Luiz de Aquino
Discurso de posse
(Academia Goiana de Letras)
A cidade — era assim que a
chamávamos — não era mais que meia dúzia de ruas cascalhadas,
vermelhas, determinadas por casas humildes onde habitavam pessoas
igualmente humildes, além de uns poucos e austeros senhores que
jamais imaginávamos em mangas de camisa. Na praça, a única praça, o
maior edifício era a igreja, mutilada em uma das torres, presidindo
o largo onde, poucos anos antes, um jovem prefeito começara a
construir o jardim. Abortado o projeto pela redemocratização que se
seguiu ao término da Segunda Grande Guerra, ficou apenas um
calçamento em quadrado, já delineadas as alas de travessia.
Aquele começo de urbanização
do único logradouro público de convívio e lazer — início inevitável
de dezenas de novas famílias e que se resumia ao quadrado de
cimento, postes ornamentais e mudas crescentes de fícus em cada
canto — é o cartão-postal que mais evoca a infância na remota e
esquecida Caldas Novas das boas imagens. O despertar para o turismo
nos anos 20 de mim, ou, se preferirem, a casa do tempo que vai de
1965 a 1975, foi significativo. Amadureceu o homem, transfigurou a
cidadela.
Hoje, a lembrança dos anos
verdes não confere com o cartão-postal que lhe deveria equivaler. As
lembranças da paisagem são remotas. Ficou o recordar do modo de
sentir, do jeito de crescer. Há a lembrança das histórias contadas
por minha mãe e que serviam para evocar o sono, um livro de páginas
amareladas e capa dura, os Contos da Carochinha lidos com voz de
acalanto, o beijo na testa, a oração de pedir que Deus nos
protegesse e de esperar perdão pelo dia de alegrias, como se fosse
pecado ser criança e feliz.
Desde os mais tenros anos,
os acordes em saraus musicais e suas inevitáveis conseqüências, as
serenatas, mostravam a carícia dos versos, vestidos em vestes as
mais nobres, quais sejam as linhas melódicas. Era ainda um tempo de
reviver preciosidades de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré,
Zequinha de Abreu, Noel Rosa e Lamartine Babo, mas sem desprezar as
novidades, e a novidade mais interessante era Luiz Gonzaga,
cantando versos de Humberto Teixeira.
A esse ambiente, atribuo a
razão de fugir das escalações para o joguinho de bola ao lado da
igreja, preferindo dedicar-me a um novo e solitário passatempo, a
leitura de imensas pilhas de gibis, descobertos entre os tesouros do
primo Rogério, estudante interno em Araguari. Aquele acervo me
convenceria, anos depois, que seu dono não teria sido um aluno
0brilhante, mas sempre o respeitaria por ser o responsável, entre
outras qualidades e valores morais, pelo prazer descoberto do
manuseio dessas coisas feitas em papel e tinta, pelas inebriantes
viagens pelo desconhecido e pelo inusitado a partir das páginas dos
livros.
Tanta delonga sobre a
infância para tentar justificar o ofício de escriba, a qualidade que
me permitiu a sobrevivência nesta terra em que o berro do boi e a
extensão monótona dos arais e dos vergéis valem mais que o cultivo
das letras.
Acredito nas letras e nas
mulheres e homens de letras. E essa crença remonta aos anos dos
primeiros aprendizados. Sou do tempo em que estudar os versos era
indispensável, mas versejar era considerado uma prática afeminada.
Nos primórdios do curso ginasial, no sempre amado Colégio Pedro II,
questionava esse conceito ao observar que os versos que nos davam
de beber foram, em sua quase totalidade absoluta, criados por
homens. E homens que tiveram força na história e geraram famílias
que deles se orgulhavam. Já naquela época, no chacoalhar do trem de
todos os dias a caminho do colégio, o ritmo das rodas duras sobre os
rijos trilhos e o jogar inquieto dos vagões insinuavam versos.
Imaginava-me Bandeira a criar a onomotopéia: "Café-com-pão,
café-com-pão, café-com-pão... Voa fumaça, corre cerca, ai, seu
foguista, bota fogo na fornalha que eu preciso muita força, muita
força, muita força..."
