José Carlos A. Brito
Florbela Espanca, a alma em expansão
Florbela Espanca foi uma poeta de
extraordinária sensibilidade, nascida em 1894 em Vila Viçosa,
Portugal. Desde criança fazia versos originados de uma necessidade
interior, que segundo os críticos, mesmo com erros de ortografia
eram avançados em relação à sua idade. É o processo de criação para
atender às pressões do inconsciente e que levaram Florbela a uma
permanente angustia de nunca conseguir expressar-se na proporção em
que a força erótica de sua alma oculta o exigia. Como diz seu
critico José Regis, em estudo de 1952: “...Nem o Deus que viesse
ama-la, sendo um Deus, lograria satisfazer a sua ansiedade...
Sempre suas manifestações poéticas
estavam aquém da necessidade desse outro ser, um inconsciente
imaginativo a impulsionar os sentimentos desde dentro. Mas ela
avançava sem preocupar-se muito com a poesia que circulava nos meios
literários a seu redor. As revistas e movimentos como “Orfeu”,
“Presença”, e outros, nada significavam de muito importante
para ela e nisso o próprio modernismo passou desapercebido em sua
obra. Florbela poetava por uma necessidade intrínseca e seu estilo
não se detinha em acompanhar escolas e modas da época.
Era, portanto, um vulcão de paixões
inexplicáveis com fortes elementos do inconsciente coletivo,
aflorando, além da expressão de sua alma traduzida pela metáfora do
feminino, que no caso de Florbela era um fato plasmado através do
narcisismo, utilizando-se para tanto de sua própria imagem. Resulta
interessante notar essas sinalizações destacadas por José Régio:
“...viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de
exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em
tudo, que na sua poesia atingem tão vibrante expressão...” Mais
adiante em relação ao feminino “...Também de certo aparecem na
nossa poesia autenticas poetisas, antes e depois de Florbela.
Nenhuma, porém até hoje, viveu tão a sério um caso tão excepcional,
e, ao mesmo tempo, tão significativamente humano...tão
expressivamente feminino...”
Ainda o próprio autor do estudo nos
revela, nesta significativa citação, como aflorava o inconsciente
coletivo veiculado por sua poesia. Vejamos:
“...mais tarde se revelará na sua
poesia, como uma verdadeira intuição obsessiva e não o
capricho literário que também é, o pós-sentimento de ter vivido em
outros mundos, em outras vidas, em outros países: de ter sido não só
quaisquer das figuras romanescas sonhadas pela fantasia dos poetas
ou vitralizadas pela história e a lenda – princesas, infanta, monja
– mas ainda árvore, flor, pedra, terra; senão nuvem, som, luz...”
Na penumbra do pórtico encantado
De Bugres, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egito com Loti;
Lancei flores na Índia ao rio sagrado.
Mas José Régio, na mesma analise sobre
Florbela, dá uma escorregada ao querer interpretar seu narcisismo
como contradição de personalidade da poeta em relação à procura ou
exaltação do seu amor. Utilizando certa forma pejorativa, mal
percebe, esse crítico, o impressionante processo de expressão
espontânea do feminino inspirador, que a poeta mulher faz surgir por
imagens mal compreendidas quando conceituadas como narcisismo. Indo
da incompreensão à censura, vejamos o que nos fala Régio a respeito:
“…Todavia não creio que em tais
sonetos se exprima o singular de Florbela. Embora fazendo sonetos de
amor até ao fim, e não obstante a feminilidade que já vimos dar tom
ao seu narcisismo, lembremo-nos, continuemos a lembrar-nos que
Florbela gosta demasiado de si mesma, comprazendo-se em cantar “os
leves arabescos” do seu corpo, a sua “pele de âmbar” os seu “olhos
garços”, sobretudo as suas mãos que tanto veste de imagens. Pormenor
impressionante: O que em si própria mais parece agradar-lhe – as
mãos e os olhos – é o que também mais canta no amante amado.
