José Inácio Vieira de Melo
Ronaldo Correia de Brito
– O código do
livro dos homens
Jornal Tribuna Feirense – Tribuna
Cultural
Feira de Santana – BA, domingo, 17 de julho de 2005
Ronaldo Correia de Brito, 55 anos, cearense radicado em Pernambuco,
formado em Medicina no Recife, é um dos mais aclamados contistas
brasileiros. Depois da consagração com o livro Faca, publicado pela CosacNaify, em 2003, e um dos finalistas do prêmio Telecom 2004,
Correia de Brito lança, pela mesma editora, Livro dos Homens, em que
dá continuidade a temática sertânica, da qual é inovador.
As histórias do contista do Sertão dos Inhamuns têm como cenário um
sertão arcaico que sucumbe aos avanços da modernidade, mas que
insiste em conservar os costumes, os seus códigos de honra. Suas
personagens, por vezes, parecem retiradas de passagens bíblicas e,
por outras, é como se saíssem da tela do cinema.
Nesta entrevista, Ronaldo Correia de Brito fala do avanço que dá, em
Livro dos Homens, na relação entre cultura erudita e popular, da sua
paixão pelo cinema e pelo teatro e de como essas linguagens dialogam
no processo de criação de seus contos.
José Inácio Vieira de Melo – Depois do sucesso unânime de seu
segundo livro, “Faca” (CosacNaify, 2003), você traz aos leitores
“Livro dos Homens”, também publicado pela CosacNaify. O universo
temático permanece: “Um sertão de ressonâncias existenciais, denso,
de linguagem depurada (...)”. Em quais aspectos um livro se
diferencia do outro, ou há uma continuidade como nos livros “Contos
da Montanha” e “Outros Contos da Montanha” de Miguel Torga?
Ronaldo Correia de Brito – Eu e Rodrigo Lacerda, editor da Cosac,
selecionamos 13 contos para compor “Livro dos Homens”, de um
conjunto de 28 narrativas, cuidando em apresentar um livro novo, mas
com ressonâncias do anterior. Textos como Sapo, publicado na revista
“Iararana” e Catana ficaram de fora por terem endereço certo, um
mundo urbano facilmente reconhecível, ao contrário do “incerto
sertão” em que costumo situar minhas histórias. Em “Livro dos
Homens”, os conflitos culturais do nosso tempo, o estranhamento do
sagrado e a globalização, temas que me são caros, estão presentes em
Cravinho, Qohélet e A peleja de Sebastião Candeia, para citar apenas
três contos. Acredito que também avancei na complexa relação entre
cultura erudita e popular, transitando mais livremente por esses
dois mundos, aparentemente inconciliáveis.
JIVM – Você publicou o primeiro livro de contos,
As noites e os
dias, em 1996, já próximo dos cinqüenta anos de idade. O que o levou
a esse “tempo de espera”?
RCB – Você lembra o filme “Fanny e Alexander”, de Ingmar Bergman?
Tem uma bela metáfora sobre a arte, ou sobre a alma, se você
preferir. Na casa de um judeu antiquário, que salva o menino
Alexander do padrasto tirano, a alma do artista, vou chamá-la assim,
é representada por Ismael, O Proscrito, que vive preso num quarto,
guardado por cadeados e correntes. Este personagem masculino é
interpretado por uma atriz, acentuando a ambigüidade da criação.
Acho que na minha vida e na de muitos artistas, estou lembrando o
italiano Lampedusa, aconteceu algo semelhante. Carregamos esse
artista encarcerado dentro de nós, visitamo-lo vez por outra às
escondidas, temerosos de que ele possa soltar-se. Tememos os
estragos que acarretaria para as nossas vidas a sua absoluta
liberdade. Sim, sempre me ocupei da literatura como o filósofo
Espinosa se ocupava das lentes em que dava polimento, para descansar
a mente dos pensamentos filosóficos. Todos os dias eu trabalhava os
meus contos, estes que estão sendo publicados agora, reescrevendo-os
à exaustão. Novelas de vinte páginas encolhiam para seis ou sete
páginas. Sempre tirando, limpando, obsessivamente. O conto Eufrásia
Meneses, do “Livro dos Homens”, foi escrito há 30 anos. De lá para
cá, sofreu mais de 50 reescritas. Um trabalho de doido.