Sim, o menino precisava
força. Não a força dos tenazes conquistadores de espaços
geográficos, nem a força dos que erguem obras físicas ou constroem
impérios. Geógrafo de formação, parece que nasci para historiar. E
como a força de que precisava não era para construir maravilhas da
engenharia, o jornalismo foi crescendo como opção e prazer,
tornando-se profissão pouco após ter vindo a lume meu livro de
estréia.
Leitor de colunistas como
Adalgiza Nery, Stanislaw Ponte Preta e Nelson Rodrigues, em tempos
da vivência adolescente na velha capital federal, encontrei em
Anatole Ramos e Carmo Bernardes meus preferidos após o retorno ao
Planalto Central, ambos cronistas no semanário Cinco de Março,
depois no matutino O Popular, teimosos em contestar o regime,
hábeis em dizer pensamentos em letras de forma de modo a engambelar
os censores.
Com o tempo, aprenderia a
apreciar outros notáveis homens de letras de nossa terra, em textos
de jornais e de livros, e vou restringi-los aos membros desta Casa
para não fazer desta peça, escrita para a fala, um enfadonho
desfilar de nomes a que sou grato pelo bem que me fizeram ao
espírito e pelo aprendizado. Fiquemos, pois, em Bariani, Eli,
Bernardo, Castro Quinta, os irmãos Mendonça Teles, meu velho amigo
Coelho Vaz, meu quase irmão Brasigóis, Eliézer Penna — meu editor no
já citado Cinco de Março —, Asmar e Bittencourt — companheiros na
Folha de Goiaz — e Eurico Barbosa — com quem convivi no Diário da
Manhã.
A Carmo Bernardes atribuo o
ato da provocação para que me oferecesse ante as senhoras e os
senhores membros desta Academia. Demorei-me a tomar a decisão, e o
fiz no momento em que vagava a Cadeira número 8, do meu velho
mestre José Sizenando Jayme, sendo vencido pelo notável Isócrates de
Oliveira, vigário de minha infância na pacata Caldas Novas. Naquela
disputa, uma certeza nos norteava — assegurar um lampejo de
continuidade na Cadeira, pois que o eleito, como seu antecessor,
nasceram em Pirenópolis, cidade natal de meu pai e meu torrão
preferido pelo sedimento das origens.
Acredito que o fato de vir a
ocupar a Cadeira número 10, a mesma que ocupava Carmo Bernardes,
cumpre uma ação de destino. Acompanhei seus escritos de resistência
desde os primórdios de 1963; preocupei-me quando de seu exílio nas
lezírias do Araguaia, nos tempos tumultuados do golpe militar de
1964, e pude rir, feliz, ao ouvir que o general Riograndino Kruel,
um dos líderes do sectário golpe, o teve por guia de pescaria, sem
saber de sua vida. Sozinhos, na solidão dos lagos piscosos do
Bananal, no limitado espaço de uma canoa, tendo entre ambos não
mais que varas, linhas, iscas e molinete e uma espingarda. Talvez
providencial, fosse Carmo sanguinário.
Carmo Bernardes trazia na
índole a tradição do bom mineiro, o homem da terra, o caipira, na
mais pura das acepções do termo, o homem silencioso, observador,
que pisa com segurança o terreno porque sabe que o mato reserva
surpresas ao pé descalço. Mas corajoso o bastante para expor sua
opinião, espalhar ao mundo sua indignação e mostrar aos que se
julgam poderosos que o poder de verdade é maior que a chance que
conseguem alguns de manipular o patrimônio público a bel-prazer. A
estes, a história reserva a verdade de suas naturezas; a homens
como Carmo, fica assegurado o lugar que lhes cabe por direito de
vida, qual seja o reconhecimento e o respeito de seus pósteros.
Não gostaria de biografá-lo;
muito já se escreveu sobre ele.
Não tenho estatura crítica
para apreciar sua obra, e isto já se fez no âmbito acadêmico, até
mesmo em redações de mestrado e teses de doutorado. Nunca fui mais
que um mero leitor , aprendiz de sua verve. Com ele, em suas
crônicas e artigos da década de 60, tive excelentes lições de
jornalismo — a principal delas talvez seja a prática que cultivo de
não pôr em letras de forma o nome de quem não o mereça.