Dir-se-ia que ainda nele se espelha e se procura. E sem dúvida
poderemos pensar que, em vários de seus sonetos considerados de
amor, ela é que é o verdadeiro motivo; e o pretenso amado um
pretexto.Ora, narcisismo e egolatria não parecem que sejam muito
favoráveis ao dom de amar. ”
Isto significa não entender que a
verdadeira poesia e a procura de um algo muito poético sejam uma
coisa só, e que a alma procura sentidos para encontrar-se quase
sempre em contatos que lhe despertem a sensibilidade por intermédio
do amor, pois é esse amor a energia erótica, através de uma intensa
fabricação de libido, de dentro, que Florbela precisa desprender e
captar ao mesmo tempo na consciência, para produzir sua obra. Seria
uma pequena ilusão encontra-la de forma permanente no sexo oposto,
mas a incitação à possibilidade inicial da paixão leva a poeta a
procura-la nos homens, desiludindo-se, nos três casamentos desfeitos
em apenas 15 anos. Sem esquecer que existe a necessidade de criar o
pólo oposto para estabelecer a tensão necessária à criação, pois a
energia nasce da relação dinâmica entres esses opostos.
Compreende-se o anúncio insistente da
procura, e também as formas sinceras de imaginar tal encontro como
formas de amor, ou na imagem do seu feminino, ou nas tentativas de
ternura, inclusive em relação ao seu amado irmão. E isso é a poesia
de Florbela, anunciação da insatisfação por não encontrar-se. No
soneto seguinte podemos apreciar essa poesia:
EU
Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porque...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca, em vida, conseguiu
editar o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade
(1923), deixando inéditos Charneca em Flor e Relíquia,
por não ter encontrado editor. As críticas em geral não acertaram
esse compasso espiritual de Florbela, quando a analisam
“...desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social.
Inserida em seu mundo pequeno burguês...(observação citada por
Rolando Galvão). Uma analise insensível, por não levar em conta o
mergulho da poeta na criação individual, pois, dessa forma
conseguiria sua profunda inserção na comunidade, como de fato veio
acontecer posteriormente. Florbela fez sua poesia em sonetos, pouco
se preocupando com o estilo modernista, como já dissemos, porque a
essência de seu fluxo poético encaixou-se melhor nessa forma (e, por
acaso, não seria igualmente essa forma de cadência, ritmo e melodia
a indicada por seu ativo imaginário do inconsciente?). Mesmo, nessa
técnica escolhida, despreocupou-se com a formalidade do verso;
precisava dizer urgentemente ao mundo o que borbulhava dentro dela.
No EU que transcrevemos na integra,
vemos a alma que se derrama num caudal fazendo-a sofrer
dolorosamente...por ser irmã do sonho...é sacrificada e dolorida. Ao
não conseguir encontrar a expressão adequada no consciente das
realidades de sua vida, o “...destino amargo, triste e forte a
impele brutalmente para a morte...”, isto é, busca essa alma,
supostamente verdadeira, fora do mundo real dos fatos objetivos, e
dentro do sonho, o único que a poeta mais conhece e vive. Na sua
realidade das coisas, sua figura não é vista e nem compreendida (chamam-me
triste sem o ser). E ela própria não consegue identificar o
porquê disso. No caso dela é um sofrimento real e não apenas um
fingimento poético, com a conseqüente representação artística.
Esse sofrimento real leva à tragédia
real, que mais tarde se apresentará no suicídio aos 36 anos. Se
fosse fingido, o sofrimento desembocaria em arte representativa,
tragédia que se realiza na obra estética do drama, através do
símbolo. Florbela é poesia bruta, pura, como a explosão dos astros,
e é por isso também extremamente vidente, ao perceber, desde seu
mundo oculto um Alguém articulador (que vem de algum lugar
obscuro?), manejando os mecanismos de seu emergir espontâneo. Alguém
a provocar-lhe sede, mas que não lhe dá água de beber “...Alguém
que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou.”,
visão extraordinária do inconsciente vivo, onde ela dialoga com o
simbolo difuso, diríamos.
E notemos como tenta, antecipadamente,
prever a cristalização desse encontro, um ir além do metafísico, num
dos últimos sonetos de sua vida:
DEIXAI ENTRAR A
MORTE
Deixai entrar a morte, a iluminada,
A que vem para mim, pra me levar,
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.
Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?...pra que eu tivesse sido
Somente o fruto das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
Mas antes dessa ida, Florbela tentou
experimentar “... prender nas mãos todo o luar...”. E
procurou-o no amor aos homens, mas achou o sexo brutal; ali não
estava o luar, o erotismo em que procurava comover-se. Esse pólo
extremo sempre existiria, com o intuito de provocar energia, mas
todo pólo que predomina sobre o outro desequilibra o processo de
criação. Florbela sempre que cedia à tentação de optar por um dos
lados, estagnava o processo vital da criação de libido.
AMAR
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar!Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem dizer que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso canta-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder...pra me encontrar...
Florbela vivia à procura de sua alma
interior, na beleza imaginada de seu feminino e na vivência de sua
paixão interior; seu amor, que não se realizaria com os homens.
Procurei o amor, que me mentiu,
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu. (Inconstância)
....................................................
Quando se defrontava com o feminino de
sua alma achava-se de uma beleza indescritível, não cabia dentro de
sua própria formosura.
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
-Vamos correr e rir por entre o trigo – (Passeio no Campo)
Mas ao defrontar-se com a realidade,
quase desconhecida e a ela desacostumada, exagerava em dizer que seu
corpo era feio diante do espelho. Mesmo que não o fosse, a visão não
correspondia a seu estado de sonho, cujo conceito do belo estava
além da realidade.
Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, não o dissera
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim e não me via! (EU II)
..........................................................
E ao final Florbela, frente ao dilema
de ser ou não ser, terminava correndo para o refúgio da própria
poesia, seu ser transcendente, que corresponderia à unidade desses
dois contrários: o símbolo permanente de sua possível salvação.
SER POETA
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede do Infinito!
Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te assim perdidamente
E seres alma e sangue e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente.
O sofrimento vinha dessa
incompatibilidade entre o corpo real e o corpo da alma. Florbela
precisaria de um meio termo, não como média, mas como síntese
simbólica ou filosófica. Talvez a filosofia oriental fosse-lhe
propícia naquele momento de domínio da incompreensão total, exercida
sobre ela até pela cultura circundante. Pois, o meio em que se
locomovia era fruto das máscaras do valor aparente, das conquistas
violentas, da supervalorização física, a nostalgia dos feitos
colonizadores, que em Portugal (sem excluir outros paises
colonialistas) oprimia a alma de seus poetas profundos (veja-se
Fernando Pessoa, morto por alcoolismo, ou mesmo Sá Carneiro, levado
ao suicídio)
Em outra cultura mais espiritual,
Florbela, provavelmente teria sobrevivido, conseguindo que sua
psique encontrasse parcerias externas, na condução de seu erotismo
ao caminho da harmonia, ou o equilíbrio entre a alma insaciável e o
corpo real, encaixando-se conteúdo e forma, em sua vida como na
poesia, misturando a imaginação com a vida real.
Desse País inexplicável, Florbela,
consegue chegar a ponto de perceber o quanto a indecifrável e
frustrada história “da pátria” se mistura com os enigmas de sua
alma, que a levarão a sucumbir por não suportar mais esse desejo
insaciável e desconhecido, não consumado. Vejamos no poema:
NOSTALGIA
Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que pelas aias reparti
Como outras rosas da Rainha Santa!
Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País em que eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou infanta!
Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!
Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!
A poeta, ao refletir sobre essa
trajetória, percebe seu sonho misturado a um vago sonho coletivo,
que para ela foi “...um sonho alado erguido em horas de
demência...”. Não há realidade palpável, onde possa firmar-se;
não vem o Desejado e nem o Infante, duas figuras; a do seu desejo e
a do desejo da imaginação da coletividade (através de uma máscara
coletiva de feitos e heróis). Aquilo que seria o transcendente - sua
própria poesia - já não encontrava meios psíquicos de faze-la viver,
porque ela própria já não possuía mais recursos para sustentar-se na
vida das imagens. Assim diz:
SONHO VAGO:
Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência
Gotas de água que tombem em cadencia
Na minha alma, tristíssima, distante...
Onde está ele o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitencia ?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?
E neste sonho eu já nem sei quem sou
O brando marulhar de um longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...
Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontras-te e não me vês!
Leia Florbela Espanca
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