Ruy Espinheira Filho
Das fontes da vida
Decifração de
Abismos é o segundo livro de José Inácio Vieira de Melo, que
estreou, em 2000, com o volume Códigos do Silêncio. O que
observamos logo, na nova publicação, é que o universo poético do
autor permanece o mesmo. Isto significa que a sua atmosfera
nada tem de artificial, não é produto de trucagens literárias — mas
originária de uma experiência de vida. Em outras palavras: José
Inácio não é apenas um alinhador superficial de versos, como tantos
que vagueiam pelos subúrbios da literatura: ele possui uma
sensibilidade que, colhendo os materiais do seu meio físico e da
vivência, fertiliza esses mesmos materiais, transmuta-os, dá-lhes
expressão poética.
Que se compreenda
bem: o mesmo que José Inácio permanece sendo, em sua
atmosfera, não significa mesmice de sua obra. O segundo livro não é
igual ao primeiro. O poeta, nos meses que se passaram, foi
naturalmente amadurecendo. O mesmo, no caso, é referente,
digamos assim, ao caráter lírico, que se mostra sólido em seus
valores, suas raízes, suas fontes. O que é uma importante indicação,
pois só poetas menores, de obras mais artificiosas do que
artísticas, vivem mudando a cada livro, a cada instante, muitas
vezes para pior, acabando por nada deixar de vigoroso, de denso, de
significativo. Só conseguem, estes, enganar os tolos, pois apenas os
tolos confundem artimanhas com arte. Em suma, José Inácio possui
essas raízes, essas fontes, e delas retira uma poesia muito pessoal.
José Inácio é
alagoano, nascido em Olho d’Água do Pai Mané. Este nome poético de
povoado me recorda o nome original da terra em que nasceu o também
alagoano Jorge de Lima: Cerca-Rial-de-Macacos. Dois alagoanos, dois
poetas, alguma semelhança? Nada vi disto em minhas leituras. Na
verdade, José Inácio está bem mais próximo de João Cabral de Melo
Neto (a quem homenageia diversas vezes), embora não possa ser
definido como poeta cabralino. João Cabral foi um grande poeta, como
se sabe. Personalíssimo, fortemente idiossincrático. Os seus
seguidores só conseguem copiar-lhe as exterioridades — e por muito
tempo (agora bem menos) se transformaram, ao lado dos concretistas
et caterva, numa das piores pragas da literatura nacional.
Ainda bem que José Inácio não pode ser classificado de cabralino.
Na verdade, José
Inácio é um herdeiro da tradição como um todo. Como herdeiros da
mesma tradição foram Jorge de Lima, João Cabral, Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, cada um à sua maneira. Cada qual
construindo a sua poesia. E cada poesia carregada com as vivências
dos poetas: o nordeste das secas e enchentes de Jorge de Lima, as
paisagens agrestes de João Cabral, a Minas Gerais recôndita de
Drummond, o Recife nostálgico — e o Rio de Janeiro das primeiras
décadas do século XX — de Manuel Bandeira (além, é claro, do “mau
destino” que condicionou sua poética).
Conheçamos ou não
dados biográficos de José Inácio, fica logo evidente que se trata de
um autor nordestino: são evocados, nos dois livros, o sertão, os
mandacarus, as algarobeiras, o sol implacável, a poeira, os animais
sedentos e famintos... Em Códigos do Silêncio há um poema
breve que expressa bem a angústia do sertanejo na cidade grande.
Intitula-se Roçado:
Derrubo o
edifício
— árvore de concreto —
para que brote a árvore
em que me edifico.
Também o homem, na
obra de José Inácio, é nordestino. Não é qualquer um: é o fruto
próprio da terra áspera. De asperezas que, tanto na terra quanto no
homem, guarda suavidades que só a vivência de que falamos sabe
descobrir. E o homem é, além de forte (para lembrarmos Euclides da
Cunha), de uma grande sensibilidade, natureza lírica e de altas
fabulações. Leiamos as três últimas e exemplares estrofes do poema
Pedro Vaqueiro:
Vaqueiro
valente entre vaqueiros valentes,
amansador, castrador, leiteiro, aboiador
e então entoa uma toada estridente
e conta os seus causos fantásticos,
e inventa estrelas em estradas
e mente com a alma, com beleza.
Eu ouvia suas lorotas ao pé de um candeeiro,
era um regozijo, pois mentia como ninguém
— Pedro Vaqueiro mentia pela boca de um anjo.
Como já foi dito,
embora não exatamente com estas palavras, se alguém quiser ser
universal, que escreva sobre sua aldeia. (Eu diria ainda desta
forma: com a sua aldeia, ou seja: com as emoções profundas
das origens.) Assim, expressando seu universo, sua atmosfera lírica,
José Inácio é uma voz que todos nós escutamos. Ainda jovem, vai
erguendo e refinando o seu canto. Um canto que nasce de fontes
autênticas de vida, que é só de onde a arte pode nascer.
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