Por patrono, tenho o também
jornalista Moisés Augusto de Santana. Vilaboense, nascido no dia 7
de fevereiro de 1879, quis ser militar. O temperamento irrequieto e
a indisciplina de homem livre fizeram-no andarilho. Sua biografia,
sintética e muito clara no texto de Humberto Crispim Borges, em seu
Retrato da Academia Goiana de Letras, ou a homenagem que lhe
prestou o mesmo Crispim, em discurso nesta Casa há exatos 24 anos,
mostra-nos um jovem autêntico, capaz de vaiar o Presidente da
República e o Ministro da Guerra, fato que o afastou do corpo de
alunos do Preparatório para a Escola Militar. É aceito depois, para
novamente ser desligado por novo ato de indisciplina, sendo
integrado à tropa e provavelmente mandado para o Nordeste,
tornando-se combatente aos fanáticos de Antônio Conselheiro em
Canudos. E é o próprio Crispim quem, no citado discurso, lança
dúvidas sobre este provável evento. Em novembro, dá baixa do serviço
do Exército e se torna escrivão de polícia em São Paulo.
A partir de então, sua vida
é uma infindável seqüência de registros anuais. Em 1898, inicia o
curso de Direito e se torna jornalista, restaurando o periódico A
Nação, mas em 1899 já se realiza nova mudança de moradia ao
transferir-se para Belém do Calvário, no interior de São Paulo.
No último ano do século,
retorna a Goiás, fixando-se em Santana das Antas, depois de algumas
andanças. É dele a autoria do novo nome do logradouro: Anápolis. Foi
Procurador de Partes, casou-se com Cassiana Alves de Sousa e se fez
professor e secretário do Conselho Municipal. Exerceu o cargo de
Intendente, criou uma seção no jornal Lavoura e Comércio, de
Uberaba, com o título de Vida goiana. Elegeu-se deputado por
Pirenópolis, Corumbá, Antas e Bela Vista, mas não exerceu o mandato.
Em 1905, muda-se para Vila
Boa. Interinamente é Procurador da República e começa, então, um
ritmo de vida que o faz mudar de cidade a cada ano, sempre
envolvido nas lides jornalísticas. Em Catalão, funda o Sul de Goiás.
Volta à capital do Estado e é Secretário de Polícia. Deixa o cargo
e se muda para Curralinho (Itaberaí); depois, Morrinhos, onde advoga
e codifica as leis municipais. Vai morar em Inhumas — vale
registrar que é também dele o novo topônimo da antiga Goiabeira —,
volta à capital, onde colabora no jornal A Imprensa. É diretor do
recém lançado Estado de Goiás e inicia uma sistemática campanha
contra o presidente Urbano Gouveia dos Santos, que renuncia.
Promotor público da Capital e professor de Pedagogia e Metodologia
na Escola Normal. Abandona Vila Boa e volta a Catalão, em seguida
vai para Uberaba, lança o Brasil Central.
A partir daí, ele mora em
Barbacena, Uberabinha (hoje, Uberlândia), volta a Barba-cena, outra
vez Catalão, outra vez em Uberaba, Ribeirão Preto, Sacramento, Santa
Rita do Paranaíba (que mais tarde seria Itumbiara) e Bonfim (que
hoje é Silvânia). Nesse período, que vai de 1913 a 1921, cria,
dirige e colabora em vários periódicos, funda o que se pode chamar
de o embrião do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás — a
Sociedade Goiana de Geografia, em Santa Rita do Paranaíba, em 1918.
Com o nome de Sociedade Goiana de Geografia e História, instala-a em
Bonfim em 1921 e nesse mesmo ano, a 22 de outubro, a Sociedade ganha
sede também no Rio de Janeiro.
Em 1922, volta a morar em
Uberaba, nomeado bibliotecário da Câmara. Por ter publicado versos
de sua autoria, mordazes, alusivos ao presidente da Câmara, o médico
João Henrique Sampaio Vieira da Silva, foi por este interpelado na
redação do Lavoura e Comércio, quando foi ferido a bala, falecendo
na noite do dia seguinte.
