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Lau Siqueira


 


Fortuna crítica: Hildeberto Barbosa Filho

A poesia de Lau Siqueira: minimalismo e metalinguagem

Jornal A União, 10 e 11 de agosto de 2002.


 

Alan Viala defende a idéia de que o livro de estréia é o livro chave. É dele que partem as matrizes nucleares da obra de um autor, na medida em que as experiências posteriores vêm tão somente confirmar as linhas mestras da obra inaugural. Tese pertinente, mas, como toda tese, discutível!

Se tomarmos como ponto de referência, por exemplo, a poesia de Lau Siqueira, gaúcho radicado na Paraíba, a tese do teórico português mantém , de certo modo, sua lógica interna, sua coerência conceitual. Vejamos porque.

Tendo estreado em 1998, com o título pessoano “O Guardador de sorrisos”, Lau Siqueira prossegue, em 2002, com Sem Meias Palavras, exercitando-se, portanto, no ofício da criação poética, o que o faz retomar, por um lado, roteiros estéticos da primeira experiência, porém, por outro, ampliar o espaço expressivo de certas configurações iniciais. Em outros termos, de um livro para o outro, algo permanece, mas também algo tende a se alargar, a se consolidar, já num plano de insuspeitada maturação poética. Seja no âmbito dos elementos técnico-literários e estilísticos, seja no terreno das componentes temáticas e ideológicas.

Permanecem de O Guardador de Sorrisos em Sem Meias Palavras o insistente viés minimalista da expressão, o à vontade prosaico e lúdico da alternativa marginal e uma que outra sedução acidental pelos percursos de uma vanguarda, particularmente os que se formularam em torno da Poesia Concreta e do poema processo. Parece ampliar-se ou adensar-se, no entanto, a consciência metalingüística assim como as forças subjetivas de um lirismo mais atento aos movimentos essenciais da percepção poética.

O viés minimalista parece ser um traço apriorístico do ideário estético do autor. Quer na primeira quer na segunda coletânea, a poesia de Lau Siqueira é toda condensare, arquitetura mínima de parcos elementos, economia pura de linguagem. Todavia, é preciso verificar-se que este minimalismo poético, se se mantém, modifica-se, contudo. Diríamos que a “metalurgia da palavra”, para me valer de uma expressão do próprio autor, não se opera no mesmo grau de agudeza estética de um livro para o outro.

Em O Guardador de Sorrisos, contam-se os momentos de real pertinência poética em meio a uma gradação pulverizada de exercícios circunstanciais. Citem-se aqui os poemas “aos predadores da utopia”, curiosamente recuperado como epígrafe no segundo livro, e “ploft”, pequeno ensaio metapoético cheio de sugestivas ambivalências.

Em Sem Meias Palavras, penso que a percentagem se inverte: se há o contrapasso de textos pouco convincentes, a exemplo de “candura”, “estribilho”, “presente sumário” e “aturdido”, pesa, no entanto, e pesa artisticamente, a técnica formal de poemas como “razão nenhuma”, “coito”, ausência, “chuva”, “a pele do motivo” e, emblematicamente, o galo”que transcrevemos aqui:

o silêncio
com suas equações
de estrelas
abre os portais
da madrugada

sob os olhos atentos
do infinito
um quarto de lua
empresta a partitura
ao galo

 

A sutileza da percepção, a capacidade de capturar as inversões semânticas dos objetos poéticos e, em certo sentido, uma maior aderância ao apelo metafórico da linguagem revelam , pelo menos nesta instância lírica, que o minimalismo poético de Lau Siqueira se consolida e amadurece.

Da mesma maneira podemos afirmar no tocante àquele à vontade prosaico e lúdico da alternativa marginal. Penso que, no segundo livro, o tom mais direto, mais coloquial, mais espontâneo, decerto previsível no primeiro, adquire tonalidades mais espessas, sobretudo pelo investimento em imagens de surpreendente teor estético, conforme se pode observar no já referido poema “a pele do motivo”:

a visão nua
das tuas omoplatas

tão iguais
a tantas
escondem alguns rebanhos
da minha tristeza

 

Arrolemos, nesta mesma linhagem, este texto sem título da página 44: (mil coisas pra dizer/ e um silêncio infinito/ queimando os vermes da fala), e outro, da página 60: suicídio lento/ na mobília da alma/ os versos que invento.

Quanto às incursões de herança vanguardista, quer na vertente verbovocovisual da Poesia Concreta, quer no figurativismo icônico e vocabular do Poema Processo, o sabor da permanência da obra matriz parece se projetar sobre as exigências de um aprofundamento. Creio que são tarefas de linguagem condicionada pela abertura da pesquisa e pelo apelo experimental, talvez melhor configuradas em livros-objetos à parte. Não podemos dizer, contudo, que não se trata também de uma possibilidade, e possibilidade efetiva, do poético.

A bem da verdade, se um livro prolonga o outro dentro daquelas bases germinais que sugere o pensamento de Alan Viala, ou mesmo pela lógica aristotélica da potência que pode se transformar em ato, é em Sem Meias Palavras que o poeta evidentemente se revela.

De um lado, o metaludismo do puro jogo de palavras, tão caro tradição moderna e pós-moderna como que cede, aqui, à vigilância de uma consciência metacrítica mais palpável do ponto de vista do dialogismo intertextual. Consciência irônica e distanciada a bem lembrar certos setores expressivos da modernidade que na vertente de um Laforgue e de um Corbiére, por exemplo, souberam ler e reler, parodicamente, a tradição simbolista convencional. Vejam-se nesta perspectiva, poemas como: “catarse”, “razão nenhuma” e, principalmente, “as flores mallarmaicas”.

De um outro, o espessamento lírico procura se projetar no sentido metafórico da palavra, sobretudo sulcando sua fisiografia imagética, quer no compacto corpóreo de um poema ou de uma estrofe, quer na coagulação isolada de alguns versos, a exemplo destes citamos: (...) meus olhos/ duas migalhas diante do nada, (p.39); (...)vou regando verbos e estrume. Para crescer/ no que não conheço, (p57), e (...)... na superfície/ as coisas se arrastam/ ou buscam / o abrigo incerto do esquecimento, (p.28).

Poeta em exercício, poeta em processo, Lau Siqueira, sobretudo com Sem Meias Palavras, demonstra a capacidade típica daqueles que não conseguem ver a poesia, em que a poesia se materialize em inventivo organismo de linguagem. E que outra coisa seria a poesia se não isso?

Herdeiro dos modernos, herdeiro das vanguardas, herdeiro dos poetas marginais, o poeta gaúcho/paraibano parece provar a efetividade das fusões estéticas, sem comprometer as propriedades idiomáticas de um estilo pessoal e as marcações pontuais de um olhar autônomo. Seu trabalho de invenção vocabular, seu minimalismo e sua metalinguagem já começam a garantir, nas cercanias do poema, a sombra viageira da poesia.

 



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13/07/2005