Do
Círculo Hermenêutico Periférico
ou
Da
Introdução aos Símbolos
Soares Feitosa
12. - Uma rápida
notícia dos símbolos bíblicos - varapaus
Costumo dizer que a Bíblia é o livro da leitura impossível. Se o leitor
crê, prejudicará a leitura ao viés da fé, deixando
escapar o poético, o fundacional de nossa civilização
greco-judaico-cristã.
Greco?
Sim! Os mitos gregos fundiram-se no
grande caldeirão posterior, deuses e deusas, todos eles assimilados
ao novo Olimpo, os céus de Paulo. Tudo o que
somos nesta banda do mundo, dita Ocidente, está lá. É de lá que vêm.
É de lá que viemos. É lá (aqui) que estamos!
Por
outra, se o leitor for incréu, pode-lhe surgir o risco de tomar a leitura
em
zombaria, arbitrando-a ao atraso, ao fanatismo, à estupidez. Em suma, poucos lêem
a Bíblia senão pelo chamamento da fé ou
ao propósito de zombar. Uma coisa porém é certa: não há cultura no
mundo ocidental fora dos livros fundadores e, sob este nome,
fundadores, no Ocidente, em primeiro a Bíblia. Ninguém, de mediana
cultura, pode jactar-se de não ler a Bíblia. Nem o Corão. E, por aí
vai, lista dos Livros, imensa, cada cultura com o seu (ainda que
não-escrito), nem melhor, nem pior, vide Franz Boas e Claude Lévi-Strauss.
Retomo
aqui o tema dos varapaus da Bíblia a rigor um tremendo problema de tradução,
aliás, de "escrita" mesmo. Israel, no tempo de Cristo, estava sob
dominação de Roma, Pôncio Pilatos o seu representante, com a patente
de Procurador da Judéia, a rigor, o "rei". Mesmo assim, conveniência política
do opressor, mantiveram um rei, naturalmente de faz-de-conta, Herodes. E,
em paralelo ao tal rei de faz-de-conta, o sumo sacerdote, Caifás. Naquele
estado teocrático, o sumo sacerdote tinha muito poder,
tanto quanto o rei de faz de conta; abaixo de Pilatos porém apenas pela
força das armas.
Todos eles, Pilatos, Herodes e
Caifás tinham seus estandartes.
Havia, é claro estandartes e estandartes. Os legítimos,
ostensivos e gloriosos, os do chefe, Pilatos. Os demais,
subjugados, por isto mesmo, recônditos, desbotados, envergonhados,
menores.
Menores?
Isto mesmo! Vale relembrar as cadeiras à mesa de
negociação da guerra do Vietnã: os americanos, de maior estatura,
foram obrigados a sentar em cadeiras de pernas serradas, de modo
que os vietcongs ficassem no mesmo porte, até mais altos, taludos,
falando grosso...
símbolos: ganharam a guerra. Por favor, mais uma vez e pelo resto
das vezes: não estou defendendo vietcongs, nem americanos
guerreiros. Houve símbolos de cadeiras cortadas. Só isto. E a
vitória.
Sem
esquecer que o cavalo do "coronéu", no desfile de 7 de
Setembro, neste Brasilão rural, é sempre o maior, o mais garboso de todo o trecho,
ainda que o "coronéu" deteste andar a cavalo. Se for
a pé, haverá um pajem a levar o cavalão, pronto para ser
montado. Aqui em casa, sem
fundamento intencional, o caneco do chefe, eu mesmo, de inox, desde
os primeiros dias de casado, é o maior dos canecos,
embora os filhos, crescidos, bem maiores que o pai, presumível bebam muito mais
água. Símbolos. E as taças de campeonatos, que ninguém bebe em
recipientes tão grandes. Por que taças tão grandes, se ninguém bebe
nelas?!
O estandarte, o que é afinal um estandarte?
Trata-se de um símbolo dos mais poderosos, porque nele o nosso nome.