Meu primeiro contato com
referenciais de Moisés Santana, além das evidentes homenagens para
a posteridade, como nome de logradouros e estabelecimentos de
ensino, se dá em 1965, ao ter seu neto homônimo como colega de
trabalho, tanto como agentes de venda do livreiro Paulo Araújo
quanto como aprendizes de bancários, admitidos por concurso, ao
tempo em que essa era a prática para admissão nas instituições do
Estado de Goiás. Moisés Santana Neto vinha de ser punido pelo Ato
Institucional número 1, o que lhe interrompeu a carreira de oficial
da Polícia Militar. Mais tarde, juiz de direito, seria alvo do Ato
Institucional número 5, para depois ser reintegrado e tornar-se o
mais polêmico de todos os que usaram a toga da magistratura,
repetindo a sina do avô, sempre afrontando o arbítrio pela Lei e a
Justiça. Depois, já bancário, por várias ocasiões atendi o
desembargador Paranaíba Pirapitinga Santana, o elo de ligação entre
os dois Moisés.
Sobre Moisés Augusto de
Santana, evoco a frase do escritor Coelho Neto: "Foi o polemista
mais audaz e vigoroso de seu tempo".
Inaugurou a Cadeira 10 o
ilustre vilaboense Albatênio Caiado de Godoy, homem de letras, de
leis e também de ofício jornalístico. Destacou-se por intensa vida
pública, ocupando os mais destacados postos e cargos de relevância
e deixando-nos marcas de sua passagem por este mundo na forma de
entidades e instituições como a Faculdade de Direito de Goiás e a
Associação Goiana de Imprensa, além do Instituto Histórico e
Geográfico e da Academia Goiana de Letras, além de uma prole de
valor, pessoas destacadas da sociedade goiana, seguidores à altura
de sua vida.
Volto a Carmo Bernardes.
Recordo a minha alegria de jovem professor no Ginásio Dom Abel,
localizado próximo da famosa Casinha Verde da Macambira, nos idos de
1968 a 1970, quando vislumbrei entre os alunos três das cinco filhas
do meu ídolo, um dos cronistas que eu mais apreciava nas lides da
imprensa goianiense. Por esse tempo, deparei-me, num ônibus, com a
inconfundível fisionomia do autor de Rememórias. Era curto o
percurso, da Praça Cívica à Praça Universitária, e o tempo rápido.
Puxei conversa e a emoção foi ainda maior, pois o tarimbado escriba
tinha referências minhas, naturalmente tecidas pelas filhas
estudantes. Conversamos rapidamente, e quando me despedi, ouvi
dele:
— Não deixa passar sem
saber.
A partir daí, encontrava-o
esporadicamente pela calçada defronte ao Grande Hotel, em companhia
de intelectuais e outros indesejados pelo regime. Outras vezes,
via-o sentado em algum banco a olhar os jardins da Avenida Goiás
(ainda era o tempo dos jardins que agora que-remos de volta).
Seguramente, preparava a crônica seguinte ou algum texto de suas
memórias, sempre mostradas em livros na forma de romances que
atravessaram primeiro as divisas do Estado, para depois se banhar no
Atlântico e beijar terras de além-mar, até ser premiado em Cuba. Ou
ainda na barraca da Feira de Artesanato, onde os escribas marcavam
presenças. Carmo só faltava por conta de alguma pescaria.
Sempre irreverente, bom de
conselhos. Mostrava-lhe algum escrito, ele lia silenciosa-mente; se
gostasse, não opinava, mas qualquer ressalva era registrada na hora,
sem alarde, de modo tão sutil que o comum era ninguém perceber que
a conversa era uma sugestão literária de importância para o pretenso
escritor. Mostrava-lhe meus textos em prosa, os versos ficavam para
eu perturbar algum poeta.
Lembro-me de quando lancei O
Cerco e Outros Casos, em 1978. Ouvi dele um comentário breve, como
era de seu feitio:
— Você jogou em terra uma
gota de óleo. E vai se surpreender com o tempo, vendo-a crescer...
Muito tempo depois, soube
por sua filha Ana Maria que a imagem fora usada para referir-se a
si próprio na primeira noite de autógrafos, em 1966, ao lançar Vida
Mundo. Em dezembro de 1994, ao entrevistá-lo para o Diário da
Manhã, ele próprio rememorou a parábola da mancha de óleo. Aquele
foi um grande momento, iniciado com sua garantia de haver encerrado
a carreira de escritor. Ao final da entrevista, obtive dele a
confissão de que trabalhava, com a dedicação de sempre, uma obra
sobre as lezírias — perspicaz, ele notara uma carência
bibliográfica sobre tão importante ambiente ecológico, os banhados
marginais aos rios.
