José Inácio Vieira de Melo
Singularidade de um
poeta marcado pelo humanismo
10 de fevereiro de 2007
AS PERIPÉCIAS. Gerardo Mello
Mourão chega aos 90 anos – completados no dia 8 de janeiro – como
uma das vozes mais representativas da Literatura Brasileira
contemporânea. Um poeta de expressão singular, considerado por
vários críticos e muitos escritores – entre eles Carlos Drummond de
Andrade, Wilson Martins, José Cândido de Carvalho e Octavio de Faria
– como o poeta maior do Brasil.
Nascido em 1917, no pé da serra do
Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, Gerardo teve uma vida
bastante acidentada e cheia de aventuras. Sua obra tem merecido, ao
longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da
Literatura Ocidental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis
Borges e Robert Graves.
Aos 11 anos foi para o Seminário São
Clemente, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, onde permaneceu até
os dezoito, período em que aprendeu nove idiomas e traduziu, num
exercício diário, textos do grego e do latim, de Homero e Píndaro,
Virgílio e Horácio, Ovídio e Propércio.
Abandonou o convento em 1935, poucos
meses antes de proferir os votos de pobreza, castidade e obediência.
Começou a estudar direito, mas abandonou. Logo em seguida, aderiu ao
Integralismo, assim como Câmara Cascudo e Adonias Filho, conduzido
para o movimento pelo crítico Tristão de Athayde.
Foi preso 18 vezes durante as
ditaduras do Estado Novo e Militar. Numa delas, ficou no cárcere
cinco anos e dez meses (1942 – 1948), quando escreveu o célebre
romance O Valete de Espadas e dez elegias de perdição reunidas no
livro Cabo das Tormentas. Viajou por toda a Europa, América e
Brasil.
O país em que viveu mais tempo, no
exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de
Valparaíso. Na década de 1980 morou em Pequim, na China, onde foi
correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi
o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China.
Escreveu, até pouco tempo, crônicas diárias para os principais
jornais do Brasil.
AS INVENÇÕES. A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão
compõe uma das mais elevadas contribuições para a literatura
contemporânea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se
esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e
erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e
biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de
Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a
epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs,
composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de
Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).
O Valete de Espadas, traduzido para
vários idiomas, é um romance que está na pauta do surrealismo, mas
em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua
profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de
autores centro-europeus, como o Herman Hesse de O lobo da Estepe. O
personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser
perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do
hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade
completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo
rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro,
adequa-se perfeitamente ao estado de coisas e às tensões da
personagem: “Não conheço sequer o caminho”.
A Invenção do Saber, reunião de
ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a
idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização
– “o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada
vez menos”. E apresenta como contraposição uma cultura humanística,
que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a
quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originariamente
publicados na imprensa, palestras apresentadas em universidades
brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o
poder e o saber.
A epopéia Invenção do Mar, Prêmio
Jabuti de 1998, é considerada pelo crítico Wilson Martins como "Os
Lusíadas" brasileiro, que o chama mesmo de “Os Brasíliadas”, em
artigo publicado no jornal Gazeta de Curitiba.
De fato, Mello Mourão, por outros
caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões,
aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound
percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com “O País dos Mourões”, que
Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é
uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas
a genealogia do seu povo, do seu mundo.
Passear pela seara da obra de Gerardo
Mello Mourão é sentir o “aroma, maciez e música” de uma poesia
maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e
qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua
obra. Somente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem
alcançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua
grandiosidade.
O próprio Drummond declarou-se
“possuído de violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso
painel” da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo
de Ipueiras que, “atestará para sempre a grandeza singular e a
intensidade universal da poesia”. Mello Mourão não cabe em moldes
nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário,
a saga do povo brasileiro.
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