João Cezar de Castro Rocha
Idéias,
7.1.2005
José de Alencar, autor de 'Madame Butterfly'
As razões por que a cultura brasileira não foi capaz de
superar o trauma de Iracema
Em 1875, no auge da polêmica com José
de Alencar, Joaquim Nabuco imaginou uma fórmula maliciosa: Iracema
não passaria de uma ''Norma tupi''... A comparação era uma faca
só-lâmina. De um lado, desconfiava da originalidade do autor
brasileiro. De outro, condenava o criador de Iracema ao papel de
memória do passado. Afinal, o romance, publicado em 1865,
transformava-se numa adaptação da ópera Norma, de Vincenzo Bellini,
estreada em 1831.
Nessa ópera, encena-se o conflito
entre duas culturas; portanto, entre conquistadores e dominados.
Norma, sacerdotisa gaulesa, apaixona-se pelo governador romano da
Gália, Polione, com quem tem dois filhos, traindo pois sua cultura.
Contudo, Polione decide abandoná-la. Desesperada, a sacerdotisa
pensa em matar seus filhos, mas não concretiza a vingança: Norma não
se transforma em Medéia. No final, Polione é aprisionado. Para
salvá-lo, Norma confessa ser a verdadeira traidora. Comovido, o
governador romano redescobre seu amor pela sacerdotisa e a ópera
termina com a marcha triunfal dos amantes à pira na qual serão
sacrificados. Norma é a ópera que celebra o triunfo do amor cristão
sobre o sentimento pagão de vingança.
Ora, em Iracema, se o choque entre as
culturas também ocupa o primeiro plano, em nenhum momento Martim
sacrifica-se por amor. Pelo contrário, não parece hesitar: resgata
Moacir e volta à ''civilização'', ou seja, num futuro próximo,
deverá desposar uma mulher ''branca'', iniciando a cultura de tantos
filhos da ''dor e do sofrimento'', que a sociedade brasileira não
pára de gerar. Por sua vez, Iracema, a dedicada virgem dos lábios de
mel, jamais pensaria em tornar-se Medéia.
Renato Janine Ribeiro dedicou um agudo
ensaio à malícia de Nabuco, retomando o contraponto entre o romance
indianista e a ópera romântica, a fim de identificar traços da
cultura brasileira. Um paralelo igualmente fecundo pode ser proposto
entre Iracema e Madame Butterfly, a ópera de Giacomo Puccini,
estreada em 1904.
Nessa ópera, o capitão norte-americano
Pinkerton encanta-se com uma gueixa de 15 anos, Cio-Cio-San. A
solução não demora: ela é comprada, arranjando-se um ''casamento''.
Desse modo, o capitão passa a ''freqüentar'' livremente sua casa -
pelo tempo em que permanecer na cidade, bem entendido. O acordo é
claro para todos, menos para a gueixa. Abandonada, resiste ao
assédio de novos pretendentes com o argumento irrefutável: Pinkerton
retornará para levar seu filho. De fato, a previsão se cumpre. O
capitão volta a Nagasaki, mas com a esposa norte-americana. Madame
Butterfly compreende o engano em que vivera e, numa cena dolorosa,
entrega o filho à esposa ''legítima'' para que seja criado pelo
casal. Aparentemente a única alternativa que lhe resta é o suicídio,
pois, à fúria de Medéia, opõe uma submissão dedicada.
Alencar, portanto, não se inspirou em
Bellini, mas anunciou Puccini! Em termos inventados por Jorge Luis
Borges e retomados por Silviano Santiago: ''Alencar, autor de Madame
Butterfly''.
Uma recente e polêmica encenação da
ópera de Puccini permite renovar o diálogo entre épocas e autores.
Refiro-me à concepção de Calixto Bieito, em cartaz na Komische Oper,
em Berlim. Trata-se de um dos mais brilhantes e polêmicos
espetáculos de 2005 na Alemanha. Dois adjetivos, aliás, que
acompanham com freqüência o diretor catalão. Qual o motivo do
escândalo? Uma releitura radical da ópera - e isso sem alterar uma
só palavra do libreto.
