A “trinca do vidro” se amplia
e somos convidados a passar por ela para adentrar em uma pirâmide. Não a
egípcia, mas a pirâmide social brasileira onde estão postas as variáveis dessa
nossa imensa equação algébrica. Uma álgebra social representada por equações em
que as incógnitas, leia-se o povo brasileiro, sempre foi e continua sendo
submetido às operações de subtração, divisão, exploração e alheamento, para a
única, exclusiva e constante potenciação (isto mesmo,
o resultado de um número multiplicado por si várias
vezes) da exploração capitalista.
Reconhecemos facilmente as
variáveis postas nos belíssimos poemas do senhor Lanzillotti. Quadros pungentes
de como vivem os pobres-diabos de nossas cidades. O X da vida de um motorista de
ônibus premido a dobrar o turno de trabalho, O Y, da vida de uma vendedora
ambulante de limões grávida, o Z de meninos favelados que catam lixo em nossas
ruas. Todo um alfabeto de variáveis, onde entram o peixeiro desdentado que
apregoa sua mercadoria, o guarda-noturno que só tem um apito como arma, o menino
magrinho que faz malabares nos sinais de trânsito, o homem-placa que almoça
sentado em um meio-fio, e até as putas de beira de esquina que “liberam almas e
/ vendem unicamente corpos”. Todos, nós e ‘eles’, “debutantes de sonhos e
sociedade inacessíveis”.
ROCINANTE
Carrega três filhos no
carrinho, /em busca de reciclados.
À cada esquina, recolhe algo /
útil à venda.
O cão, majestosamente, / à
frente, abrindo caminho / entre pedestres:
como se fosse cavalo árabe.
Ao menos assim, sonha a
criança, / com um fantasioso chicote em mãos:
Vai, Rocinante, vai!
Nota do resenhista: o substantivo “Rocinante” significa: cavalo
sem vigor.
Já a terceira parte da obra,
parece, a princípio, focar o olhar poético para os cruciais problemas relativos
à natureza e o que dela andamos fazendo. Entretanto, se expande e envereda por
outros planos. Ora a focalizar como estamos a nos relacionar com as tecnologias
alienantes, os objetos e o nosso amor-próprio, levando o leitor à paragens
outras que flertam com o bom humor quando aborda as atuais relações afetivas.
Andam depredadas a mais não poder como lemos em “Casamento”, “Mentiroso” e “A
carta”.
OCEANO
No mar / revolto / das
comunicações
busco me agarrar / a algo
fixo:
são tantas / as mensagens /
que o silêncio / vai se eximindo
de criar / ponte / entre verbo
/ e / diálogo.
SHOPPING
Andam em círculos /
desorientados pelo consumo.
Tantas coisas lindas / em um
mesmo lugar: / Palmeiras, orquídeas e / rios com peixes.
Aqui se tem o Éden, Taj-Mahal
/ paz de espírito e / o que mais se poderia desejar?
ACADEMIA
Olha-se fixamente / enquanto
faz esteira.
Seus contornos trabalhados à
exaustão, / revelam desejo de superioridade / sobre o tempo.
Com fones em ambos os ouvidos,
/ canta mergulhada na realidade sonora.
Terminada a sequência, recolhe
pertences / em bolsa de luxuosa marca / e volta para casa solitária.
Todos nós sabemos, ou fazemos
vaga ideia, das formas que nos cercam no mundo material. Parece-nos que o X da
questão desta obra está em seu título. No adjunto adnominal, “acaso” que é termo
acessório utilizado para atribuir, determinar, modificar, e transcender o
substantivo “geometria”. Merece registro que o autor é Licenciado em Letras pela
UNISUAM, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, e não só pesquisou,
como escreveu sobre as poéticas de vários autores, notoriamente as de Manuel
Bandeira e Ruy Espinheira Filho. Portanto sabe muito bem o que está fazendo e o
faz de maneira excepcionalmente bela e profunda justamente em o “Prisma” última
parte que vale de per si, toda a obra, e voltamos então a refletir mais
amplamente sobre a questão da “luz”, mencionada no início do texto.
Mas que diabo é “Acaso”? Vem
do latim a casu, ou seja, algo que surge ou acontece a esmo, sem motivo
ou explicação aparente. Fica-nos na consciência o fato inconteste de que o que
pode ser considerado acaso num sentido, pode não ser considerado acaso em outro.
Isto nos remete lá para a filosofia da Grécia antiga onde viveu um tal de
Demócrito, que segundo reza a lenda, existiu uns séculos antes do Cristo. Pois
muito bem; esse malucão andou pensando sobre acasos e aleatoriedades. E dentre
outras conclusões chegou à aleatoriedade do desconhecimento de causas. Que seria
apenas um outro nome para a ignorância humana acerca das causas determinantes de
uma dada estrutura ou de um dado fenômeno e, consequentemente, de nossa
incapacidade de descrever, prever ou controlar. Seria um determinismo
disfarçado? Tempos depois, surgiu outro alucinado, matemático, astrônomo e
físico, que organizou a astronomia matemática. Um tal de Pierre-Simon Laplace,
no século XVIII andou esbravejando alucinadamente que: “se imaginarmos uma
inteligência capaz de conhecer todas as forças que animam a Natureza e conhecer
o estado de todas as partes da qual ela é composta - uma inteligência
suficientemente grande para analisar todos esses dados - então ela seria capaz,
de numa fórmula, expressar o movimento dos maiores corpos do universo, bem como
o dos menores átomos. Para tal inteligência nada seria incerto e o futuro, bem
como o passado, estariam abertos a seus olhos.” Iluminou mais o assunto, mas o
golpe de misericórdia no racionalismo matemático, veio de ninguém menos que
Albert Einstein (século XX), a protestar com a famosa frase: Deus não joga
dados! Parafraseando Shakespeare; há sim mais mistérios entre o céu e a terra do
que a vã geometria dos homens possa imaginar.
GEOMETRIA DO ACASO
Acaso é aquilo que ocorre sem
se esperar: / amor, poema, livro.
Algo planejado / não será
também / o acaso?
A tônica da vida beira a
incerteza / e a matemática não dá conta / com variáveis.
Há então a geometria do acaso,
/ embora não se encontre definição / em livros do gênero.
Por ela e só por ela / é
possível se compreender / que a vida não se mede, / a vida se gasta.
É na aparência da simplicidade
dos versos, que aquilo que reputamos como invisível, imprevisível ou misterioso,
se revela. Com efeito, o leitor se emociona com a carga de lirismo e
sensibilidade que permeia essa produção ímpar.
ROSA
Não é só matiz e pétalas / que dignificam a planta.
Ainda que maltratada, / em pouco adubo, água, / coloração
dispersa / e sem enxertos.
Se ela sobrevive é porque algo / no íntimo, luta, bravamente /
para ser rosa.
Luciano Lanzillotti se mostra
em toda sua simplicidade prosaica. Sempre atento aos olhares do mundo e para o
mundo, tece fios de um cotidiano real, ao mesmo tempo em que aponta para uma
trama de diversidades que são substância e conteúdo poéticos, na medida em que,
ao realizar seus poemas, vai registrando um universo de percepções e sensações
concretizadas a partir de relações inesperadas (acasos?), que transformam
palavras em conteúdos impressivos e sensoriais, para emocionar o leitor. Para o
emocionar, e também para que raciocine. Aí a luz, ou por outra, a geometria do
não-acaso!