Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Luiz de Aquino


Discurso de posse

(Academia Goiana de Letras)

 

A cidade — era assim que a chamávamos — não era mais que meia dúzia de ruas cascalhadas, vermelhas, determinadas por casas humildes onde habitavam pessoas igualmente humildes, além de uns poucos e austeros senhores que jamais imaginávamos em mangas de camisa. Na praça, a única praça, o maior edifício era a igreja, mutilada em uma das torres, presidindo o largo onde, poucos anos antes, um jovem prefeito começara a construir o jardim. Abortado o projeto pela redemocratização que se seguiu ao término da Segunda Grande Guerra, ficou apenas um calçamento em quadrado, já delineadas as alas de travessia.

Aquele começo de urbanização do único logradouro público de convívio e lazer — início inevitável de dezenas de novas famílias e que se resumia ao quadrado de cimento, postes ornamentais e mudas crescentes de fícus em cada canto — é o cartão-postal que mais evoca a infância na remota e esquecida Caldas Novas das boas imagens. O despertar para o turismo nos anos 20 de mim, ou, se preferirem, a casa do tempo que vai de 1965 a 1975, foi significativo. Amadureceu o homem, transfigurou a cidadela.

Hoje, a lembrança dos anos verdes não confere com o cartão-postal que lhe deveria equivaler. As lembranças da paisagem são remotas. Ficou o recordar do modo de sentir, do jeito de crescer. Há a lembrança das histórias contadas por minha mãe e que serviam para evocar o sono, um livro de páginas amareladas e capa dura, os Contos da Carochinha lidos com voz de acalanto, o beijo na testa, a oração de pedir que Deus nos protegesse e de esperar perdão pelo dia de alegrias, como se fosse pecado ser criança e feliz.

Desde os mais tenros anos, os acordes em saraus musicais e suas inevitáveis conseqüências, as serenatas, mostravam a carícia dos versos, vestidos em vestes as mais nobres, quais sejam as linhas melódicas. Era ainda um tempo de reviver preciosidades de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré, Zequinha de Abreu, Noel Rosa e Lamartine Babo, mas sem desprezar as novidades, e a novidade mais interessante era Luiz Gonzaga, cantando versos de Humberto Teixeira.

A esse ambiente, atribuo a razão de fugir das escalações para o joguinho de bola ao lado da igreja, preferindo dedicar-me a um novo e solitário passatempo, a leitura de imensas pilhas de gibis, descobertos entre os tesouros do primo Rogério, estudante interno em Araguari. Aquele acervo me convenceria, anos depois, que seu dono não teria sido um aluno 0brilhante, mas sempre o respeitaria por ser o responsável, entre outras qualidades e valores morais, pelo prazer descoberto do manuseio dessas coisas feitas em papel e tinta, pelas inebriantes viagens pelo desconhecido e pelo inusitado a partir das páginas dos livros.

Tanta delonga sobre a infância para tentar justificar o ofício de escriba, a qualidade que me permitiu a sobrevivência nesta terra em que o berro do boi e a extensão monótona dos arais e dos vergéis valem mais que o cultivo das letras.

Acredito nas letras e nas mulheres e homens de letras. E essa crença remonta aos anos dos primeiros aprendizados. Sou do tempo em que estudar os versos era indispensável, mas versejar era considerado uma prática afeminada. Nos primórdios do curso ginasial, no sempre amado Colégio Pedro II, questionava esse conceito ao observar que os versos que nos davam de beber foram, em sua quase totalidade absoluta, criados por homens. E homens que tiveram força na história e geraram famílias que deles se orgulhavam. Já naquela época, no chacoalhar do trem de todos os dias a caminho do colégio, o ritmo das rodas duras sobre os rijos trilhos e o jogar inquieto dos vagões insinuavam versos. Imaginava-me Bandeira a criar a onomotopéia: "Café-com-pão, café-com-pão, café-com-pão... Voa fumaça, corre cerca, ai, seu foguista, bota fogo na fornalha que eu preciso muita força, muita força, muita força..."