Guardo, entre meus recortes,
artigo de Carmo Bernardes no jornal O Popular, dos idos de 1977, sob
o título Réquiem. O artigo era alusivo à morte do meu avô Luiz de
Aquino Alves, aos 78 anos, em Pirenópolis, texto que o cronista
conduziu com a maestria de sempre, comparando seu desaparecimento
com a queda de uma das duas palmeiras que ornamentavam a Matriz de Pirenópolis. Carmo afirmava que os pirenopolinos estavam tristes por
ambos os motivos. Escrevi-lhe uma carta, agradecendo o artigo e
identificando-me como neto do homenageado. Eu estava surpreso, pois
nem antes, nem depois, Carmo Bernardes comentaria comigo qualquer
relação de amizade havida entre ele e meu avô, mas seu artigo
deixara evidente que ele conheceu o velho maestro com relativa
intimidade.
Falar de Carmo Bernardes é
praticamente impossível sem o referencial marcante que é Estudos
sobre quatro regionalistas, da consagrada e sempre admirada Nelly
Alves de Almeda, e em A voz do sertão: realidade e mitos — estudo
de rara felicidade, da lavra da também tão querida Moema de Castro e
Silva Olival, ambas membros desta Academia.
Nelly Alves de Almeida, ao
estudar a obra do meu antecessor, enalteceu-o no inevitável: a
linguagem típica, carregada da força criativa, que, segundo a
autora, está ligada à "fala a um tempo forte e tranqüila, simples e
ousada" que herdou da mãe, Dona Sinhana. Essa a linguagem que ele
fez em letra de forma, característica inevitável de seu texto
inconfundível, puro, autêntico. Em Carmo Bernardes, ao contrário do
que se nota em outros regionalistas, a linguagem é a dele, e não a
que se registra do ouvir, do gravar aos poucos e transcrever. Para
Carmo, essa era a linguagem autóctone, era passar da cabeça para o
papel sem o intermédio da técnica de repórter.
E se fosse necessário assim
agir, Carmo teria feito bem. Como poucos, ele processava com
facilidade as informações colhidas, era capaz de aprender por
ouvir, por ler e por experimentar, porque a vida fez dele um
experimenta-dor constante, desde a célebre viagem de Patos a
Formosa, nos idos dos primeiros anos da década de 20, até as
inúmeras profissões exercidas, desde peão de eito, carpinteiro,
dentista prático e ourives, até aquela em que se notabilizou para,
por ela, trazer ao público o fato de ter sido sempre um roceiro: a
de jornalista.
Cronista, foi notável;
articulista, temido; repórter, incontestável. Seria, claro, um
grande escritor. E o foi. Valendo-me mais uma vez do texto de Nelly
Alves de Almeida, vamos encontrar lampejos de poesia em sua prosa,
como quando anota: "...os ramos da beira da estrada cochichavam com
o ventinho da meia-noite", que Nelly comenta atribuindo ao
diminutivo a conotação de vento brando e a cochichar o som
onomatopéico, enquanto dá ao substantivo ramos ação de ser animado.
Nelly passeia, com a competência que todos conhecemos, pelos ricos
meandros da linguagem de Carmo, vai da figuração à semântica,
arrola inúmeros vocábulos e expressões ora criados, ora
metamorfoseados pelo autor. Este seu estudo sobre Carmo Bernardes
pode ser alvo de prosseguimento, resultando um excelente dicionário
de termos regionais imortalizados pelo nosso romancista,
somando-se em valor ao Dicionário do Brasil Central, de Bariani
Ortêncio.
Do estudo de Moema de Castro
e Silva Olival, a menina que cresceu nesta casa, destaquei as
observações em torno do panfletário Carmo. Ao descrever o camaleão,
por exemplo, ele diz ser "...espécie de iguano, composto com uma
gravata borboleta no garganete, que passa a insetos e tem a virtude
de tomar a cor das vizinhanças em que se encontra. Essa adição ele
aprendeu com os políticos" (Reçaga). No texto, "passa a insetos"
equivale à mutação semântica das palavras segundo o linguajar
roceiro: "passar a", o mesmo que "viver de".