O
nome e a glória do Príncipe. Seja um jogo de
futebol, um festejo de carnaval, uma marcha militar, uma tropa de
baticum ou uma procissão
santificada — e lá está um estandarte, uma vara comprida com um pano
pintado na ponta. Carregado de símbolos. A definição de poesia —
algo carregado de símbolos — melhor que fosse aplicada ao estandarte,
à bandeira.
A
terrível tomada de Iwo Jima (Segunda Guerra Mundial) só se completou
quando um pequeno grupo de soldados fincou uma
bandeira (estandarte) em terra inimiga. A foto-símbolo correu o mundo com grande
alvoroço. Regozijo e mais força para os vencedores; tristeza absoluta para
os japoneses. Repare na "direção" da
foto: o mastro, bandeira, soldados — todos à destra, "escrita"! Quem
lutou naquela guerra jamais podia olhar esta foto que, valor
artístico não tem nenhum. De um lado ou de
outro, quem lutou,
chora, aliás, chorava. Escrevi
"chorava" porque hoje, 2005, sessenta anos passados, quase todos já
morreram. De velhice. É
apenas um pedaço de pau com um metro de pano pintado na ponta. Ou
não é?
Claro que não! Naquele instante era a bandeira de um povo,
num momento terrível, sob o intenso sofrimento da guerra, com a
máxima carga de signos. Assim tem sido este símbolo assombroso, desde o
tempos... apenas um pedaço de pano na ponta de uma
vara!?
Em Roma, os generais não
engajavam soldados de carne e osso, Caios, Cláudios, Varrões, Túlios, estes
os nomes romanos, mas "águias",
os estandartes de Roma. Varas, é claro, com a impávida águia de Roma, com um soldado debaixo, portando-as. Brigava-se muito mais
a recuperar uma águia em poder do inimigo do que para ganhar uma
batalha. Vezes houve em que a vitória veio da retomada das águias.
Voltemos à Judéia, bíblica, de Cristo. Os chefes, Pilatos, Herodes e
Caifás, todos aqueles senhores tinham seus estandartes. O de Pilatos,
porém — a bandeira de Roma, a terrível águia romana, o
legítimo, porque do vencedor. Vejamos, nesse
contexto de três estandartes distintos, o episódio do Horto das
Oliveiras em que o Cristo é feito prisioneiro pelos soldados do sumo
sacerdote. Evidente que aqueles soldados levavam estandartes.
O
problema é que o narrador bíblico, Mateus, não podia chamar os
estandartes do sumo sacerdote de estandartes. Se assim o fizesse, indispor-se-ia com Roma, porque, afinal de contas estandarte
verdadeiro só o de Roma. Por outra, muito natural que depreciasse o
inimigo, os judeus,
responsabilizado-os integralmente pelo martírio de Cristo, vide
polêmica recente do filme de Mel Gibson com tremenda
carga, super-simbólica, contra os judeus.
Roma é sobremodo
poupada em todo o Novo Testamento, posto que fazia-se fundamental cooptar o
grande império. Pilatos é muito bem tratado, o que não se
dá de forma alguma com os sacerdotes, Caifás e Anás, e judeus em
geral, no mínimo, "sepulcros caiados" e "raça de víboras".
Contudo,
Mateus não pôde negar os estandartes do pelotão de Caifás, que ele
chama de turba multa. Mas não reconheceu a eles a patente de
"estandartes", pois se tal acontecesse, muito
legítimo seria imaginar que a prisão se dera em nome e à ordem de Pilatos, o
titular dos estandartes verdadeiros, os de Roma. O que ele faz?