Eu também sofria de um certo pavor à publicação, embora a desejasse.
É contraditório, mas foi sempre assim mesmo. Além disso, achava que
existiam livros demais, que os meus só iriam aumentar a confusão da
Babel. E como se não bastasse, naquela época, eu vivia ocupado com o
teatro e a medicina. Mesmo para uma pessoa que respira literatura
desde pequena, mas que escolheu a profissão de médico, com uma
jornada semanal de trabalho de no mínimo 60 horas, sobrava pouco
tempo para escrever. Por mais que amasse os livros.
JIVM – Em seus contos há momentos (“Qohélet”, “Milagre em Juazeiro”
– Livro dos homens; “Sapo” – Revista Iararana 10) que se aproximam
da linguagem cinematográfica. O ritmo, as pausas conduzem o leitor
para uma sala de projeção. Em que medida o cinema é uma influência
em sua produção literária?
RCB – Quando deixei o Sertão dos Inhamuns e fui morar no Crato, na
época a segunda maior cidade do Ceará, meu pai levou-me ao cinema.
Tornei-me um viciado, freqüentador assíduo das salas de projeção, um
deslumbrado como a Cecília de “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody
Allen. Via filmes todos os dias, os bons e os péssimos. Sabia as
cenas decoradas, prestava atenção nos cortes, na música, nos
enquadramentos. Lia e via cinema. Era um caso perdido. A professora
do grupo escolar chamou os meus pais e falou preocupada que eu vivia
no “mundo da lua”. Foi a primeira vez que escutei essa expressão.
Descobri que todo filme e livro, por pior que seja, sempre nos
ensina alguma coisa. Quando vi “O Evangelho Segundo São Mateus”, sem
nunca ter escutado falar em Pasolini, entrei em estado de graça,
tocado pela ousadia da direção. Em contrapartida, numa noite de
segunda-feira, desligaram as máquinas e suspenderam a projeção de “A
Chinesa”, de Godard, porque toda a platéia preferiu ficar no saguão
do Cine Cassino, olhando a chuva torrencial, de pé, presa e sem
poder ir para casa, mas também sem querer assistir aquela chatice de
filme. Impregnei-me de cinema e literatura como se fossem uma mesma
linguagem. Na verdade, misturo teatro, conto, novela, cinema, ao meu
bel-prazer. Circulo com naturalidade de um lado para outro.
Transformo minhas peças em contos, os contos em peças, sem pudor.
JIVM – E as suas referências literárias mais importantes, quais são?
RCB – Eu gosto de livros que contenham todas as histórias, que
pareçam inesgotáveis, que sejam representações do humano e do
mítico. Comecei por uma seleta da “Bíblia”, a “História Sagrada”.
Nesse livro eu aprendi a ler, e nele reconheci meu mundo, o sertão e
seus pastores. Aprendi o sentido de amizade, que cultuamos como a
mais elevada das virtudes. Muito cedo li a obra de José de Alencar e
a de Machado de Assis. Também a de Monteiro Lobato. Depois, por um
feliz acaso, tive nas mãos a “Ilíada” e a “Odisséia”, livros que
nunca mais larguei. Ao mesmo tempo iniciei-me nas “Mil e uma
Noites”, na versão clássica de Antoine Galland. Veio o tempo dos
russos – Tolstoi, Dostoievski, Gogol –; do teatro grego, de
Shakespeare, de Molière. Curti a moda da literatura
latino-americana, até descobrir e esbarrar em Jorge Luis Borges. Li
Fernando Pessoa, Lorca, os poetas brasileiros, e também esbarrei no
meu eleito, Walt Whitman. Minha descoberta da maturidade são os
clássicos indianos, Mahabharata e Ramayana. Não cito aqui a leitura
dos contemporâneos, trato de livro que me influenciaram.
