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Luís Antonio Cajazeira Ramos


A procissão

Jornal A Tarde,
09.01.1999
 

 

Figuras obscuras e constritas bailavam como chamas negras na luz fugidia sobre o chão de uma rua imensa e reta, naquela madrugada fumacenta. Soprava uma ventania, levantando papéis e folhas secas e desfigurando mais as sombras flutuantes, que cresciam e diminuíam de uma maneira arrítmica e desconcertante. Pareciam evoluções de mestres de aeroplanos, para uma platéia que mais se assustava que sorria. Imagem de desenhos animados, onde um vôo rasante trazia uma boca imensa, dentes cerrados num sorriso sarcástico, que se abria, abria, mostrando o fundo da goela duma bocarra escancarada. Lá no fundo, um sininho de carne balançava um ruído sem som e sumia rápido para cima, em cambalhota.

Deixava um vazio de garganta seca engolindo o pavor. Correntes se arrastavam e rangiam: nhenc, nhenc, nhen, nhenc, nhenc, nhen – num concerto sem maestro. O som barulhento e compassado ecoava, mil ritmos descompassados se misturavam, vinha um grito do fundo: “Aahh, aahh, aaaaahhhhh...” E o silêncio.

Na frente da multidão, ia uma pira, que de longe não se percebia, mas que respondia pela formação de tantas sombras dançantes misturadas com papéis que esvoaçavam no corredor de vento. Era um fogo enorme! Labaredas escapavam do núcleo e perdiam-se no espaço, entrando por alguma saída que se formava, como um redemoinho que sugasse a chama a seu centro, empurrando-a a uma outra dimensão. A pira lembrava um altar de sacrifícios. Alguns braços a carregavam.

Corri para alcançá-los. Minhas pernas não suportavam o esforço de correr, dormentes e formigantes. Corria mancando. Cheguei ofegante ao fim da legião. Os últimos traziam os olhos arregalados, hipnotizados, como autômatos, arrastando os passos. Uns caminhavam em oblíquo. Outros, de costas. Ninguém me viu. Fui abrindo caminho empurrando aos lados como se folhas num canavial, tentando manter a direção. Perdi-me no centro apinhado, impossível de passar, amassado de todos os flancos.

Num esforço titânico, exsudei-me daquela engrenagem humana e fui cuspido fora. Dei-me conta de um corredor livre que se abria à minha frente e disparei a correr. O vento ardia em minhas faces, rasgando a pele. Cansado, fui diminuindo a fuga em frente, parando, parando. Nesse outro bloco, todos eram pálidos, fantasmagóricos. Olhos fundos encaravam o chão, e seus lábios murmuravam um canto fúnebre: “Hhuumm, hhuumm...” Traziam cadeias presas aos pés, unidas pela mesma corrente. Todos tinham cabelos compridos, negros, escorridos, pontas em agulhas. A pira estava próxima, apressei o passo, andando rápido.

Homens de paletós negros e cabelos de fogo formavam o próximo pelotão. Um batalhão! Cada coluna, mil homens. Entre o batalhão e a pira, ninfas e ninfetas vestidas de odaliscas pululavam para cá e para lá, exprimindo libido e gozo, com as línguas serpentinas em movimentos desconexos. Paravam, subiam e desciam os joelhos, requebrando o ventre e as ancas, e voltavam a pular e saltar e correr e rodar.

E a pira. Os carregadores do altar eram negros imensos.

À frente, uma criança caminhava chorando e gritando alto, procurando um quê ao fim do corredor. Seus gritos eram como “eu quero, eu quero, eu quero”. Esganava-se sem rouquidão, em gritos infinitos.

Essa foi a visão mais apavorante. Estatelaram-se-me os ossos, arregalei os olhos, estático. Um medo roía-me as entranhas. Fui dando para trás, em mil arrepios, erguendo os olhos à pira, que babava labaredas de lascívia e frenesi. Gritei, gritei, gritei...
 




Comentários do poeta Aleilton Fonseca:


A visão do caos: "A procissão", de Luís Antonio Cajazeira Ramos
(primeiras anotações para um artigo)

Aleilton Fonseca

 

A prosa poética é pedra preciosa e rara. Desde os poemas em prosa de Baudelaire e, logo mais, a produção dos simbolistas franceses, o discurso vazado em impressões, sugestões, imagens difusas e pictóricas, disciplinado pelo ritmo da poesia, demarcou um lugar relevante no corpo da literatura moderna. O surrealismo veio dar maior profundidade à abertura simbolista para o impressionante e o imaginativo, coando a percepção do mundo através do inconsciente. É nessa conjunção — a busca de captar e traduzir o inefável em linguagem com a necessidade de exprimir uma visão interior e fantamagórica do mundo real — que se instaura essa poesia em prosa, ou essa prosa poética, que sempre provoca ressonâncias no leitor, estabelecendo uma zona de contato e entendimento, ao nível da capacidade humana de percepção do mundo para além da linguagem cartesiana.