Sim, o menino precisava força. Não a força dos tenazes conquistadores de espaços geográficos, nem a força dos que erguem obras físicas ou constroem impérios. Geógrafo de formação, parece que nasci para historiar. E como a força de que precisava não era para construir maravilhas da engenharia, o jornalismo foi crescendo como opção e prazer, tornando-se profissão pouco após ter vindo a lume meu livro de estréia.

Leitor de colunistas como Adalgiza Nery, Stanislaw Ponte Preta e Nelson Rodrigues, em tempos da vivência adolescente na velha capital federal, encontrei em Anatole Ramos e Carmo Bernardes meus preferidos após o retorno ao Planalto Central, ambos cronistas no semanário Cinco de Março, depois no matutino O Popular, teimosos em contestar o regime, hábeis em dizer pensamentos em letras de forma de modo a engambelar os censores.

Com o tempo, aprenderia a apreciar outros notáveis homens de letras de nossa terra, em textos de jornais e de livros, e vou restringi-los aos membros desta Casa para não fazer desta peça, escrita para a fala, um enfadonho desfilar de nomes a que sou grato pelo bem que me fizeram ao espírito e pelo aprendizado. Fiquemos, pois, em Bariani, Eli, Bernardo, Castro Quinta, os irmãos Mendonça Teles, meu velho amigo Coelho Vaz, meu quase irmão Brasigóis, Eliézer Penna — meu editor no já citado Cinco de Março —, Asmar e Bittencourt — companheiros na Folha de Goiaz — e Eurico Barbosa — com quem convivi no Diário da Manhã.

A Carmo Bernardes atribuo o ato da provocação para que me oferecesse ante as senhoras e os senhores membros desta Academia. Demorei-me a tomar a decisão, e o fiz no momento em que vagava a Cadeira número 8, do meu velho mestre José Sizenando Jayme, sendo vencido pelo notável Isócrates de Oliveira, vigário de minha infância na pacata Caldas Novas. Naquela disputa, uma certeza nos norteava — assegurar um lampejo de continuidade na Cadeira, pois que o eleito, como seu antecessor, nasceram em Pirenópolis, cidade natal de meu pai e meu torrão preferido pelo sedimento das origens.

Acredito que o fato de vir a ocupar a Cadeira número 10, a mesma que ocupava Carmo Bernardes, cumpre uma ação de destino. Acompanhei seus escritos de resistência desde os primórdios de 1963; preocupei-me quando de seu exílio nas lezírias do Araguaia, nos tempos tumultuados do golpe militar de 1964, e pude rir, feliz, ao ouvir que o general Riograndino Kruel, um dos líderes do sectário golpe, o teve por guia de pescaria, sem saber de sua vida. Sozinhos, na solidão dos lagos piscosos do Bananal, no limitado espaço de uma canoa, tendo entre ambos não mais que varas, linhas, iscas e molinete e uma espingarda. Talvez providencial, fosse Carmo sanguinário.

Carmo Bernardes trazia na índole a tradição do bom mineiro, o homem da terra, o caipira, na mais pura das acepções do termo, o homem silencioso, observador, que pisa com segurança o terreno porque sabe que o mato reserva surpresas ao pé descalço. Mas corajoso o bastante para expor sua opinião, espalhar ao mundo sua indignação e mostrar aos que se julgam poderosos que o poder de verdade é maior que a chance que conseguem alguns de manipular o patrimônio público a bel-prazer. A estes, a história reserva a verdade de suas naturezas; a homens como Carmo, fica assegurado o lugar que lhes cabe por direito de vida, qual seja o reconhecimento e o respeito de seus pósteros.

Não gostaria de biografá-lo; muito já se escreveu sobre ele.

Não tenho estatura crítica para apreciar sua obra, e isto já se fez no âmbito acadêmico, até mesmo em redações de mestrado e teses de doutorado. Nunca fui mais que um mero leitor , aprendiz de sua verve. Com ele, em suas crônicas e artigos da década de 60, tive excelentes lições de jornalismo — a principal delas talvez seja a prática que cultivo de não pôr em letras de forma o nome de quem não o mereça.

