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Izacyl Guimarães Ferreira





Forma conquistada: a propósito de Ruy Espinheira Filho




 

Numa entrevista, Ruy Espinheira Filho disse: “Quem não tem o que dizer é que se complica; os grandes poetas são simples.” Tal frase se ajusta à perfeição aos seus poemas (“Poesia Reunida e Inéditos”, Record, 1998). Ainda não li o recém - lançado “Elegia de agosto”, mas esta coleção é suficientemente eloqüente para dizermos que não é apenas simples sua grande poesia. Ela reitera uma bem importante tendência que se vem verificando há já algum tempo. A da conquista da forma. Melhor diria: da reconquista da forma.

Há já algum tempo. Desde bem antes, mesmo, da tardia falência das auto proclamadas vanguardas, daquelas tantas variações alheias ao verso – textos faltos de sintaxe, letras de canções tidas como poemas ( por mais belas que sejam são aspectos do “poético”, mas não são poesia, ressalvadas exceções que dispensem memória da música ), os diagramas visuais, os jogos dos neo e pós concretos etc.

A maior parte da melhor poesia que se faz hoje no país expressa uma reconquista da forma e, na maioria das obras, um tributo prestado à simplicidade, ao “trovar claro”. Vivo tributo à forma que todo poeta traz ou procura dentro de si próprio, desde sempre, vívido tributo à clareza no que tem a dizer.

Tributo à forma não se confunde com parnasianismo disfarçado e muito menos com certa prosa solta, rimada às vezes, de um defasado modernismo que parecia morto e enterrado pelos marginais, que só teriam aprendido de 22 e 30 aquele aparente facilitário da fala direta e coloquial, sem ouvir direito o ritmo interior, mas, ao contrário, só diluindo invenções e abrindo campo para uma multidão de autores de vocação equivocada.

Porque a grande lição modernista é outra. É a da linguagem pessoal e clara de Bandeira, de Mário e de Drummond, a santíssima trindade legada desde 22 e 30, alta lição maturada nas décadas seguintes.

Já disse e repetiu Lêdo Ivo. O poema não tem uma forma. Ele é a sua forma, tal como não temos um corpo, somos nosso corpo. E é a este conceito de forma que me refiro. Conceito reconquistado.

Pensemos, neste caminho, nas contribuições de Cecília e Jorge, do marco em que se constituiu “Claro enigma”, nas intenções algo mal compreendidas da geração de 45. E distingamos: forma nada tem a ver com formalismo. Forma é de sempre. Formalismo é moda, passa, ainda que volte de tempos em tempos, quando aos poetas (ou quase poetas) pareceria importar menos o que dizem e mais o como dizem.

(Diferentes são o culto à forma - barrocos, por exemplo - e a muito nobre estirpe dos malditos e dos grandes obscuros de sempre, de Blake a Rimbaud, dos clássicos a exigir cultura para o entendimento pleno, dos marcados pelo aqui e agora de seu tempo.)

A lista dos poetas do nosso “trovar claro” contemporâneo é longa o bastante para ilustrar o que penso. Citemos alguns nomes, apenas. E são de várias faixas etárias. Não falemos sequer se há “ gerações”. Eis aí, então, Gerardo Mello Mourão, Lêdo Ivo, Francisco Carvalho, Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira, Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Antonio Carlos Secchin, Alexei Bueno, Paulo Henriques Brito, Magela Colares, entre tantos, e antes, claro, já tínhamos João Cabral de Melo Neto. Todos eles poetas conscientes da naturalidade intrínseca da forma, cientes da responsabilidade imposta pelo padrão da língua.

Assim também o poeta da “Canção de Beatriz”. Note-se que este longo e belo poema tem forma livre e própria, porque o respeito à forma não implica em cativa obediência a metros e modelos fixos. Como em todo poema de ritmo “dissoluto”, para usarmos palavra de Manuel Bandeira, a forma da “Canção de Beatriz” vem imposta pela necessidade implícita do tema, no caso, a soltura do monólogo confessional dessa personagem popular de rica veracidade.

No caso de Ruy o que se vê desde seus primeiros poemas é uma prática das formas e dos meios de expressão da tradição da língua. “Nem mais alto nem mais baixo, no tom da língua”, já ensinava o mestre Antonio Machado. Tradição que se renova sempre que um verdadeiro poeta põe-se a escrever. O mesmo Machado é quem nos recorda que “el poeta nasce, el poema se hace”. Desse ser e desse fazer resultam a naturalidade da expressão, sua autenticidade, uma lírica tão ao alcance do leitor que chega a ocultar a perícia técnica.

Em Ruy, de um livro a outro o verso curto cede lugar aos ritmos largos, o soneto adquire seu espaço, e acima de tudo a clareza afasta as já poucas abstrações e alusões. No processo, adere decididamente ao real e a comunicação é instantânea. Adesão ao real não implica em literatura realista, é óbvio, cabendo aqui lembrar haver quem rejeite a realidade em nome de certos ocultismos, mais cultivados que vividos desde dentro. Como há quem confunda simplicidade com simpleza e assim por diante.

Ruy Espinheira Filho começou sendo simples no dizer, mas o tempo lhe trouxe visualidade e concretude maiores, e sua poesia saltou do subjetivismo inicial para um firme olhar sobre o mundo, que sendo seu é do leitor, pois embora referindo-se a fatos pessoais alcança o chão e o céu de todos. Porque comprometida com o real.

Nenhum mistério nesta rápida evolução entre 1966 e 1998. Em trinta anos, sua poesia, mais que amadurecimento, mostra consolidação. E é tanto de forma – fixa ou “livre” – quanto de ritmos e percepções, de vocabulário e de visão do mundo. Há ganho de música, há ganho de linguagem, há ganho do que a poesia sempre quer : uma verdade pessoal que se faça propriedade do leitor, universal.
 



Ruy Espinheira Filho
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11/07/2005