José Nêumanne Pinto
O vulcão e o
borralho do amor
Os poetas, descreveu o uruguaio Leo
Masliah, cuja linda canção, "Guardanapos de Papel", foi gravada em
castelhano e em português por Milton em seu disco novo, Nascimento,
"falam de experiências pessoais, zonais, zonais, elementos mui
parciais, que, ajuntados, não são tais". A definição é vaga e
precisa, ao mesmo tempo, como convém a uma descrição poética,
chegando a lembrar um teorema próximo, enunciado por outro grande
cultivador desta arte sem ciência, José Paulo Paes,
curitibano de Taquaritinga e paulistano do interior. Segundo ele,
poeta é quem consegue fazer alguém sentir uma emoção própria, lendo
a alheia.
A carioca Judith
Domingues Marés González consegue realizar, de forma plena e
profunda, as duas coisas, que são de fácil definição e dificílima
realização. Seu livro, Véspera, aborda o tema mais pessoal e
exclusivo dentre todas as experiências humanas, o amor. A abordagem
começa pela periferia das zonas, inclusive as erógenas; nela abundam
as "coxas azuis" "os seios de verdura", "o hálito fresco de tua boca
errante" e "Vênus enfeitada de vermelhos botões". A estrofe final de
"Exílio" resume esta abordagem: "minha pátria", ela escolheu, "é teu
corpo".
Mas na poesia, como na vida, o
contato físico pode ser o berço ou o túmulo do amor, este pastor que
apascenta rebanhos, como Jacó o fez com as ovelhas de Labão, mas
também este veneno letal, o mesmo que levou Salomé a pedir a cabeça
do eremita hebreu, o batizador. O amor não se resume ao conúbio das
almas gêmeas nem à comunhão dos sentidos, mas também cruza a geleira
desértica das carências. Judith passa por tais meandros com
conhecimento de causa. No mesmo poema "Exílio", que citei acima, ela
gemeu: "Minha pátria é a torturante agonia/dos banidos".
Licenciada em Letras Clássicas, pela
UERJ, segundo a pequena biografia, escrita na contracapa pelo editor
Massao Ohno, a poetisa encontra uma dicção própria num pátio povoado
por estátuas dos grandes líricos da Antigüidade. Sua obra de estréia
é, a um tempo, ancestral e contemporânea.
Professora de português, Judith ainda
administra os segredos do vernáculo com habilidade. Seu verso é
curto e cortante, mas, ao mesmo tempo, revela fôlego suficiente para
enfrentar picos sem oxigênio. Ela mistura suas poções poéticas,
ministrando, por igual, doses de encanto ("Vou recolher os
cacos/caídos do céu/e deles farei guirlandas/azuis") e golpes de
espanto ("Esperarei/a estrela mais doida/e seguirei, maneira,/com
ela"), num mesmo poema (as citações são de "Viagem").
Por estas e por outras, a autora de
Véspera consegue ultrapassar o umbral mágico dos eleitos que,
remexendo no misterioso borralho do amor com as próprias cinzas
emocionais, ativam os vulcões submersos do outro que lhe é alheio e
desconhecido.
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