Por patrono, tenho o também jornalista Moisés Augusto de Santana. Vilaboense, nascido no dia 7 de fevereiro de 1879, quis ser militar. O temperamento irrequieto e a indisciplina de homem livre fizeram-no andarilho. Sua biografia, sintética e muito clara no texto de Humberto Crispim Borges, em seu Retrato da Academia Goiana de Letras, ou a homenagem que lhe prestou o mesmo Crispim, em discurso nesta Casa há exatos 24 anos, mostra-nos um jovem autêntico, capaz de vaiar o Presidente da República e o Ministro da Guerra, fato que o afastou do corpo de alunos do Preparatório para a Escola Militar. É aceito depois, para novamente ser desligado por novo ato de indisciplina, sendo integrado à tropa e provavelmente mandado para o Nordeste, tornando-se combatente aos fanáticos de Antônio Conselheiro em Canudos. E é o próprio Crispim quem, no citado discurso, lança dúvidas sobre este provável evento. Em novembro, dá baixa do serviço do Exército e se torna escrivão de polícia em São Paulo.

A partir de então, sua vida é uma infindável seqüência de registros anuais. Em 1898, inicia o curso de Direito e se torna jornalista, restaurando o periódico A Nação, mas em 1899 já se realiza nova mudança de moradia ao transferir-se para Belém do Calvário, no interior de São Paulo.

No último ano do século, retorna a Goiás, fixando-se em Santana das Antas, depois de algumas andanças. É dele a autoria do novo nome do logradouro: Anápolis. Foi Procurador de Partes, casou-se com Cassiana Alves de Sousa e se fez professor e secretário do Conselho Municipal. Exerceu o cargo de Intendente, criou uma seção no jornal Lavoura e Comércio, de Uberaba, com o título de Vida goiana. Elegeu-se deputado por Pirenópolis, Corumbá, Antas e Bela Vista, mas não exerceu o mandato.

Em 1905, muda-se para Vila Boa. Interinamente é Procurador da República e começa, então, um ritmo de vida que o faz mudar de cidade a cada ano, sempre envolvido nas lides jornalísticas. Em Catalão, funda o Sul de Goiás. Volta à capital do Estado e é Secretário de Polícia. Deixa o cargo e se muda para Curralinho (Itaberaí); depois, Morrinhos, onde advoga e codifica as leis municipais. Vai morar em Inhumas — vale registrar que é também dele o novo topônimo da antiga Goiabeira —, volta à capital, onde colabora no jornal A Imprensa. É diretor do recém lançado Estado de Goiás e inicia uma sistemática campanha contra o presidente Urbano Gouveia dos Santos, que renuncia. Promotor público da Capital e professor de Pedagogia e Metodologia na Escola Normal. Abandona Vila Boa e volta a Catalão, em seguida vai para Uberaba, lança o Brasil Central.

A partir daí, ele mora em Barbacena, Uberabinha (hoje, Uberlândia), volta a Barba-cena, outra vez Catalão, outra vez em Uberaba, Ribeirão Preto, Sacramento, Santa Rita do Paranaíba (que mais tarde seria Itumbiara) e Bonfim (que hoje é Silvânia). Nesse período, que vai de 1913 a 1921, cria, dirige e colabora em vários periódicos, funda o que se pode chamar de o embrião do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás — a Sociedade Goiana de Geografia, em Santa Rita do Paranaíba, em 1918. Com o nome de Sociedade Goiana de Geografia e História, instala-a em Bonfim em 1921 e nesse mesmo ano, a 22 de outubro, a Sociedade ganha sede também no Rio de Janeiro.

Em 1922, volta a morar em Uberaba, nomeado bibliotecário da Câmara. Por ter publicado versos de sua autoria, mordazes, alusivos ao presidente da Câmara, o médico João Henrique Sampaio Vieira da Silva, foi por este interpelado na redação do Lavoura e Comércio, quando foi ferido a bala, falecendo na noite do dia seguinte.