Ora, para Bieito, o tema tratado por
Puccini antecipou um dos maiores problemas do mundo contemporâneo: o
turismo sexual! Por isso, sua encenação exclui todos os motivos
orientalistas. A ação transcorre num bordel, cuja decoração,
deliberadamente kitsch, poder-se-ia localizar em Paris ou Fortaleza,
Berlim ou Salvador - até mesmo em Nagasaki. A mercantilização do
sexo e o imperialismo econômico são apresentados como faces da mesma
moeda. O controle dos fluxos de capital se concretiza no usufruto de
corpos. O capitão Pinkerton de Bieito prefigura todos os ''gringos''
que fretam vôos para viver seus 15 minutos de cama com meninas de 15
anos, como a Cio-Cio-San de Puccini.
Mas a surpresa maior ocorre na última
cena. No momento em que deve entregar o filho à esposa de Pinkerton,
a Madame Butterfly de Calixto Bieito realiza o improvável
(indispensável?) gesto: mata o próprio filho, disseminando a dor e o
sofrimento, em lugar de aceitá-los passivamente. O pano se fecha com
Madame Butterfly atônita no centro do palco, acompanhada pela
evocação desesperada de Pinkerton, não mais expressando o lamento
pela morte da gueixa, mas a impotência diante do corpo do filho.
Corpo que, à revelia de seus recursos, não poderá ser adquirido. A
Madame Butterfly de Calixto Bieito sofre uma inesperada
(necessária?) metamorfose, vivendo um instante de Medéia.
Por que não imaginar Bieito leitor de
Alencar, isto é, autor de Iracema? Por que não atribuir à virgem dos
lábios de mel a coragem da feiticeira, enamorada de Jasão? Na gênese
da cultura brasileira, quais seriam as conseqüências do gesto?
Iracema sacrificaria a Moacir, talvez horrorizada com a intuição
acerca da sociedade criada pelos Martins do futuro (ou do presente).
Em boa medida, a cultura brasileira
não foi capaz de superar o trauma de Iracema: continuamos
dependentes da legitimação externa. Seguimos com fascínio as
novidades produzidas nos grandes centros. Estamos sempre dispostos a
entregar a matéria-prima, isto é, nossos melhores autores, a fim de
esclarecer a ''relevância'' das teorias, ou seja, dos manufaturados
que contrabandeamos, como se metodologias fossem moedas de
circulação irrestrita. E, por fim, como se estivéssemos condenados
ao destino de Iracema ou de Cio-Cio-San, apaixonamo-nos com uma
facilidade constrangedora, aceitando os casamentos mais improváveis
- Machado de Assis e teorias de gênero; Clarice Lispector e a
crítica feminista.
Porém, no tocante aos estudos
culturais preocupados com a ''condição pós-colonial'', devemos
liderar as pesquisas, formulando teorias, em lugar de importá-las.
Ora, a experiência luso-brasileira é única no que se refere à
transferência da metrópole para a colônia. Na América Latina, a
descolonização ocorreu já nas primeiras décadas do século 19 e a
própria possibilidade do pensamento latino-americano forjou-se nesse
confronto. Por exemplo, Boaventura de Sousa Santos definiu a
condição do Império Português como semi-periférica, mesmo no período
de apogeu. E o crítico Antonio Candido definiu a circunstância
cultural brasileira como semi-colonial, inclusive após a
Independência. Aprofundar propostas semelhantes é tarefa mais
urgente do que manter-se up-to-date.
Portanto, intelectuais e professores
latino-americanos que reproduzem teorias sobre a ''condição
pós-colonial'' deveriam assistir à Madame Butterfly de Calixto
Bieito. Tal descrição, reconheço, é deliberadamente caricata. Mas a
cena descrita não será involuntariamente uma caricatura?
* Professor de Literatura Comparada da Uerj
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