Em Jângala, o livro da
polêmica, pois que o autor incinerou todos os exemplares que
conseguiu alcançar como forma de denunciar o desinteresse dos
editores quanto à revisão, o que comprometia seriamente o teor de
sua obra, e que teve a segunda edição carinhosamente finalizada pelo
acadêmico Jacy Siqueira, Carmo suprimiu um capítulo e acrescentou
outros quatro. Moema Olival lamenta a supressão do capítulo em que
denuncia: "O que nos dói fundo na alma
é lembrar que a catástrofe se consumava sem que a imprensa, as
autoridades, os intelectuais, a Igreja, a Ordem dos Advogados
fizessem a mínima manifestação, denunciando a catástrofe. Era como
se não estivesse acontecendo nada". Esse texto é da primeira edição,
e faço coro: lamentável que tenha sido suprimido.
Mas a riqueza do estudo da
professora Moema Olival reside na comparação entre August de
Saint-Hilaire e o nosso Carmo. Vejamos o texto da nossa querida
professora:
"Fico pensando. Se sua obra
(a de Saint-Hilaire) é considerada documento de primeira importância
sobre as condições da vida e os costumes do Brasil, durante a
primeira metade do Século XIX, condições que para certas regiões do
interior ainda são quase as mesmas, por que não valorizarmos fato
congênere, ou quase, praticado por brasileiro nato,
escritor-sertanista profissional, com laivos de cientista, ainda com
o mérito de documentar — fato valorizado pela nossa época — um
estágio da ecologia que pode estar em extinção? Seu grito de
protesto, (...), não será uma patente a ser registrada? Será que é
lei inalterável que certos estudos, sendo feitos por pessoal da
casa, só se valorizem com o tempo? Quando não há mais tempo?".
Lamentavelmente, Professora!
E esta é uma realidade que precisamos mudar. Façamos dos nossos
textos instrumentos de sustentação das opiniões e armas de reforma
da sociedade e das mentes. Certo que não devemos ser xenófobos, mas
tampouco xenófilos a ponto de renegarmos o que temos de valor pela
exaltação do que nos é proposto com a simpatia de quem vende, e, ao
vender, se faz belo, simpático, indispensável.
Volto ao início para
recordar o menino ledor incorrigível de histórias de heróis. Mas
para mim, o ginasiano que fui, os heróis não eram mais cavaleiros
salvadores de mocinhas indefesas, nem me encantava mais com casos de
guerras, de combates e valentias de fardas. Encantei-me, desde
aqueles tempos, pela força das palavras, escritas ou faladas. Não
seria difícil encontrar em Carmo Bernardes um ídolo naqueles
turbulentos anos pós 64. Como também seria fácil identificar em
Moisés Santana o exemplo de coragem e perseverança que fazem dos
homens não apenas itens de recenseamento, mas verdadeiras
referências na História.
Assim é que chego a esta
Casa de Cole-mar Natal e Silva, para o convívio das senhoras e dos
senhores de letras da minha terra, com a humildade dos que pedem
licença para entrar, mas também com o orgulho de quem foi aceito em
seu recinto. Regozija-me estar no mesmo espaço de Ursulino, Lygia,
Kléber, Getúlio Targino, Belkiss, José Dilermando, Modesto, Maria
do Rosário, Benedicto Silva, Basileu, Alaor, Moura, César Baiocchi,
Ramos Jubé, José Fernandes, Mário Martins, José Normanha, Mário
Rizério, Leolídio, Jerônimo Geraldo de Queiroz...
A todos, meus agradecimentos
pela acolhida; ao Brasigóis, muito especialmente, ele com quem
desfruto o convívio das boas prosas desde longos anos e que teve a
gentileza dessas palavras de boas-vindas.
Agradeço ainda aos que
deixaram seus compromissos e o conforto de seu lares para este
encontro na tardinha morna do verão no Planalto: meus companheiros
de diretoria na União Brasileira de Escritores, meus parentes,
colegas de trabalho em tantas e sofridas jornadas, meus queridos
escritores, amigos e conselheiros que são.
À Mary Anne, companheira
tolerante, porque não é fácil tolerar um poeta, e aos meus filhos
Élia Maria, Fernando e Leonardo, mas principalmente ao Lucas, meu
caçula, e ao Luiz Henrique, meu neto, eles que herdarão meus anos
mais maduros.
E muito especialmente às
funcionárias da Academia, pelo seu trabalho para que esta
solenidade acontecesse, e à ASBEG, pelo apoio logístico, e à
Márcia Guerreiro, da locadora de livros Lê Devolve, que patrocina o
nosso chá nesta tarde. Que Deus nos ilumine! |