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José Nêumanne Pinto

 

Talento indolente à venda na loja

Tido como ruptura estética na MPB, o tropicalismo
foi mesmo um golpe de mercado

 

Tropicalismo" foi o rótulo encontrado pela mídia ingênua para definir um estado de espírito inconformado de dois compositores vindos da Bahia em começo de carreira, Caetano Veloso e Gilberto Gil, associado a manifestações espontâneas em outras artes. O depoimento do primeiro é definitivo a respeito: "Sua própria construção (o nome tropicalismo) - por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luís Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica - tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade", registrou Caetano Veloso na página 501 (capítulo "Vereda") de seu livro Verdade Tropical (Companhia das Letras, 524 págs., R$ 27,00).

Motivou tal inconformismo a revelação provocada pela visão de Terra em Transe, filme de outro baiano, Glauber Rocha. O rótulo resultou do acréscimo do sufixo "ismo" a Tropicália, título sugerido pelo produtor de cinema Luís Carlos Barreto para uma canção, que virou uma espécie de manifesto do movimento e que foi apropriado de uma instalação do artista plástico Hélio Oiticica. Ele foi pespegado sem muita cerimônia, mas também sem muita explicação, à montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa.

Atenção, leitor, os parágrafos acima não representam uma tentativa agressiva de desmistificação de um movimento tido e havido como uma eclosão de rebeldia juvenil, que abalou o establishment da chamada MPB no final dos anos 60. Nada disso. Trata-se apenas de uma tentativa jornalística de resumir o que o protagonista do movimento, aquele mesmo que tentou "orientar" o Carnaval, Caetano Veloso em pessoa, narrou em seu novo livro: um depoimento barroco, espontâneo, parcial e cheio de lacunas.

Se o resumo parece cuspir no monumento, que o autor pretendeu "inaugurar" na letra da citada canção-manifesto, isso se deve, fundamentalmente, a virtudes ocultas e defeitos evidentes da versão do autor naquilo que, de forma imodesta, como de hábito, está contido no próprio título do livro. A Verdade Tropical pode não ser transparente, mas emerge de forma agressivamente evidente da leitura desse texto - às vezes saborosa, outras penosa; às vezes elucidativa, outras nebulosa. O evidente trocadilho com o bolero famoso (Vereda Tropical) não disfarça seu autoritarismo impositivo nem afasta o preceito tropicalista elementar, segundo o qual não pode existir verdade, como não existe pecado, do lado de baixo do Equador. O rigor cartesiano é um luxo das sociedades que vivem em climas temperados.

O tropicalismo não foi um movimento nem chegou a ser um monumento na história de uma música popular relevante a ponto de ter revelado ao mundo Pixinguinha e Tom Jobim, Milton Nascimento e Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Noel Rosa. A cândida narrativa de Caetano - que ocupa um lugar de destaque na história desse cancioneiro, não por sua cultura crítica, mas por seu inegável talento como compositor e intérprete - expõe essa verdade com os subterfúgios de praxe, mas uma elogiável sinceridade.

Nem sempre tal sinceridade funciona a favor das hipóteses que o próprio autor sustenta com muita convicção, mas pouca base. Por exemplo, Caetano Veloso dedica comovente admiração ao cantor João Gilberto. Compreende perfeitamente o fenômeno representado pelo outro baiano, situando-o na linhagem de Orlando Silva e fugindo da tentação óbvia de alinhá-lo na vertente de Mário Reis. O descortino crítico que demonstra em relação ao que passou não se repete, contudo, no que diz respeito ao que viria. Como João Gilberto é o instaurador do artista Caetano (mais ainda, é tudo o que este gostaria de ter sido na vida), ele se atribui o papel de seguidor da linha evolutiva, à qual pertencia o criador de Desafinado.

Isso comprova a evidência elementar de que Caetano Veloso é um ouvinte de gosto muito refinado. Mas nenhum ouvinte de gosto mediano precisa da sensibilidade que ele, evidentemente, tem para descobrir outra evidência basilar. No Caetano Veloso compositor e cantor, a presença da arte zen de João Gilberto é, na prática, nula. Dizer que o tropicalismo - o marketing do reconhecimento - teria sido uma seqüência da "linha evolutiva" da voz ou da batida do violão de João - a estética do comedimento - é semelhante a encontrar influência de Billie Holiday em Aracy de Almeida ou de Bessie Smith em Carmem Miranda. Afinal, nunca esqueçamos que a bossa nova foi a negação, e o tropicalismo a redenção, do kitsch popular brasileiro.