Recentemente, um crítico escreveu que eu devo a Moreira Campos,
contista cearense, cobrando que eu referisse isto. Eu considero
Moreira Campos um dos melhores no gênero, mas só o conheci há bem
pouco tempo, quando já havia definido o meu ritmo, e escrito esses
livros que estão publicados. Devo a Moreira Campos ele ter existido
e ser tão bom. E lamento não tê-lo conhecido antes.
JIVM – As personagens femininas são fortes presenças em seus livros.
Contos como “Inácia Leandro” e “Cícera Candóia”, do livro Faca; e
“Eufrásia Meneses” e “Maria Caboré”, de Livro dos homens, são uma
prova disso. Davi Arrigucci Jr., no posfácio de Faca, salienta que
essas personagens são “tremendas mulheres em situações extremas numa
região específica do Brasil, vivendo dramas universais”. O que o
leva à composição dessas personagens?
RCB – Sempre gostei das mulheres e tomei para mim as suas dores. Sou
um feminista do feminino. Parece brincadeira, mas é isso mesmo. Você
não citou a mulher do “Livro dos Homens” que mais aprecio, a
personagem sem nome do conto Rabo-de-burro. Na versão do conto para
teatro ela se chama Antígona, em homenagem à heroína de Sófocles,
que brigou sozinha contra a cidade de Tebas, pelo direito de
sepultar o irmão. Sempre refleti sobre a vida das mulheres como
minha avó, viúva com 33 anos, nove filhos, uma fazenda para
administrar, num tempo em que bandoleiros, bandos de ciganos, levas
de retirantes e beatos corriam os sertões, assombrando as pessoas.
Minha mãe fazia os trabalhos da casa, educava os oito filhos,
ensinava, exercia o papel de enfermeira da comunidade, e à noite
costurava nossas roupas, numa máquina Singer de pedal. Minha mulher,
minha filha, e muitas outras mulheres são exemplos de força, coragem
e resistência. Os homens se tornaram perplexos diante da afirmação
desse poder feminino. Agora estou mais preocupado com os homens, com
a nossa fragilidade, o impasse diante de um futuro sombrio, sem rumo
certo, uma vez que ruíram todas as certezas em que estávamos
assentados. Sim, este é um excelente tema para os meus contos,
novelas e romances. Vou ocupar-me dos homens. Nós merecemos
compaixão.
JIVM – Apesar das diferenças no processo de criação, parece existir
uma confluência temática entre o sergipano Antonio Carlos Viana, o
baiano Aleilton Fonseca e você. Os cenários, a presença constante da
morte são algumas dessas semelhanças. Pode-se entender que está
surgindo um grupo de escritores cuja proposta é a inovação e a
retomada da temática do sertão, ou se trata de uma simples
coincidência?
RCB – Eu acredito na coincidência de mais escritores da latitude
nordestina estarem produzindo e sendo lidos, do que num movimento.
Desde que Gilberto Freire estabeleceu os cânones do Movimento
Regionalista, e surgiu o Romance de 30, que tentam enquadrar a nossa
produção nessa cartilha, esquecendo que já se passaram 70 anos, e
que todo escritor escreve na perspectiva do seu tempo. Essa cartilha
nos prestou um grande desserviço. Regionalismo virou palavrão.
