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José Mário Pereira

São Jerônimo, de Caravagio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

José Mário Pereira

Jornal do Brasil

1.10.2005

 

 


Esboço de autobiografia

Contos recriam situações psicológicas de variada intensidade, mesclando lirismo e introspecção


Discurso sobre o capim
Luiz Schwarcz
Companhia das Letras
120 páginas
R$ 27

 

Depois de incursionar pela literatura infantil com Minha vida de goleiro (1999) e Em busca do Thesouro da Juventude (2003), Luiz Schwarcz estréia agora na literatura adulta com uma reunião de 11Luiz Schwarcz contos onde memória e imaginação dialogam harmoniosamente, e a clareza da escrita é capaz de cativar o leitor mais exigente. Com tarimba na criação de atmosferas e de personagens, além de louvável domínio da língua, o editor paulista consegue, em contos ora curtos, ora longos, recriar situações psicológicas de variada intensidade, mesclando lirismo e introspecção, fantasia e tragédia a uma invulgar capacidade de flagrar detalhes nem sempre perceptíveis.

Lidos com entusiasmo, no decorrer das muitas versões pelas quais passaram, por escritores como o argentino Tomás Eloy Martinez e o brasileiro Rubem Fonseca, os contos de Discurso sobre o capim - título extraído de ''Livro de memórias'', o último deles - são narrados numa linguagem despojada, limpa, sem adereços. Com a mesma naturalidade com que sabe anotar situações inusitadas e criar tipos curiosos, Schwarcz manipula elementos da história e do cotidiano para transfundi-los em matéria ficcional.

Destaco, de princípio, dois textos que investigam o imaginário da infância, e sugerem um esboço de autobiografia, mesmo que fingida, do autor. Em ''Sétimo andar'', lemos a história de um solitário menino judeu, em sua aventura de descoberta do mundo, que tem como ponto de observação privilegiada um canto do jardim-de-inverno de seu apartamento, de onde sai pouco, em geral acompanhando o pai à sinagoga ou às tardes de ópera no Teatro Municipal; assim, os instantes de prazer e fuga do tédio ele encontra mesmo é nos ''jogos premonitórios'' que costuma praticar, ou assistindo a seriados de televisão como Jeannie é um gênio e ao programa de Flávio Cavalcanti, em que acompanha, com deslumbramento, as curas de Zé Arigó e os shows de paranormalidade de Uri Geller.

Já em ''Acapulco'', o relato mais longo do livro, o narrador esmiúça e entrelaça a história dos avós, judeus da Iugoslávia, a de seus pais, e a de John Weissmuller, o Tarzan mais famoso do cinema, mito de sua infância, sobre o qual se empenha em tudo saber, até mesmo os mínimos detalhes de uma vida de altos e baixos, onde à fama não faltaram elementos de tragédia. Pelos olhos desse neto atentíssimo, penetramos no entorno social de uma família judia de classe média que, tangida pelo anti-semitismo de Hitler, veio para o Brasil e aqui fincou raízes.

Narrado com lirismo, sem mágoa ou ressentimento, esse enredo tem por elemento detonador, espécie de madelaine proustiana, o álbum de fotografias da avó idosa - agora morando com uma enfermeira - que o narrador folheia toda vez em que a visita. Com isso faz aflorar as lembranças de infância, entre elas o terno convívio com o avô que, ao chegar a São Paulo, montou uma gráfica, da qual, desde então, viveu de imprimir santinhos e cartões de aniversário. Instantes de uma mesma história - a dos anos de formação de um menino judeu, da infância à idade adulta -, esses dois contos certamente constarão de uma futura antologia do conto judaico no Brasil.

E muito mais ainda tem o livro a nos dizer. Em ''A biblioteca'', que revela ecos de Borges, um pai dá dinheiro à filha para a construção de sua biblioteca, mas faz uma exigência: esta deve conter 100 títulos fundamentais, que ele tentará ler depois; nas duas páginas de ''Vulcão'', temos as impressões de uma mulher simples, cuja vida solitária e sem perspectivas se dá à sombra de um vulcão com o qual aprendeu a conviver desde criança; já em ''Palavras cruzadas'' é visível a influência da narrativa cinematográfica: assistimos à rotina de uma vendedora de bombons num shopping enquanto, em paralelo, escreve-se o irreverente diário de um cineasta, freqüentador do local e viciado em François Truffaut. As impressões de uma moça que distribui anúncios de venda de apartamentos nas esquinas da cidade, e se depara com as mais estranhas reações ao seu trabalho, estão em ''Empreendimento de alto padrão''; e em ''Almas gêmeas'' os fatos acontecem simultaneamente em dois tempos e lugares: em Cozumel, uma arrumadeira de hotel deduz sobre a vida dos hóspedes com base nos vários graus de desarrumação dos quartos, enquanto em São Paulo um garçom, apelidado ''Canova'', arruma as mesas com igual esmero e empenho dedutivo.

''A quinta parede'' conta de um homem que vive trancado num apartamento de fundos, lendo, vendo filmes, e imaginando ardis para não estabelecer qualquer tipo de relacionamento com os vizinhos, nem mesmo o simples bom-dia no elevador; em ''O lado esquerdo da cama'', que tem algo da solidão e do ensimesmamento de algumas novelas de Beckett, o protagonista envereda pelas inúmeras possibilidades de interpretação do mito de Orfeu; ''Doutor'' é a pungente história, carregada de ironia, de uma mãe que deseja ver o filho doutor, mas este acaba por se transformar num ''auscultador de canos'' - empregado de uma empresa desentupidora. No último conto, ''Livro de memórias'', o tom é ácido e desiludido, como se percebe já na abertura: ''Todos os meus amigos escreveram suas memórias. Escreveram ou pagaram para outras pessoas escreverem''.

Nos ''agradecimentos'' finais, o editor-autor confessa suas hesitações como escritor, diz de suas dívidas intelectuais e das exigências que se faz ao escrever. Sua estética é obsessiva, e enfatiza a palavra ''cortar'': escrever, para ele, é cortar até descarnar a frase de todo elemento acessório. Neste Discurso sobre o capim, onde nos deparamos com seres divididos, alguns na fronteira da patologia, o autor cumpre à risca o mandamento que estabeleceu para si.

Haveria muito mais a dizer sobre os contos ora publicados - como, por exemplo, o voyerismo que caracteriza grande parte dos protagonistas - mas, nos limites de uma resenha, basta uma última constatação: narrador culto, atento ao detalhe, inteiramente à vontade na caracterização de seus personagens, além de observador agudo do entorno familiar, Luiz Schwarcz estréia com vigor na ficção adulta, num livro que dignifica qualquer autor de obra consolidada.

 

 

*José Mario Pereira é editor da Topbooks

 

 

Manoel de Barros

 

Rembrandt, Holanda, 1606-1669, A volta do Filho Pródigo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1/10/2005, fsf