Lustosa da Costa
Carta do poeta Francisco Carvalho
Fortaleza, 23 de dezembro de 1996
Prezado amigo Lustosa da Costa:
Acabo de ler seu romance Vida, Paixão
e Morte de Etelvino Soares e chego à conclusão de que você foi,
realmente, picado pela mosca azul da ficção. Tem razão Abdias Silva
quando observa que você "construiu uma história com grande variedade
de tipos, numa narração linear e apaixonante ". Essa "narração
linear", sem cortes abruptos no fluxo da narrativa, talvez seja um
dos aspectos mais positivos do seu romance de estréia, na medida em
que não exige grande esforço do leigo para compreender o que se
passa à volta do turbulento universo do protagonista, o patético
Etelvino Soares.
É sabido que os críticos do tempo de
Eça costumavam criticar o autor de Os Maias pelo rigor do traço com
que ele desenhava a estatura física e moral de seus personagens.
Acusavam-no de abusar de pinceladas caricatas, compreendendo desse
modo a humanidade dos numerosos figurantes que transitam nas páginas
de seus romances. Leito compulsivo de Eça, parece que você aprendeu
com ele essa espantosa habilidade de "marcar" os seus personagens
mediante o registro, a nanquim, de suas deformações físicas ou
morais.
Logo no começo do romance, você coloca
em destaque a figura patética e quixotesca de Etelvino Soares, que
"marcha ao encontro a morte pelas ruas lamaçentas , as abas do
fraque abertas ao vento como velas enfunadas". Essa metáfora das
"velas enfunadas "acompanha o leitor ao longo de todo o livro e
reforça, ao mesmo tempo, o clima de turbulência que vai pelo corpo e
pela alma de Etelvino Soares, inapelavelmente marcado para morrer.
Essa morte anunciada de Etelvino Soares, executada por um grupo de
inimigos políticos, nos comove não apenas pela brutalidade de que se
revestiu, como também pela fragilidade do indefeso e romântico
tipógrafo.
Mas não é só a triste figura de
Etelvino Soares que nos causa impressão forte e duradoura. Os
numerosos personagens que circulam no universo do romance, figurões
que se agasalham à sombra do poder ou pequenos cafajestes mutilados
pela mesmice da rotina e do cotidiano, todas essas criaturas,
pertençam ou não à hierarquia política da época, passam a "viver"
com absoluta autonomia, independentemente dos caprichos do narrador.
Não se comportam como simples espantalhos.
Você não é certamente o primeiro
jornalista a ser seduzido pelo magnetismo da ficção. Não se pode se
um bom romancista quando não se tem boa memória. Todo romancista, em
certo sentido e em certa medida, é um memorialista. Você tem
excelente memória, tem jogo de cintura e sabe urdir com elegância os
numerosos fios da trama e conduzi-los até o fim do novelo. O seu
livro está recheado de episódios políticos, habilmente intercalados
no contexto do romance. Mas em momento algum o leitor é posto à
margem do fulcro da narrativa, cujo ponto crucial é a vida
atribulada de Etelvino Soares e sua morte sem grandeza e sem glória.
Destaque-se, ainda, a sua inarredável
vocação para a abordagem picaresca dos fatos. Você não é menos
engenhoso, nesse tocante, do que os celebrados autores de O
Malhadinhas e de O Coronel e o Lobisomem, livro a que o Braga
Montenegro costumava referir-se com os maiores elogios e por ele
considerado um da das obras-primas da literatura brasileira. É
lamentável que os editores não se interessem pela reedição de obras
desse porte. Hoje prevalece, acima de tudo, o fator mercadológico.
Que o digam os Paulos Coelhos da vida.
Queria apenas dizer-lhe, mestre
Lustosa, que o seu livro me agradou plenamente. É gostoso de se ler,
pela forma e pelo conteúdo, pela competência e pela irreverência que
o permeiam, pelos encantos e dinâmica da linguagem. Sobretudo pela
maneira descontraída com que você conduz a narrativa até o seu
desfecho final. A linearidade da narrativa nos poupa de complicações
estilísticas e de arroubos metafísicos, coisas que não costumam
figurar no cardápio do leitor mediano e geralmente só agradam ao
paladar de um reduzido grupo de eleitos. Você conta a estória de
Etelvino Soares com absoluta descontração, com a fria objetividade
de um escrivão juramentado, que não arreda os olhos das provas
documentais.
Você entra, com a maior dignidade, na
vasta galeria dos melhores contadores de estórias do país. Chego à
última página do livro e não consigo afastar de minhas retinas
fatigadas ( acho que isso é do poeta Drummond ) a imagem patética do
protagonista Etelvino Soares, pobre de carnes e rico de idéias
mirabolantes, marchando "ao encontro da morte pelas ruas lamacentas,
as abas do fraque abertas ao vento como velas enfunadas". E isso me
deixa comovido como o diabo (ainda o poeta Drummond).
Creio no apreço e na renovada
admiração do Francisco Carvalho.
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