Na literatura brasileira, podemos citar dois exemplos marcantes: a prosa impressionista de um Raul Pompéia e, mais adiante, já com o toque surrealista, a poesia/imagem de um Jorge de Lima (Veja-se o belíssimo "O grande desastre aéreo de ontem", de A Túnica Inconsútil). Na atualidade, a prosa poética continua rara e rarefeita, pois poucos são aqueles autores que a produzem com constância e qualidade. Na Bahia, por exemplo, apenas Díogenes Moura vem se dedicando ao gênero com uma produção contínua nessa linha.

"A procissão" de Luiz Antonio Cajazeira Ramos inscreve-se nessa vertente, com o toque pessoal do poeta que cultiva na linguagem a forma de tornar palpáveis os objetos de uma percepção particular do mundo cotidiano e das vivências íntimas. Trata-se de um texto curto e ágil, que constitui uma metáfora fantasmagórica do caos (representado pela figura surreal da bocarra imensa escancarada que emite o sorriso sarcástico) do mundo cotidiano, em que a platéia "mais se assusta do que ri". Luis Antonio traduz em sua prosa poética o caos pós-moderno (?) que apavora e seduz. Assim atualiza a imagem do monstro de mil dentes/a boca de língua trissulca — entrevista por Mário de Andrade, no poema “Os cortejos” — aberta sobre a procissão de homens (todos iguais e desiguais) na grande metrópole.

“A procissão” lança ao leitor os feixes luminosos do olhar inquieto e expectante, através de uma linguagem que prima pela elegância e pelo equilíbrio, com as palavras dispostas como a tintas sobre a tela. Esse engenho do autor confere qualidade estética ao texto, que se caracteriza pela força pictórica de suas imagens, espraiadas numa pintura verbal surrealista que, no entanto, desvela ao fundo a realidade nua e crua sobre a qual passeia o pincel (a palavra) do artista.

O poeta observa e nos deixa perceber os contornos dessa procissão fastasmal, na qual imergimos (sucumbimos?), como que levados por uma força superior, a mão sem rosto da grande engrenagem de ídolos e ícones que a nós todos nos tenta diurturnamente, para nos tornar mais um número dessa platéia extasiada e estática que povoa os labirintos do mundo. Eqüidistante do processo, embora inserido em seu epicentro, o poeta se vale de sua posição visionária e — exatamente porque a linguagem normal se tornou suporte litúrgico da grande grei e seus cortejos, ele instaura a escritura da poesia na prosa, cujas iluminações reverberam na sensibilidade do leitor e, por um momento que seja, restaura o “re-ligare” poético do homem na comunhão com a palavra. Assim, o seu discurso se torna um fluxo de sentidos opostos às correntes das procissões que a todos cegam e cooptam para um “modus vivendis” em que o homem apenas representa a si mesmo numa comédia trágica. É dessa “representação” que iguala e anula que o poeta tem medo, porque diante da “visão mais apavorante” a ele se revela a consciência de que não faz parte da engrenagem, de que deve recusar um lugar no grande rebanho. Seu lugar é o da recusa e o recolhimento à linguagem fundamental, como finaliza o seu discurso:

“Essa foi a visão mais apavorante. Estatelaram-se-me os ossos, arregalei os olhos, estático. Um medo roía-me as entranhas. Fui dando para trás, em mil arrepios, erguendo os olhos à pira, que babava labaredas de lascívia e frenesi.

Gritei, gritei, gritei...”

Na linguagem, no princípio não foi o verbo, mas o grito. O texto de Luís Antonio Cajazeira Ramos conclui com o gesto reiterativo do grito primordial (da consciência do mundo e da escolha) que marca o fim (em duplo sentido) da expressão poética diante do caos tão visual quanto indizível de um mundo cada vez mais desumano. Testemunha de tal espetáculo (será um circo dos horrores?), resta à consciência sensível do poeta o grito que ecoa e se prolonga, infinito nas reticências... porque se dirige ao universo, onde todos os gritos são eternos. “A procissão” é a linguagem urgente do grito, novo (e sempre) princípio da poesia que emerge, em prosa, do caos absoluto.

 



Aleilton Fonseca
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Artur Eduardo Benevides