Discurso sobre o capim
Luiz Schwarcz
Companhia
das Letras
120 páginas
R$ 27
Depois de incursionar pela literatura infantil com Minha vida de goleiro (1999) e Em busca do Thesouro da
Juventude (2003), Luiz Schwarcz estréia agora na literatura adulta com
uma reunião de 11 contos onde memória e imaginação dialogam
harmoniosamente, e a clareza da escrita é capaz de cativar o leitor mais
exigente. Com tarimba na criação de atmosferas e de personagens, além de
louvável domínio da língua, o editor paulista consegue, em contos ora
curtos, ora longos, recriar situações psicológicas de variada intensidade,
mesclando lirismo e introspecção, fantasia e tragédia a uma invulgar
capacidade de flagrar detalhes nem sempre perceptíveis.
Lidos com entusiasmo, no decorrer das muitas versões
pelas quais passaram, por escritores como o argentino Tomás Eloy Martinez
e o brasileiro Rubem Fonseca, os contos de Discurso sobre o capim -
título extraído de ''Livro de memórias'', o último deles - são narrados
numa linguagem despojada, limpa, sem adereços. Com a mesma naturalidade
com que sabe anotar situações inusitadas e criar tipos curiosos, Schwarcz
manipula elementos da história e do cotidiano para transfundi-los em
matéria ficcional.
Destaco, de princípio, dois textos que investigam o
imaginário da infância, e sugerem um esboço de autobiografia, mesmo que
fingida, do autor. Em ''Sétimo andar'', lemos a história de um solitário
menino judeu, em sua aventura de descoberta do mundo, que tem como ponto
de observação privilegiada um canto do jardim-de-inverno de seu
apartamento, de onde sai pouco, em geral acompanhando o pai à sinagoga ou
às tardes de ópera no Teatro Municipal; assim, os instantes de prazer e
fuga do tédio ele encontra mesmo é nos ''jogos premonitórios'' que costuma
praticar, ou assistindo a seriados de televisão como Jeannie é um
gênio e ao programa de Flávio Cavalcanti, em que acompanha, com
deslumbramento, as curas de Zé Arigó e os shows de paranormalidade de Uri
Geller.
Já em ''Acapulco'', o relato mais longo do livro, o
narrador esmiúça e entrelaça a história dos avós, judeus da Iugoslávia, a
de seus pais, e a de John Weissmuller, o Tarzan mais famoso do cinema,
mito de sua infância, sobre o qual se empenha em tudo saber, até mesmo os
mínimos detalhes de uma vida de altos e baixos, onde à fama não faltaram
elementos de tragédia. Pelos olhos desse neto atentíssimo, penetramos no
entorno social de uma família judia de classe média que, tangida pelo
anti-semitismo de Hitler, veio para o Brasil e aqui fincou raízes.
Narrado com lirismo, sem mágoa ou ressentimento, esse
enredo tem por elemento detonador, espécie de madelaine proustiana, o
álbum de fotografias da avó idosa - agora morando com uma enfermeira - que
o narrador folheia toda vez em que a visita. Com isso faz aflorar as
lembranças de infância, entre elas o terno convívio com o avô que, ao
chegar a São Paulo, montou uma gráfica, da qual, desde então, viveu de
imprimir santinhos e cartões de aniversário. Instantes de uma mesma
história - a dos anos de formação de um menino judeu, da infância à idade
adulta -, esses dois contos certamente constarão de uma futura antologia
do conto judaico no Brasil.
E muito mais ainda tem o livro a nos dizer. Em ''A
biblioteca'', que revela ecos de Borges, um pai dá dinheiro à filha para a
construção de sua biblioteca, mas faz uma exigência: esta deve conter 100
títulos fundamentais, que ele tentará ler depois; nas duas páginas de
''Vulcão'', temos as impressões de uma mulher simples, cuja vida solitária
e sem perspectivas se dá à sombra de um vulcão com o qual aprendeu a
conviver desde criança; já em ''Palavras cruzadas'' é visível a influência
da narrativa cinematográfica: assistimos à rotina de uma vendedora de
bombons num shopping enquanto, em paralelo, escreve-se o irreverente
diário de um cineasta, freqüentador do local e viciado em François
Truffaut. As impressões de uma moça que distribui anúncios de venda de
apartamentos nas esquinas da cidade, e se depara com as mais estranhas
reações ao seu trabalho, estão em ''Empreendimento de alto padrão''; e em
''Almas gêmeas'' os fatos acontecem simultaneamente em dois tempos e
lugares: em Cozumel, uma arrumadeira de hotel deduz sobre a vida dos
hóspedes com base nos vários graus de desarrumação dos quartos, enquanto
em São Paulo um garçom, apelidado ''Canova'', arruma as mesas com igual
esmero e empenho dedutivo.
''A quinta parede'' conta de um homem que vive trancado
num apartamento de fundos, lendo, vendo filmes, e imaginando ardis para
não estabelecer qualquer tipo de relacionamento com os vizinhos, nem mesmo
o simples bom-dia no elevador; em ''O lado esquerdo da cama'', que tem
algo da solidão e do ensimesmamento de algumas novelas de Beckett, o
protagonista envereda pelas inúmeras possibilidades de interpretação do
mito de Orfeu; ''Doutor'' é a pungente história, carregada de ironia, de
uma mãe que deseja ver o filho doutor, mas este acaba por se transformar
num ''auscultador de canos'' - empregado de uma empresa desentupidora. No
último conto, ''Livro de memórias'', o tom é ácido e desiludido, como se
percebe já na abertura: ''Todos os meus amigos escreveram suas memórias.
Escreveram ou pagaram para outras pessoas escreverem''.
Nos ''agradecimentos'' finais, o editor-autor confessa
suas hesitações como escritor, diz de suas dívidas intelectuais e das
exigências que se faz ao escrever. Sua estética é obsessiva, e enfatiza a
palavra ''cortar'': escrever, para ele, é cortar até descarnar a frase de
todo elemento acessório. Neste Discurso sobre o capim, onde nos
deparamos com seres divididos, alguns na fronteira da patologia, o autor
cumpre à risca o mandamento que estabeleceu para si.
Haveria muito mais a dizer sobre os contos ora publicados
- como, por exemplo, o voyerismo que caracteriza grande parte dos
protagonistas - mas, nos limites de uma resenha, basta uma última
constatação: narrador culto, atento ao detalhe, inteiramente à vontade na
caracterização de seus personagens, além de observador agudo do entorno
familiar, Luiz Schwarcz estréia com vigor na ficção adulta, num livro que
dignifica qualquer autor de obra consolidada.
*José Mario Pereira é editor da Topbooks