Chamar um autor de regionalista é uma maneira de diminuir o valor do
seu trabalho, reduzi-lo a estereótipos, enquadrá-lo em chavões,
tratá-lo com preconceito e deboche. Pior do que ser chamado de
regionalista só mesmo ser chamado de folclórico. Ou de contador de
causos. Escrevi um artigo para a revista Continente com o título
Regionalista é a Mãe. O título foi censurado. É como se nada tivesse
acontecido nas bandas de cá desde 1930, o mundo houvesse parado, e
nós ainda escrevêssemos com bico de pena. Isto ocorre no mundo
inteiro, e no Brasil não seria diferente. Quem detém o poder
econômico, o poder da mídia, dita as normas de mercado, estabelece
os critérios de qualificação e desqualificação. Estabelece até um
modelo de crítica, e o ensina nas universidades. É exemplar um
ensaio de Mário de Andrade sobre a poesia de Ascenso Ferreira,
alertando para o risco do poeta cair na tipicidade, ele mesmo um
regionalista de carteira, porque não há romance mais cheio de
tipicidades do que Macunaíma, ou que mais mereça o adjetivo de
regionalista.
Eu gosto de Antonio Carlos Viana e de Aleilton Fonseca, mas acho que
a nossa escrita é bem distinta. Isto é ótimo. Temos em comum a
região em que nascemos, mas não percebo neles, nem em mim, algo
parecido com movimento. O sertão de que trato não existe, é pura
memória inventada. Escrevo sobre um sertão invadido pelas cidades. E
sobre cidades arruinadas pela ruptura com o sertão. Meus
personagens, apesar da paisagem desértica, são neuroticamente
urbanos. O que é o sertão, você sabe? Eu juro que não sei. No
entanto, ele existe. E eu nada mais faço do que procurá-lo.
JIVM – O conto está passando por um processo de revitalização, como
conseqüência tem conquistado mais espaço. Como você analisa este
momento do conto e da literatura brasileira?
RCB – Apesar de desprestigiado, em relação ao romance, nunca se
publicou tantos livros de contos, almanaques e antologias. Tem muita
gente escrevendo bem. Mike Jagger, numa entrevista a Caetano Veloso,
disse que conhecia pelo menos dez bandas de rock, melhores do que os
Rolling Stones, tocando no metrô de Nova Iorque. Imagine quantos
contistas bons existem por aí, desconhecidos. Acho que temos mais
contistas no Brasil do que poetas na dinastia Thang, na velha China,
onde “cada homem era um poeta”, e a lista dos mais afamados chegou a
2300 nomes.
JIVM – Fale de sua incursão pelo teatro. O dramaturgo influencia na
produção do contista?
RCB – Eu sempre escrevi para teatro, desde menino. Tenho muita
intimidade com a carpintaria teatral. Mas escrever para teatro
implica na perspectiva da encenação, do diretor, dos atores. Se não
existe essa perspectiva, não se produz. É a mesma coisa com os
roteiros de filme ou as novelas de TV. Você pode até criar uma
súmula, mas o texto só sai mesmo, quando existe a promessa da
encenação ou da filmagem. Em todas as épocas os dramaturgos
escreveram para companhias e encenadores. Eu já tive várias peças
encenadas e por isso escrevi bastante. Ultimamente cuido de contos e
novelas. Desejo publicar o que está engavetado há anos. No meio
dessa papelada, tem teatro, conto, novela, sempre em transformação,
um virando noutro.
JIVM – Boa parte dos contistas acaba desembocando no romance. Vai
acontecer o mesmo com você? Quais os projetos futuros?
RCB – Venho ensaiando um romance há alguns anos. Não porque ache o
conto um formato de narrativa inferior. Pelo contrário. Até acho que
no romance se gastam muitas palavras, há excessos dispensáveis. Mas
o romance oferece a oportunidade de muitos personagens falarem, de
exporem discursos diferentes. É um espaço para teses. Um diálogo de
Platão não deixa de ser um romance. Essa nossa conversa, por
exemplo, poderia ser parte de um romance. Você não acha? Então,
vamos tentar um romance.
José Inácio Vieira de Melo é poeta e jornalista. Publicou os livros
Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A
Terceira Romaria (2005). É co-editor da revista Iararana e coordena
o projeto Poesia na Boca da Noite.
Leia Ronaldo Correia
de Brito
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