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João Cezar de Castro Rocha

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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João Cezar de Castro Rocha

Jornal do Brasil

Idéias, 7.1.2005


José de Alencar, autor de 'Madame Butterfly'

 

As razões por que a cultura brasileira não foi capaz de superar o trauma de Iracema

 

Em 1875, no auge da polêmica com José de Alencar, Joaquim Nabuco imaginou uma fórmula maliciosa: Iracema não passaria de uma ''Norma tupi''... A comparação era uma faca só-lâmina. De um lado, desconfiava da originalidade do autor brasileiro. De outro, condenava o criador de Iracema ao papel de memória do passado. Afinal, o romance, publicado em 1865, transformava-se numa adaptação da ópera Norma, de Vincenzo Bellini, estreada em 1831.

Nessa ópera, encena-se o conflito entre duas culturas; portanto, entre conquistadores e dominados. Norma, sacerdotisa gaulesa, apaixona-se pelo governador romano da Gália, Polione, com quem tem dois filhos, traindo pois sua cultura. Contudo, Polione decide abandoná-la. Desesperada, a sacerdotisa pensa em matar seus filhos, mas não concretiza a vingança: Norma não se transforma em Medéia. No final, Polione é aprisionado. Para salvá-lo, Norma confessa ser a verdadeira traidora. Comovido, o governador romano redescobre seu amor pela sacerdotisa e a ópera termina com a marcha triunfal dos amantes à pira na qual serão sacrificados. Norma é a ópera que celebra o triunfo do amor cristão sobre o sentimento pagão de vingança.

Ora, em Iracema, se o choque entre as culturas também ocupa o primeiro plano, em nenhum momento Martim sacrifica-se por amor. Pelo contrário, não parece hesitar: resgata Moacir e volta à ''civilização'', ou seja, num futuro próximo, deverá desposar uma mulher ''branca'', iniciando a cultura de tantos filhos da ''dor e do sofrimento'', que a sociedade brasileira não pára de gerar. Por sua vez, Iracema, a dedicada virgem dos lábios de mel, jamais pensaria em tornar-se Medéia.

Renato Janine Ribeiro dedicou um agudo ensaio à malícia de Nabuco, retomando o contraponto entre o romance indianista e a ópera romântica, a fim de identificar traços da cultura brasileira. Um paralelo igualmente fecundo pode ser proposto entre Iracema e Madame Butterfly, a ópera de Giacomo Puccini, estreada em 1904.

Nessa ópera, o capitão norte-americano Pinkerton encanta-se com uma gueixa de 15 anos, Cio-Cio-San. A solução não demora: ela é comprada, arranjando-se um ''casamento''. Desse modo, o capitão passa a ''freqüentar'' livremente sua casa - pelo tempo em que permanecer na cidade, bem entendido. O acordo é claro para todos, menos para a gueixa. Abandonada, resiste ao assédio de novos pretendentes com o argumento irrefutável: Pinkerton retornará para levar seu filho. De fato, a previsão se cumpre. O capitão volta a Nagasaki, mas com a esposa norte-americana. Madame Butterfly compreende o engano em que vivera e, numa cena dolorosa, entrega o filho à esposa ''legítima'' para que seja criado pelo casal. Aparentemente a única alternativa que lhe resta é o suicídio, pois, à fúria de Medéia, opõe uma submissão dedicada.

Alencar, portanto, não se inspirou em Bellini, mas anunciou Puccini! Em termos inventados por Jorge Luis Borges e retomados por Silviano Santiago: ''Alencar, autor de Madame Butterfly''.

Uma recente e polêmica encenação da ópera de Puccini permite renovar o diálogo entre épocas e autores. Refiro-me à concepção de Calixto Bieito, em cartaz na Komische Oper, em Berlim. Trata-se de um dos mais brilhantes e polêmicos espetáculos de 2005 na Alemanha. Dois adjetivos, aliás, que acompanham com freqüência o diretor catalão. Qual o motivo do escândalo? Uma releitura radical da ópera - e isso sem alterar uma só palavra do libreto.