Encontrou um vocábulo-símbolo quase equivalente: «xilos» (madeira,
vara), em vez de «sema» (semáforo, sinal, estandarte, bandeira). É
verdade, «xilos» define, e, ao mesmo
tempo, com absoluta sutileza, estabelece diferenças, identidades e hierarquia. O roteiro
prosseguiu perfeito, vejamo-lo em Jerônimo, o tradutor do grego para
o latim:
Mateus, no original grego |
Jerônimo, Vulgata, Mateus |
26, 47:
Kαι
ετι
αυτου
λαλουντος
ιδου
ιουδας
εις
των
δωδεκα
ηλθεν
και
μετ
αυτου
οχλος
πολυς
μετα
μαχαιρων
και
ξυλων
απο
των
αρχιερεων
και
πρεσβυτερων
του
λαου. |
26, 47: Et adhuc ipso
loquente, ecce Iudas, unus de Duodecim, venit, et cum eo
turba multa cum gladiis et fustibus,
missi a principibus sacerdotum et senioribus populi.
|
Jerônimo traduzira
ξυλων
(xilos): «fustis», de fustigar,
simbolicamente o "ferrão do boi", aquela vara comprida, com
ponteira, a empurrar o boi ao matadouro, num perfeito simbolismo ao sacrifício de Cristo. Não que os soldados fossem futucá-Lo
com vara comprida, mas o símbolo em si mesmo, o inocente tangido à
morte. Contudo, o sentido não era, originário, o de uma vara-ferrão,
mas uma vara-bandeira, o mísero estandarte do sumo sacerdote.
As
traduções lusas seguiram fielmente a simbologia de Mateus/ Jerônimo
a indicar que os soldados portavam varapaus em vez de bandeiras ou
estandartes, assim o vejamos
desde o clássico
protestante de João Ferreira de Almeida:
«E, estando ele ainda a
falar, eis que chegou Judas, um dos doze, e com ele grande multidão
com espadas e varapaus,
enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo».
Giotto registra:
varapaus.
Há
varapaus, claro! A rigor, bandeiras, estandartes, não com a
pompa da águia de César. Há também archotes, registro único em João,
e já
veremos o seu intenso valor simbólico.
Pois bem, criei-me lendo
varapaus.
E, por isto, recentemente passei vergonha monumental: comentava com
o meu amigo e
colega advogado, Rogério Lima, profundo conhecedor da Bíblia, que o
termo correto seria este, varapaus.
Ele, bem mais jovem, deu um salto bem acolá e disse que jamais
ouvira essa palavra. Abriu o dicionário, lá estava (Houaiss):
«Varapau.
substantivo masculino
1 peça de madeira
forte e comprida
2 Derivação: por
extensão de sentido.
vara que se usa como
apoio para andar; bordão, cajado, vara
3 Derivação: por
extensão de sentido. bastão us. como arma de defesa ou ataque;
bordão, cacete
4 Derivação: sentido
figurado. Regionalismo: Brasil. Uso: informal.
pessoa muito alta e magra.»
Abri, confiante, na
maior arrogância, a Bíblia do escritório. [Códigos, não;
todos informatizados, mas Bíblia, no escritório, sim].
E caí de susto: onde antes varapaus, os "tradutores" haviam "atualizado"
para cacetes.
Armei um pé-de-briga
com o advogado Rogério. «É uma Bíblia protestante!» - disse-lhe; a ele,
que é evangélico. Fui ligeiro à internet conferir na Bíblia dos
padres. Foi pior, quebrei os dentes:
«Jesus
ainda falava, quando veio Judas, um dos Doze, e com ele uma multidão
de gente armada de espadas e
cacetes,
enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo.» [Catolicanet,
on line].
— Doutor Rogério, eu
tenho certeza, veja! E abri-lhe poema meu, de onze anos passados,
como fossem duzentos:
Barulho, pisadas, pigarro, chinelas de currulepo,
cacete de varapau,
o homem,
a Besta:
[basta clicar:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/psi%20a%20pen%C3%BAltima.pdf |
|
Salvou-me a mãe de
Rogério com uma edição bem antiga de João Ferreira de Almeida, antes
da atualização deplorável. Salvou-me, quando cheguei em casa,
a também velhíssima História Sagrada, Vozes, Frei Bruno Heuser,
O.F.M, XX edição, 1952, página 252:
«Jesus ainda estava falando, quando
Judas chegou com um grande número de soldados e criados. Traziam
lanternas e archotes e estavam armados de espadas,
varapaus
e outras armas.»
