencial entre perpassar, marulhar e resgatar, com o mesmo sentido de tornar presente algo já lançado definitivamente ao passado. E lembramos ainda que a presentificação do passado ocorre de forma clara na segunda estância, onde "marulha / extinta carícia". Ademais, o poema não apresenta um "eu", a sua estrutura é, assim, profundamente desumanizada. Tal afastamento funda-se numa tática de objetivação - como bem lembrou Carlos Bousoño em sua Teoría de la expresión poética (v. I, p. 319-322) -, onde os sentimentos, as sensações e as realidades pessoais são abstraídos do sujeito e deslocados para fora de seu espaço. "Jardim" lança mão desta tática e estabelece que "Os olhos" - e não "Meus olhos" - "resgatam o encanto". Da mesma forma, a carícia perdida marulha "na carne" - e não "na minha carne".

A começar pelo título, o poema evoca tranqüilidade, de resto intensificada pelos signos de leveza, pela presença do silêncio e da brisa. "O simbolismo de um objeto pode ser mais ou menos explícito, mas existe sempre", declarou Ítalo Calvino. E o jardim dialoga com o simbolismo do paraíso, "mas é também a natureza restituída ao seu estado original, convite à restauração da natureza original do ser". Há que se ressaltar, ainda, que a sua imagem "aparece muitas vezes nos sonhos como a feliz expressão de um desejo puro de qualquer ansiedade". Ora, estas referências encontram-se marcadas inicialmente no texto: o clima de tranqüilidade traz em si a lembrança paradisíaca, o "desejo puro" tem por alvo a permanência do "embalo amoroso" que, por sua vez, é também um "convite à restauração da natureza original do ser", um convite à eternização do encontro. E tudo isto ocorre dentro de uma atmosfera de consonância, posto que "O tema do jardim está aparentado ao do oásis e ao da ilha: frescor, sombra, refúgio". Estes fatores dominam o poema até a terceira estrofe. A recordação procurada não dá indícios de conflito. A serenidade evoca equilíbrio e paz.

Não obstante, a quarta e última estrofe altera o curso temático, alterando também, por conseguinte, o próprio sentido das estrofes precedentes. A quietude e a solidão passam assim a dilatar o abandono. O equilíbrio transforma-se em referência direta à morte, espelhada no silêncio e na imobilidade do quadro. O paraíso desloca-se para o passado. Na verdade, a sua estada prendia-se ao sucesso da presentificação. O parentesco sonoro entre "hora" e "Morta" - bem como a proximidade destes vocábulos no verso de encerramento - desvela então o momento presente, imerso no mais completo desamparo. A imagem da folha amarela que cai lentamente é a imagem da existência humana "descendo ao crepúsculo/ mais baixo/ mais baixo", enquanto metáfora da anulação.

O excesso de alusões estabelece um notável contraste com a escassez do discurso. Sem dúvida, esta estética da insinuação percebe que a natureza contida e tensa da construção poética é um terreno fértil para a potenciação dos sentidos. Daí "a percepção do poema enquanto espaço de jogo da clareira e da ocultação". À luz da Teoría de la expresión poética de Carlos Bousoño, podemos compreender a opção pelo caráter sugestivo, colocado sempre em primeiro plano, bem como pela fuga da verborragia que tanto atormentou o universo romântico, fato que promoveu a criação de um estilo que, segundo o teórico espanhol, deve ser entendido como miniloqüente: "Si la grandilocuencia puede definirse como un exceso de continente y un mínimo de contenido, la 'minilocuencia', al revés, consistirá en un máximo de contenido dentro de un mínimo continente" (v.II, p. 426).

Mercê desta miniloqüência, a interpretação não caminha em terreno seguro. A grande quantidade de alusões, na verdade, intenta destruir a intervenção de conteúdos demasiadamente evidentes. Ainda que uma forte orientação possa ser percebida - e a tarefa primordial de qualquer leitura é delimitar exatamente estes vetores -, a obscuridade não desaparece por completo: o entrelaçamento de tensões faz com que a compreensão fique oscilando entre a luz e a sombra. A incapacidade de cognição, no entanto, conflita com o fascínio exercido pela linguagem poética. Da mesma forma, o apelo aos jogos simbólicos, às camadas pré-racionais e à deformação contínua da realidade entra em confronto direto com a intelectualidade do discurso. As tensões dominam o texto. O absurdo e o imprevisto ampliam a significação, conduzindo-a a um campo pluriforme. Todas estas características, aliás, foram muito bem analisadas por Hugo Friedrich em Estrutura da lírica moderna e podem ser percebidas, com maior ou menor intensidade, neste poema de Ruy Espinheira Filho.

"Jardim" confirma a máxima de Alfonso Reyes. De fato, "el poeta debe ser preciso en las expresiones de lo impreciso". E o impreciso aqui vincula-se a um ritmo existencial detido, congelado - lembremos do grande número de pausas que contamina o texto -, exposto à certeza do desaparecimento e da perda. Uma certeza que não se encontra expressa de forma direta, mas que ocupa todos os vazios, todos os campos semânticos, todos os níveis de referência. E este é o dizer mais profundo da poesia: um dizer que, velando, desvela o reino fugidio que se estende além de todas as palavras.

 

Ruy Espinheira Filho

Leia Ruy Espinheira Filho

 

 

 

 

 

02.05.2005