Meu primeiro contato com referenciais de Moisés Santana, além das evidentes homenagens para a posteridade, como nome de logradouros e estabelecimentos de ensino, se dá em 1965, ao ter seu neto homônimo como colega de trabalho, tanto como agentes de venda do livreiro Paulo Araújo quanto como aprendizes de bancários, admitidos por concurso, ao tempo em que essa era a prática para admissão nas instituições do Estado de Goiás. Moisés Santana Neto vinha de ser punido pelo Ato Institucional número 1, o que lhe interrompeu a carreira de oficial da Polícia Militar. Mais tarde, juiz de direito, seria alvo do Ato Institucional número 5, para depois ser reintegrado e tornar-se o mais polêmico de todos os que usaram a toga da magistratura, repetindo a sina do avô, sempre afrontando o arbítrio pela Lei e a Justiça. Depois, já bancário, por várias ocasiões atendi o desembargador Paranaíba Pirapitinga Santana, o elo de ligação entre os dois Moisés.

Sobre Moisés Augusto de Santana, evoco a frase do escritor Coelho Neto: "Foi o polemista mais audaz e vigoroso de seu tempo".

Inaugurou a Cadeira 10 o ilustre vilaboense Albatênio Caiado de Godoy, homem de letras, de leis e também de ofício jornalístico. Destacou-se por intensa vida pública, ocupando os mais destacados postos e cargos de relevância e deixando-nos marcas de sua passagem por este mundo na forma de entidades e instituições como a Faculdade de Direito de Goiás e a Associação Goiana de Imprensa, além do Instituto Histórico e Geográfico e da Academia Goiana de Letras, além de uma prole de valor, pessoas destacadas da sociedade goiana, seguidores à altura de sua vida.

Volto a Carmo Bernardes. Recordo a minha alegria de jovem professor no Ginásio Dom Abel, localizado próximo da famosa Casinha Verde da Macambira, nos idos de 1968 a 1970, quando vislumbrei entre os alunos três das cinco filhas do meu ídolo, um dos cronistas que eu mais apreciava nas lides da imprensa goianiense. Por esse tempo, deparei-me, num ônibus, com a inconfundível fisionomia do autor de Rememórias. Era curto o percurso, da Praça Cívica à Praça Universitária, e o tempo rápido. Puxei conversa e a emoção foi ainda maior, pois o tarimbado escriba tinha referências minhas, naturalmente tecidas pelas filhas estudantes. Conversamos rapidamente, e quando me despedi, ouvi dele:

— Não deixa passar sem saber.

A partir daí, encontrava-o esporadicamente pela calçada defronte ao Grande Hotel, em companhia de intelectuais e outros indesejados pelo regime. Outras vezes, via-o sentado em algum banco a olhar os jardins da Avenida Goiás (ainda era o tempo dos jardins que agora que-remos de volta). Seguramente, preparava a crônica seguinte ou algum texto de suas memórias, sempre mostradas em livros na forma de romances que atravessaram primeiro as divisas do Estado, para depois se banhar no Atlântico e beijar terras de além-mar, até ser premiado em Cuba. Ou ainda na barraca da Feira de Artesanato, onde os escribas marcavam presenças. Carmo só faltava por conta de alguma pescaria.

Sempre irreverente, bom de conselhos. Mostrava-lhe algum escrito, ele lia silenciosa-mente; se gostasse, não opinava, mas qualquer ressalva era registrada na hora, sem alarde, de modo tão sutil que o comum era ninguém perceber que a conversa era uma sugestão literária de importância para o pretenso escritor. Mostrava-lhe meus textos em prosa, os versos ficavam para eu perturbar algum poeta.

Lembro-me de quando lancei O Cerco e Outros Casos, em 1978. Ouvi dele um comentário breve, como era de seu feitio:

— Você jogou em terra uma gota de óleo. E vai se surpreender com o tempo, vendo-a crescer...

Muito tempo depois, soube por sua filha Ana Maria que a imagem fora usada para referir-se a si próprio na primeira noite de autógrafos, em 1966, ao lançar Vida Mundo. Em dezembro de 1994, ao entrevistá-lo para o Diário da Manhã, ele próprio rememorou a parábola da mancha de óleo. Aquele foi um grande momento, iniciado com sua garantia de haver encerrado a carreira de escritor. Ao final da entrevista, obtive dele a confissão de que trabalhava, com a dedicação de sempre, uma obra sobre as lezírias — perspicaz, ele notara uma carência bibliográfica sobre tão importante ambiente ecológico, os banhados marginais aos rios.