Em suma, os
moderninhos "atualizaram" a grande façanha de Mateus / Jerônimo e
clássicos lusos, substituindo os varapaus-estandartes para
cacetes-cassetetes. Pior, um deles, totalmente alucinado, com todo o meu
respeito, fez isto:
«Falava ele ainda, e eis que chegou
Judas, um dos doze, e, com ele, grande turba e com espadas e
porretes, vinda parte dos principais sacerdotes e dos anciãos do
povo» (Sociedade Bíblica Brasileira).
Porretes? É demais,
não?!
Em casa, fui conferir
na minha estimadíssima Bíblia de Jerusalém. Não foi por menos:
«Enquanto ainda falava, eis que veio
Judas, um dos Doze acompanhado de grande multidão com espadas e
paus, da parte dos sacerdotes e dos ancião do povo».
A
essas alturas, tenho certeza de que os "atualizadores" em breve vão
substituir
porretes,
paus e
cacetes por
bombas de gás lacrimogênio e sprays de mostarda. Se duvidarem,
maquinetas de choque e bombas de efeito moral. Ou clister de
pimenta. Lá neles, por favor!
Claro que os cobri de imensos palavrões.
Depois desta, botar minhas várias traduções no lixo?
Nem pensar! Em cada uma delas você vai encontrar uma faceta
diferente, uma melhor interpretação àquilo que os seus próprios
símbolos querem "ler".
E
a verdade?
Por favor, meu caro leitor, remeto-o respeitosamente ao velho Pôncio,
aquele mesmo que escreveu: «O que escrevi, escrevi». Aliás, ele nem
escreveu. Só disse. João escreveu. Por falar em João, vamos agora à
Polícia Federal.
Desde os tempos, o melhor momento para atacar não é de noite, nem de
dia, muito menos ao anoitecer. O momento exato é no amanhecer, de
modo e pegar a vítima no final do sono, desprevenida, no lusco
da manhã, à pré-aurora. Com uma vantagem: em minutos, amanhece, mas o inimigo, desprevenido, já
está dominado.
João relata-nos como foi, mas sem dizer a hora. Simbolicamente, daí a
beleza do texto, diz que os agentes de Caifás traziam archotes.
Giotto os registra, veja de novo. Acesos! Logo, ainda não
amanhecera por completo. A policia sabe: melhor atacar antes do amanhecer!
O
quadro de Giotto garante leitura para laudas e laudas, símbolos, expressão corporal
de cada um, mas isto é história para outras cervejas. E castanhas
daqui. Convido-o!
O
fato é que a Polícia, desde João, e muito antes de João, só ataca no
amanhecente. Dali a minutos será dia pleno... e, ao romper da barra,
o indefectível e aterrorizante: "Teje preso!",
que Deus defenda, proteja, guarde e acautele.
A Lei
dos povos minimamente civilizados garante a noite. Prisões e buscas
só de dia. Mas a lei brasileira não define o que é dia. Períodos do
ano, variações meridianas, a manhã nascedoira ou a noite chegante
têm horários mais longos e mais curtos. A jurisprudência brasileira
diz que de noite — aos escuros! —, não; só no claro; melhor, no
clareante.
Índice - basta clicar:
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Início desta desta página: Do Círculo Hermenêutico
Perifério ou Dos Símbolos — Prólogo e proposta.
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O
Partido dos Trabalhadores e sua crise de 25 anos, algo a ver com
os símbolos?
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Os símbolos
do PT, decifrações.
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Os
símbolos de Severino Cavalcanti e sua crise mensalinha.
-
Os símbolos do Banco do Brasil e do Banco do Nordeste
-
Decifrando os símbolos do BB e BNB
-
Ascensão e queda de Roberto Jefferson — símbolos: o riso,
as palmas e o silêncio.
-
Mais
símbolos, os varapaus da Bíblia
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