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			Existirmos  
			  
			O 
			velho homem conduz o homem moço pela mão. Atravessa os cômodos da 
			casa e alcança um quarto reservado. Era ali o reduto juvenil do seu 
			filho. O homem moço se acomoda, deita em uma rede e se põe a olhar o 
			retrato do antigo dono do lugar quando criança. Nenhum cansaço 
			resiste a um repouso naquela rede e nenhuma saudade fica quieta 
			diante daquela foto da bela infância do amigo. Há vazio no espaço, 
			no físico e no sentimental, diante da ausência do poeta/parceiro que 
			de tão irrequieto resolveu demarcar o tempo da sua vida, 
			estabelecendo que ela deveria cessar ainda na juventude com uma 
			trágica abreviação.  
			A 
			cena do parágrafo acima cabe em uma novela; ou em um romance; ou em 
			um conto ou, simplesmente, em muitos quadros da vida real. E foi 
			justamente num destes que se operou o encaixe. O velho homem, um 
			promotor de Justiça em recesso, prenome Hely, devolvia ao homem 
			novo, o Caetano vate, veloz e Veloso, o que este paradoxalmente 
			nunca tivera: a ambiência doméstica de Torquato, o Neto, filho de 
			Hely. Nesse lugar Caetano sentiu pulsar a canção, como numa parceria 
			transcendental, e deu a luz cristalina a "Cajuína", uma das mais 
			belas das suas composições. "Existirmos: a que será que se destina? 
			/ Pois quando tu me deste a rosa pequenina / Vi que és um homem 
			lindo e que se acaso a sina / Do menino infeliz não se nos ilumina / 
			Tampouco turva-se a lágrima nordestina / Apenas a matéria viva era 
			tão fina / E éramos olharmo-nos intacta retina / A cajuína 
			cristalina em Teresina."  
			
			Anos, muitos anos depois, lá mesmo na capital piauiense, que em 
			natural volúpia se beija, a um só tempo, com os rios Poti e 
			Parnaíba, Torquato Neto foi objeto de uma conversa que tive com 
			Roberto, outro Veloso, entre goles refrescantes e cristalinos de 
			cajuína. Reportou-me a ida de Caetano a Teresina, o encontro com os 
			pais de Torquato Neto, a quase compulsória hospedagem na casa destes 
			e a inspiração para a música acima referida. Falou-me do espírito 
			irrequieto e radical de Torquato, fruto do meio-norte que saiu 
			verdoso para a Bahia, onde estudou e foi expulso de um colégio de 
			padres, intolerantes com a sua agitação cultural. Acostou-se a uns 
			iguais e daí surgiu o Tropicalismo, movimento poético e artístico 
			que não se suportou nos limites da terra do Senhor do Bonfim e foi 
			ditar  
			
			regras ao marasmo intelectual que invadia o país no pós-revolução 
			meia quatro, a partir do Rio de Janeiro. Com quem? Bethânia, Gil, 
			Caetano, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Rogério Duprat, Capinam e 
			outros. Era uma espécie sui generis de anarquismo politizado, com 
			estética diametralmente oposta à comportada Bossa Nova, sem 
			enfrentamento radical entre os membros dessas correntes. 
			 
			
			Disposto a balançar as estruturas do stablishment criativo, circulou 
			bastante. Fez roteiros de shows (Ensaio Geral, Pois é, Maria 
			Bethânia), escolheu trilhas de novelas (Irmãos Coragem e Minha Doce 
			Namorada), foi redator da revista Cláudia, do Jornal do Brasil e do 
			Estado de São Paulo, além de celebrar casamentos poéticos em 
			diversos lados, que renderam filiação díspar e genial, como "Go Back", 
			com Sérgio Britto ("Você me chama / Eu quero ir pro cinema / Você 
			reclama / Meu coração não contenta /... / Só quero saber / Do que 
			pode dar certo / Não tenho tempo a perder"), consagrada na 
			discografia dos Titãs ou "Pra Dizer Adeus", com Edu Lobo (Adeus / 
			Vou pra não voltar / E onde quer que eu vá / Sei que vou sozinho 
			/... / E no entanto eu queria dizer / Vem / Eu só sei dizer / Vem / 
			Nem que seja só / Pra dizer adeus").  
			E a 
			cena criativa de Torquato foi por ele mesmo encerrada na madrugada 
			de 10 de novembro de 1972. Após comemorar o 28º aniversário em uma 
			boate carioca, trancou-se no banheiro do seu apartamento, ligou o 
			gás do aquecedor após rabiscar um bilhete com a frase radical: "Para 
			mim, chega!". Deitou e morreu.  
			Para 
			mim, não chega. É pela poesia de Torquato que vale existirmos, em 
			resposta ao verso de Caetano.  |