Ora, direis, Caetano Veloso não incorre sozinho nesse equívoco - se equívoco há, de fato. Afinal, ele encontra sólido apoio em textos tidos como sagrados dos sumos-sacerdotes da vanguarda poética paulista, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. Aliás, também a poesia concreta está para o tropicalismo como o blues para a catira. Uma frase como esta pode dar o que falar - ah, pode! Mas me perdoe a franqueza, leitor, o trio de ouro do concreto se deixou embalar pela doce proximidade de sua arte hermética com um ídolo de massas e vendeu sua alma ao mercado em troca de um facilitário que muitas vezes se aproxima, perigosamente, do folclore.

Por exemplo: na página 466, num capítulo de título bilíngüe ("Back in Bahia"), Caetano escreveu, quase sem pensar: "O gosto tão tropicalista pelos trocadilhos, por causa da poesia concreta (Joyce!) e dos filmes de Godard..." Se isso tivesse sido escrito por um pé-rapado, o trio de ouro do concreto cravar-lhe-ia as garras críticas na jugular. Imagine: reduzir o "ostinato rigore", perseguido por Haroldo de Campos, à mais rastaqüera das facilidades, que é o trocadilho, nem pensar. Afinal, o trocadilho está para a poesia de vanguarda como o verso branco está para o modernismo: qualquer um fazia verso branco, o que nunca quis dizer que fosse poeta.

Entre paranomásia e trocadilho existe um território sutil, uma espécie de zona não militarizada que Caetano desconhece e o trio de ouro do concreto prefere ignorar, por achar preferível permitir a piada a perder amigo tão rico e famoso.

Mas isso é um problema lá deles. Quem não é concreto (concretista não, por favor) não precisa ficar buscando complexas explicações teóricas para diferenciar a nobreza das palavras parônimas das plebéias trocas de palavras. Mas misturar James Joyce nessa "geléia geral" (a expressão de Décio Pignatari foi usada por Torquato Neto numa letra-manifesto do dito movimento), aí, não! Reduzir a ourivesaria multilingüe de Finnegans Wake a um truque fácil de teatro de revista é uma licença teórica que não dá para engolir. Aliás, sem querer sacralizar a obra de ninguém, já seria uma leniência inaceitável reduzir achados da própria lírica tropicalista (como, por exemplo, Clara e Batmacumba) ao gosto, Augusto, discutível pelo trocadilho vulgar.

Se houvesse nestas linhas a mínima intenção de polemizar, seria até o caso de lembrar que tais instantes de antologia, produzidos pelo próprio Caetano e seus parceiros Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam, têm mais parentesco com a poesia práxis do que com a teoria e prática concretas. Quando não pela evidência mais simples de que, enquanto aquela também buscava o rigor formal nos fonemas, esta se "instaurou" (perdão, concretos!) na negação, não do sonoro (até por não poderem ser omitidos nem os poemas do trio gravados em CD nem sua mania pelo termo "verbivocovisual"), mas, certamente, do musical. Wlademir Dias Pino, que, mesmo excomungado por haver liderado a própria seita processo, é o autor de um dos mais importantes, talvez o mais importante, dos poemas concretos, A Ave, tem notória aversão pela música. E, apesar de não explicitá-lo, seus antigos companheiros de jornada sempre produziram como se cumprissem o lema eliotiano de que a única música aceitável para a poesia seria o silêncio.

A própria impressão das letras nas contracapas dos LPs da época evidenciavam exemplos do uso do espaço em preto (a palavra que está faltando), que a "instauração práxis" opunha ao espaço em branco (o silêncio), da poesia concreta. Sabe-se que o "instaurador" da práxis, o poeta, também paulista (mas caipira de Cajobi), Mário Chamie, teve participação influente na concepção pan-sexualística e paródica da montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, mas Caetano evita essa lembrança nas muitas passagens do livro em que se refere à montagem (como também evita ver na estética de Terra em Transe os "conteúdos/práxis arrasadores", reconhecidos pelo próprio Glauber em suas cartas, recentemente publicadas em livro). O esquecimento não é estranhável. A inteligência brilhante, mas ácida, de Chamie nunca o encantaria, como o encantou a corte incondicional da intelligentsia das Perdizes. De qualquer forma, será relevante registrar que a influência da práxis na lírica tropicalista não foi involuntária. Pode ter sido ingênua, mas involuntária, jamais!