Guardo, entre meus recortes, artigo de Carmo Bernardes no jornal O Popular, dos idos de 1977, sob o título Réquiem. O artigo era alusivo à morte do meu avô Luiz de Aquino Alves, aos 78 anos, em Pirenópolis, texto que o cronista conduziu com a maestria de sempre, comparando seu desaparecimento com a queda de uma das duas palmeiras que ornamentavam a Matriz de Pirenópolis. Carmo afirmava que os pirenopolinos estavam tristes por ambos os motivos. Escrevi-lhe uma carta, agradecendo o artigo e identificando-me como neto do homenageado. Eu estava surpreso, pois nem antes, nem depois, Carmo Bernardes comentaria comigo qualquer relação de amizade havida entre ele e meu avô, mas seu artigo deixara evidente que ele conheceu o velho maestro com relativa intimidade.

Falar de Carmo Bernardes é praticamente impossível sem o referencial marcante que é Estudos sobre quatro regionalistas, da consagrada e sempre admirada Nelly Alves de Almeda, e em A voz do sertão: realidade e mitos — estudo de rara felicidade, da lavra da também tão querida Moema de Castro e Silva Olival, ambas membros desta Academia.

Nelly Alves de Almeida, ao estudar a obra do meu antecessor, enalteceu-o no inevitável: a linguagem típica, carregada da força criativa, que, segundo a autora, está ligada à "fala a um tempo forte e tranqüila, simples e ousada" que herdou da mãe, Dona Sinhana. Essa a linguagem que ele fez em letra de forma, característica inevitável de seu texto inconfundível, puro, autêntico. Em Carmo Bernardes, ao contrário do que se nota em outros regionalistas, a linguagem é a dele, e não a que se registra do ouvir, do gravar aos poucos e transcrever. Para Carmo, essa era a linguagem autóctone, era passar da cabeça para o papel sem o intermédio da técnica de repórter.

E se fosse necessário assim agir, Carmo teria feito bem. Como poucos, ele processava com facilidade as informações colhidas, era capaz de aprender por ouvir, por ler e por experimentar, porque a vida fez dele um experimenta-dor constante, desde a célebre viagem de Patos a Formosa, nos idos dos primeiros anos da década de 20, até as inúmeras profissões exercidas, desde peão de eito, carpinteiro, dentista prático e ourives, até aquela em que se notabilizou para, por ela, trazer ao público o fato de ter sido sempre um roceiro: a de jornalista.

Cronista, foi notável; articulista, temido; repórter, incontestável. Seria, claro, um grande escritor. E o foi. Valendo-me mais uma vez do texto de Nelly Alves de Almeida, vamos encontrar lampejos de poesia em sua prosa, como quando anota: "...os ramos da beira da estrada cochichavam com o ventinho da meia-noite", que Nelly comenta atribuindo ao diminutivo a conotação de vento brando e a cochichar o som onomatopéico, enquanto dá ao substantivo ramos ação de ser animado. Nelly passeia, com a competência que todos conhecemos, pelos ricos meandros da linguagem de Carmo, vai da figuração à semântica, arrola inúmeros vocábulos e expressões ora criados, ora metamorfoseados pelo autor. Este seu estudo sobre Carmo Bernardes pode ser alvo de prosseguimento, resultando um excelente dicionário de termos regionais imortalizados pelo nosso romancista, somando-se em valor ao Dicionário do Brasil Central, de Bariani Ortêncio.

Do estudo de Moema de Castro e Silva Olival, a menina que cresceu nesta casa, destaquei as observações em torno do panfletário Carmo. Ao descrever o camaleão, por exemplo, ele diz ser "...espécie de iguano, composto com uma gravata borboleta no garganete, que passa a insetos e tem a virtude de tomar a cor das vizinhanças em que se encontra. Essa adição ele aprendeu com os políticos" (Reçaga). No texto, "passa a insetos" equivale à mutação semântica das palavras segundo o linguajar roceiro: "passar a", o mesmo que "viver de".

