José Nêumanne Pinto
Palco e
estúdio - as alcovas de Elba
Está certo que o habitat natural de
Elba Ramalho é o palco. Ela já sabia disso, quando via os reisados
nos terreiros da família no sertão do Piancó, Paraíba do Norte.
Basta ver a menina franzina ganhando três metros de altura e
acompanhar o raio da faísca de seu olhar refletindo o refletor. A
última vez em que a vi assim tão confortável na própria pele postiça
foi no show O Grande Encontro. Ela usava uma estrela na testa. Ou
era a estrela que usava a testa dela, sei lá. Elba é isso: arroz de
festa, quibe de quermesse - nasceu para ser notada, a exibida. Sendo
abelha, o palco é a colméia; sendo a rainha, o trono é o palco. Seus
pés pisam o tablado com a intimidade difícil de se conseguir até
numa alcova: muitas vezes vestida, ela está sempre nua; os sapatos
que usa são ilusões de couro, pois no palco ela é toda vez a cantora
descalça, e sem meias, vejam bem.
Pois foi do palco que ouvi a notícia
de que Baioque - o disco, como se dizia no meu tempo (ou era LP?) ou
o CD, como se diz hoje - estava em estado de gestação. Elba cantou
S. O. S. e, de repente, eu descobri que Raul Seixas, o profeta do
Apocalipse, mesmo tendo andado de carona no disco voador, nunca
havia deixado o sertão da Bahia (e ainda está lá, eu juro), podendo
ser, como certamente será, um artista de sucesso nas festas juninas
da Campina Grande, que ela e eu tanto amamos.
Ao ouvir o disco - o demo, esta gíria
tecnológica, que lembra nosso medo ancestral do inferno -, avançando
com cuidado entre surpresas e lembranças, vi-me diante da prova de
que o teatro brasileiro perdeu uma atriz jeitosa, quando ela deixou
a Ópera do Malandro. E, ao contrário do que previam os maus profetas
(entre estes não estava, certamente, o Raulzito, mas, para cúmulo
dos pecados, o autor destas mal traçadas linhas, sim), a canção
popular ganhou uma voz definida e assumida. O lançamento de Elba
Ramalho é o de sua maturidade. No palco, reina a cantriz. No CD (eu
quase escrevia vinil), impera a cantora, a imperadora, capaz de
retomar um sucesso antigo como a canção-título (de seu amigo Chico
Buarque) e interpretá-la de um jeito novo e, mais do que novo, seu.
Do capítulo das lembranças consta a
fortíssima Vila do Sossego, de Zé Avohai Ramalho Neto. Lembro-me de
Elba no palco do Teatro São Pedro, na Barra Funda, em São Paulo,
cantando no coro no show de lançamento daquele estrondoso sucesso do
compadre nosso e primo dela. Tanto tempo faz. Melhor não contar,
para não entregar nossa idade, parelha. Consta também Paralelas, de
outro amigo comum, o "violétrico" cearense Antônio Carlos Gomes
Belchior Fontenelle Fernandes. Bel escreveu a canção num tempo de
dureza e a rejeitava, talvez por considerá-la piegas, mas ela foi
sucesso com Vanusa e será de novo com Elba. Porque merece: ao
contrário do que pensava o próprio autor, é uma linda página de
nosso cancioneiro popular (esta foi caprichada, hein?).
Ednardo, que com Rodger Rogério e
Teti, era do Pessoal do Ceará, fez Pavão Mysteriozo também como não
quisesse nada, até estourar como faixa da trilha sonora da novela
global Saramandaia. A canção, que se encerra com um verso antológico
de final de romance de cordel - "eles são muitos, mas não podem
voar" -, recebeu uma roupagem solene, comme il faut. Elba, craque em
escolher repertório, também sabe, muito bem, encontrar o arranjador
certo para a canção bem feita-e-eleita.
Como Baioque, Os Argonautas, de
Caetano Veloso, e Vamos Fugir, de Gilberto Gil e Liminha, entram no
capítulo extra dos autores da veneração da cantora, que se enturmou
na turma certa, quando pulou das tábuas do palco para o bico do
laser (eu quase escrevia agulha, gente!). O repertório já dá uma
idéia de antologia, que me parece ser a pretensão (no bom sentido da
palavra, pessoal) da obra, como ela foi concebida. Geraldinho
Azevedo comparece com Tambor do Mundo, só porque não poderia faltar,
assim como Alceu Valença, o clown do maracatu, que é parceiro de
Geraldinho, mas desta vez preferiu ficar sócio do povo brasileiro
(sua Ciranda da Rosa Vermelha é adaptada do foclore).
No capítulo das surpresas, melhor
dizendo, da curiosidade, que se opõe à memória, pero no mucho, a
Elba, aquela do estúdio, ainda nos brinda com Lenine, que é parceiro
de nosso irmão Bráulio Tavares, mas compôs mesmo Relampiano (que dá
o toque social do acervo) foi com Paulinho Moska, que está entrando
na moda (com todos os méritos, diga-se). Este é ainda o caso de A
Música do Nosso Amor, de Saul Barbosa e Jorge Pontual. Antes de
subir de volta ao palco, com seus chinelos e seus balangandans, a
imperatriz do separatismo nordestino ataca de Zanzibar, escrita por
Armandinho e Fausto Nilo.
De volta ao palco-alcova, ela reserva
duas faixas para medleys. Uma é de xotes, que ela aprendeu a cantar
vendo as umbigadas de Almira em Jackson de todos os Pandeiros.
Dominguinhos e Abel Silva comparecem ao forró com Quando Chega o
Verão; Pedrinho e Primo, com Até Mais Vê; e Assisão, com a
deliciosa, impagável, Pequenininha, própria para ser dançada no
Parque do Povo, às margens do vazio Açude Novo, lá na Rainha da
Borborema.
E o palco se engalana nos frevos Eu
Também Quero Beijar (de Pepeu Moraes Moreira e Fausto Nilo); Chão da
Praça (de Moraes Moreira e Fautos Nilo) e a irresistível Gemedeira
(o poema certo de Zé Carlos Capinam para a melodia endiabrada de
Robertinho do Recife).
O que dizer? Ô, dá-lhe Elba! Olê, olê,
olá. E mais: se você, como eu, pensava que a porta da alcova de Elba
dá apenas para o palco iluminado, saiba que ela já freqüenta a
penumbra dos estúdios de gravação sem maquiagem, como se escovasse
os dentes no banheiro de sua mais indevassável intimidade. Se
duvidar, ouça Baioque. Ou então me desafie para um duelo a
faca-peixeira, que eu vou convidar Zeca Tirbutina de madrinha.
|