A ponte possível entre os discursos críticos do tropicalismo e do concretismo (aí, sim, a palavra vale) não ocorreu pela via poética, mas pela trilha das artes plásticas. Com seus "parangolés", Hélio Oiticica, artista cuja instalação batizou o movimento na mídia, levou a capa da Mangueira (escola de samba) ao estado de arte. De certa forma, os papas da poesia concreta trilharam o caminho oposto, ao permitirem a diluição de sua mensagem estética no apelo do mercado - na pretensão legítima, mas nunca explícita, de levar seu biscoito fino à massa (referência à metáfora de Oswald de Andrade, poeta da predileção dos concretos e do compositor) diretamente na loja.

Num rasgo de modéstia, Caetano chegou a questionar, no livro, a facilidade com que, na origem desse processo, seus amigos intelectuais encontravam afinidades entre a arte hermética deles e a produção popular dele. "Assim, era-me difícil aceitar sem perguntas a afirmação de que nossas ruidosas letras tropicalistas é que se produziam equivalentes do 'trobar ric' do 'miglior fabro' Arnaut Daniel", escreveu ele, no capítulo "A Poesia Concreta". Mas falta a Caetano Veloso equipamento crítico para perceber o fenômeno e a qualquer outro crítico, coragem para enfrentar a questão e assim atiçar o ódio do establishment bem-pensante da Universidade e da mídia paulistana. Esse ódio, aliás, é o melhor sinal de que o projeto teve êxito, pois a mídia cultural foi conquistada (e dominada) mesmo.

Na verdade, se os concretos estavam mesmo sendo sinceros, quando escreveram seus manifestos e criaram seus poemas, Verdade Tropical é a própria negação de seus conceitos mais caros. Nada é menos "matemática da composição" do que o livro escrito por Caetano Veloso, atendendo encomenda de um editor americano para explicar o que aconteceu na intimidade do planeta da canção popular brasileira nos anos 60. A começar pela dimensão descomunal do texto, maior, por exemplo, do que o depoimento de Ernesto Geisel, recentemente editado pela Fundação Getúlio Vargas. E olha que o período narrado no livro é de cinco anos, o compreendido entre os festivais da TV Record, dos quais emergiu para a glória a geração dourada de Chico Buarque, Milton Nascimento e dos próprios tropicalistas, e o canto de cisne do movimento, Araçá Azul, enquanto o outro citado abrange um século inteiro, incluindo o tenentismo, a Revolução de 30, a democracia de 46, a ditadura de 64 e a Nova República.

Fiel a seu estilo cândido de expor suas falhas elementares, na pretensão de que elas compõem seu charme, o autor fez questão de espalhar pelo livro lembranças incertas e fatos não sabidos com uma sem-cerimônia que só pode ser atribuída à folclórica indolência baiana. Ele não se deu ao trabalho de checar uma dúvida, deixando até de consultar amigos mais chegados, como o parceiro Gilberto Gil.

Assim, chegou ao ponto de teorizar sobre a falha. "Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações, e faço questão de tratar com naturalidade a acumulação de cultura, retendo dos livros, das aulas, das canções, somente o que me for congenial, e transmitindo somente o que já estiver por mim incorporado", justificou, no capítulo "Panis et Circensis" (pág. 279), cujo título (de um disco do grupo) resulta de um erro de latim, que ele aceita e registra com seu humor irreverente e cáustico até consigo mesmo - é engraçado quando escreve que as meninas do auditório gritavam "lindo" para ele com menos razão do que tinham ao berrar o mesmo adjetivo para Chico Buarque.

De qualquer maneira, com ou sem humor, as lacunas de seu texto impresso, enquanto memória de um tempo e de uma geração, chegam a ser abissais. Quem imaginar encontrar o professor Jomard Muniz de Britto, teórico e prático do tropicalismo no Nordeste durante todos estes anos, se deparará no índice onomástico com uma certa atriz Maria Muniz. O episódio parece banal. Pode ser. Mas será, também, esclarecedor. O provocador cultural pernambucano produziu os textos mais apropriadamente tropicalistas de todos - mais do que isso, reflexos de uma inquietação do momento, que os tropicalistas souberam canalizar de forma competente.