Ora, para Bieito, o tema tratado por Puccini antecipou um dos maiores problemas do mundo contemporâneo: o turismo sexual! Por isso, sua encenação exclui todos os motivos orientalistas. A ação transcorre num bordel, cuja decoração, deliberadamente kitsch, poder-se-ia localizar em Paris ou Fortaleza, Berlim ou Salvador - até mesmo em Nagasaki. A mercantilização do sexo e o imperialismo econômico são apresentados como faces da mesma moeda. O controle dos fluxos de capital se concretiza no usufruto de corpos. O capitão Pinkerton de Bieito prefigura todos os ''gringos'' que fretam vôos para viver seus 15 minutos de cama com meninas de 15 anos, como a Cio-Cio-San de Puccini.

Mas a surpresa maior ocorre na última cena. No momento em que deve entregar o filho à esposa de Pinkerton, a Madame Butterfly de Calixto Bieito realiza o improvável (indispensável?) gesto: mata o próprio filho, disseminando a dor e o sofrimento, em lugar de aceitá-los passivamente. O pano se fecha com Madame Butterfly atônita no centro do palco, acompanhada pela evocação desesperada de Pinkerton, não mais expressando o lamento pela morte da gueixa, mas a impotência diante do corpo do filho. Corpo que, à revelia de seus recursos, não poderá ser adquirido. A Madame Butterfly de Calixto Bieito sofre uma inesperada (necessária?) metamorfose, vivendo um instante de Medéia.

Por que não imaginar Bieito leitor de Alencar, isto é, autor de Iracema? Por que não atribuir à virgem dos lábios de mel a coragem da feiticeira, enamorada de Jasão? Na gênese da cultura brasileira, quais seriam as conseqüências do gesto? Iracema sacrificaria a Moacir, talvez horrorizada com a intuição acerca da sociedade criada pelos Martins do futuro (ou do presente).

Em boa medida, a cultura brasileira não foi capaz de superar o trauma de Iracema: continuamos dependentes da legitimação externa. Seguimos com fascínio as novidades produzidas nos grandes centros. Estamos sempre dispostos a entregar a matéria-prima, isto é, nossos melhores autores, a fim de esclarecer a ''relevância'' das teorias, ou seja, dos manufaturados que contrabandeamos, como se metodologias fossem moedas de circulação irrestrita. E, por fim, como se estivéssemos condenados ao destino de Iracema ou de Cio-Cio-San, apaixonamo-nos com uma facilidade constrangedora, aceitando os casamentos mais improváveis - Machado de Assis e teorias de gênero; Clarice Lispector e a crítica feminista.

Porém, no tocante aos estudos culturais preocupados com a ''condição pós-colonial'', devemos liderar as pesquisas, formulando teorias, em lugar de importá-las. Ora, a experiência luso-brasileira é única no que se refere à transferência da metrópole para a colônia. Na América Latina, a descolonização ocorreu já nas primeiras décadas do século 19 e a própria possibilidade do pensamento latino-americano forjou-se nesse confronto. Por exemplo, Boaventura de Sousa Santos definiu a condição do Império Português como semi-periférica, mesmo no período de apogeu. E o crítico Antonio Candido definiu a circunstância cultural brasileira como semi-colonial, inclusive após a Independência. Aprofundar propostas semelhantes é tarefa mais urgente do que manter-se up-to-date.

Portanto, intelectuais e professores latino-americanos que reproduzem teorias sobre a ''condição pós-colonial'' deveriam assistir à Madame Butterfly de Calixto Bieito. Tal descrição, reconheço, é deliberadamente caricata. Mas a cena descrita não será involuntariamente uma caricatura?

* Professor de Literatura Comparada da Uerj

 

José de Alencar