Em Jângala, o livro da polêmica, pois que o autor incinerou todos os exemplares que conseguiu alcançar como forma de denunciar o desinteresse dos editores quanto à revisão, o que comprometia seriamente o teor de sua obra, e que teve a segunda edição carinhosamente finalizada pelo acadêmico Jacy Siqueira, Carmo suprimiu um capítulo e acrescentou outros quatro. Moema Olival lamenta a supressão do capítulo em que denuncia: "O que nos dói fundo na alma é lembrar que a catástrofe se consumava sem que a imprensa, as autoridades, os intelectuais, a Igreja, a Ordem dos Advogados fizessem a mínima manifestação, denunciando a catástrofe. Era como se não estivesse acontecendo nada". Esse texto é da primeira edição, e faço coro: lamentável que tenha sido suprimido.

Mas a riqueza do estudo da professora Moema Olival reside na comparação entre August de Saint-Hilaire e o nosso Carmo. Vejamos o texto da nossa querida professora:

"Fico pensando. Se sua obra (a de Saint-Hilaire) é considerada documento de primeira importância sobre as condições da vida e os costumes do Brasil, durante a primeira metade do Século XIX, condições que para certas regiões do interior ainda são quase as mesmas, por que não valorizarmos fato congênere, ou quase, praticado por brasileiro nato, escritor-sertanista profissional, com laivos de cientista, ainda com o mérito de documentar — fato valorizado pela nossa época — um estágio da ecologia que pode estar em extinção? Seu grito de protesto, (...), não será uma patente a ser registrada? Será que é lei inalterável que certos estudos, sendo feitos por pessoal da casa, só se valorizem com o tempo? Quando não há mais tempo?".

Lamentavelmente, Professora! E esta é uma realidade que precisamos mudar. Façamos dos nossos textos instrumentos de sustentação das opiniões e armas de reforma da sociedade e das mentes. Certo que não devemos ser xenófobos, mas tampouco xenófilos a ponto de renegarmos o que temos de valor pela exaltação do que nos é proposto com a simpatia de quem vende, e, ao vender, se faz belo, simpático, indispensável.

Volto ao início para recordar o menino ledor incorrigível de histórias de heróis. Mas para mim, o ginasiano que fui, os heróis não eram mais cavaleiros salvadores de mocinhas indefesas, nem me encantava mais com casos de guerras, de combates e valentias de fardas. Encantei-me, desde aqueles tempos, pela força das palavras, escritas ou faladas. Não seria difícil encontrar em Carmo Bernardes um ídolo naqueles turbulentos anos pós 64. Como também seria fácil identificar em Moisés Santana o exemplo de coragem e perseverança que fazem dos homens não apenas itens de recenseamento, mas verdadeiras referências na História.

Assim é que chego a esta Casa de Cole-mar Natal e Silva, para o convívio das senhoras e dos senhores de letras da minha terra, com a humildade dos que pedem licença para entrar, mas também com o orgulho de quem foi aceito em seu recinto. Regozija-me estar no mesmo espaço de Ursulino, Lygia, Kléber, Getúlio Targino, Belkiss, José Dilermando, Modesto, Maria do Rosário, Benedicto Silva, Basileu, Alaor, Moura, César Baiocchi, Ramos Jubé, José Fernandes, Mário Martins, José Normanha, Mário Rizério, Leolídio, Jerônimo Geraldo de Queiroz...

A todos, meus agradecimentos pela acolhida; ao Brasigóis, muito especialmente, ele com quem desfruto o convívio das boas prosas desde longos anos e que teve a gentileza dessas palavras de boas-vindas.

Agradeço ainda aos que deixaram seus compromissos e o conforto de seu lares para este encontro na tardinha morna do verão no Planalto: meus companheiros de diretoria na União Brasileira de Escritores, meus parentes, colegas de trabalho em tantas e sofridas jornadas, meus queridos escritores, amigos e conselheiros que são.

À Mary Anne, companheira tolerante, porque não é fácil tolerar um poeta, e aos meus filhos Élia Maria, Fernando e Leonardo, mas principalmente ao Lucas, meu caçula, e ao Luiz Henrique, meu neto, eles que herdarão meus anos mais maduros.

E muito especialmente às funcionárias da Academia, pelo seu trabalho para que esta solenidade acontecesse, e à ASBEG, pelo apoio logístico, e à Márcia Guerreiro, da locadora de livros Lê Devolve, que patrocina o nosso chá nesta tarde. Que Deus nos ilumine!

 

 

 

 

 

 

30.10.2007