Por ter dito "se eu pudesse, eu matava o pepino", a atriz baiana foi lembrada como a inspiradora do autor, que disse: "se eu pudesse, eu matava o Natal". O episódio é revelador, por mostrar que o tropicalismo não era aquele movimento de vanguarda, que Jomard e os jovens rebeldes nordestinos imaginaram, mas, no fundo, apenas uma paródia comezinha.

Nesse ponto, a leitura, às vezes fluente, outras maçante, do texto chega a ter uma importância que talvez o autor e os editores não imaginassem. O autor desperdiçou seu inegável talento de prosador, passando por cima de um excelente romance sobre o acesso que os jovens do interior têm aos produtos culturais, oferecidos na metrópole. Mais do que um romance de geração, ele poderia ter encontrado nesse veio a melhor explicação para o próprio exito, que conquistou como um compositor que gostava de Chega de Saudade, mas pensava que queria ser cineasta, por ter adorado La Strada (de Federico Felini).

O texto - como qualquer texto, aliás - se realiza melhor exatamente quando, esquecendo a pretensão didática e memorialística, descreve o cotidiano banal do autor e de sua geração. Há exemplos notáveis, ao longo da maçaroca de páginas. Podemos colhê-los, meio ao acaso. É o caso do episódio da inclusão, a pedido do produtor Manoel Barembein, da belíssima canção Clarice (parceria com Capinam), sem muito sentido no disco Caetano Veloso, de 1968, aquele que continha a canção Tropicália. Ele explicou que o diretor musical, Dori Caymmi, reagia mal à gravação de um clássico composto pelo próprio pai, Dorival, Dora. Ou a guerra de egos travada entre as estrelas Nara Leão e Elis Regina. Há, ainda, cenas magníficas, como a refeição silenciosa do general diante de seus presos famosos.

Infelizmente, elas se perdem num contexto de críticas gratuitas, como uma, que atribui o abolicionismo de Castro Alves a mero jogo de cena retórico, ou outra, que tenta reduzir toda a obra de Paul McCartney à definição grosseira de "pop doce e desossado". Ou, pior ainda, se diluem em manifestações explícitas de um Narciso que nunca tira férias, exibidas neste trecho: "Quem leu os primeiros períodos deste capítulo pode ter se perguntado com um riso de mofa, em face das longas digressões sobre o sono (que juro ter me esforçado para reduzir ao mínimo), se afinal era Marcel Proust quem aqui relatava sua prisão... Mas acontece que gosto dos períodos longos e, na verdade, acho que não sei me expressar, mesmo em conversas de outra maneira." (págs. 351-52, no capítulo "Narciso em Férias", sobre sua temporada na prisão.)

Não importa que o lançamento não esteja fazendo o sucesso de vendas esperado pela editora. O autor poderá, no futuro, fazer sobre o livro o mesmo comentário feito sobre o canto do cisne do movimento, que o texto tenta retratar, o disco Araçá Azul, de 1973: "Eu me orgulhava desse tipo de fracasso."

O autor, discípulo confesso de Jorge Mautner e Antônio Cícero, aos quais dedicou um capítulo inteiro, no caso, terá do que se orgulhar. A obra deixa a impressão, transmitida nas linhas e, principalmente, entrelinhas desse monumento ao ego, de que a história da Música Popular Brasileira precisa ser reescrita com menos ingenuidade e mais amor à verdade. Prova-o a confissão implícita (e certamente involuntária, ao contrário da influência da instauração práxis em suas letras) de que o tropicalismo, tido e havido como uma ruptura estética importante, não passou de uma intervenção no mercado, que pode ser atribuída, sobretudo, ao gênio de marketing Guilherme Araújo, empresário do grupo. Caetano, bom vendedor, deu a seu produto de massas um conteúdo cult, aceitando a corte concreta. Em compensação, os teóricos que tornaram possível essa mágica deixaram de ser gatos pingados meio marginais da vanguarda poética e viraram oráculos incontestáveis da arte e da cultura nacionais: as Perdizes falando para o mundo. E viva a bossa de todos!
 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Francisco Perna