Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Luiz de Aquino

 

poetaluizdeaquino@gmail.com

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Lívio Dantas

 

Maria Helena Nery Garcez

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

Luiz de Aquino

 

 


 

POEMA DA ACEITAÇÃO

 

Eu prefiro ficar de cá, cobrindo com as mãos a própria boca
para evitar microfonia.
Um dia, se me deixar levar, posso perder-me
e sofrer, porque nunca perco a noção do tempo.
Esta noite,
sonharei contigo e vou ver-te neste sonho
onde estivemos antes, há poucas horas,
porque o tempo te parece enorme num instante
e posso saber-te distante
uma eternidade entre duas doses.

A angústia, eu sei,
eu a criei
e me apego a ela.
A mágoa existe,
cresceu em meu peito
e não sou josés
porque não fui o primeiro nem serei último.
A dor, por mais profunda,
não te interessa: houve dores maiores
e não as senti em mim.

 


  

CHAVE DE LUA

 

Cantar é tão longe
como o encontro efêmero
num verso travesso
acontecido infeliz.

Cantar é tão doce
como o encontro esperado
e demorado
num pentagrama, dois por dois.

Cantar é a clave
de sol crescente
em fundo de lua
cheia de amor
perfeito pra nós.

Cantar é te ver
cantando esperanças
pros meus sentidos.

 

 


 

MUDANÇAS

 

Eu tenho uma vaga lembrança
deste prédio, desta casa.
Fui feliz aqui, eu sei,
mas me lembro pouco de ter estado aqui,
me lembro pouco de ter-te assim
tão próxima
e até de ter sido feliz.

Eu tenho uma vaga lembrança
de ter estado aqui
mas gosto de estar aqui.
E te convido para estar comigo
sempre
para estar comigo ao meu lado,
do meu lado,
onde estou daqui para sempre.


 


  

ALGUÉM, SE NÃO VIERES

 

Eu preciso que me olhes nos olhos
e decifres a angústia
que te atrai e me tortura.
Eu preciso te dizer certas coisas
que se calaram em mim quando te vi
na manhã imprevista e indecisa,
mas dizer estas coisas custa ânsias
incontroláveis.

Eu preciso de vez que te chegues a mim
e não me digas bom-dia
e nem me cobres os dias e noites
da nossa ausência.

Eu preciso de alguém
que converse comigo
no amanhecer.

 

 


 

PRECOGNIÇÃO

 

Gosto da vida e deixo
que a noite me vista
de escuro.

Nem sempre é de justo
mostrar-se às claras:
hoje sou como era
quando ainda sonhava
com o futuro.

Pode ser que ainda cresça,
mas é bom ser criança
de gris e de rugas.

 

 


 

HARMONIA

 

Essas mãos já se tocaram
antes
e se afagaram feito jeito
de criança sonolenta.


Essas mãos andaram juntas
muito tempo
e se desejaram tanto tempo.

Agora essas mãos se deram
de vez
e querem envelhecer
sempre unidas.

 

 


 

NÓS, POETAS

 

Repositórios de insultos
e estímulos, ou de que mais apelidem
clamores de ouvintes,
de poetas,
de leitores.
Adormecemos em nós imagens novas,
palavras velhas,
excitações momentâneas, pedras
de se edificar o tempo
até porque o tempo
semente de suaves copas,
frondes grávidas de ternas sombras.

Somos seiva de fartas florestas,
pastos de estelares insetos,
fontes de dessendentar noctívagos.

Poetas somos alma eterna
e corpo vívido de encantar sereias,
domar demônios,
amansar angélicos fantasmas
de nossas não menos etéreas
fantasias do quotidiano.

(Talvez desvios das certezas falsas,
de condutas ditas certas.
Apesar dos dias).

 

 


 

RONDÓ DE MENINO POBRE

 

Era caldo de manga madura
correndo amarelo no peito pelado.
Era bola de meia no meio da rua
ou a tarde de sol na beira do córrego
– era assim que eu era criança.

Eram tardes inteiras fechado em casa,
a cara no meio da meia-janela,
vendo passar devagar pela tarde
boiadas inteiras de bois curraleiros
– era assim que eu era criança.

Era um tal de acordar muito cedo,
beber leite quente e pedir a bênção à mãe,
correr para a escola e dar a lição todinha de cor
ante a brabeza de Dona Vanda professora
– era assim que eu era criança.

E quando chegava o tempo das chuvas,
as ruas desnudas perdiam o pó e tudo era barro.
Eu fazia barquinhos de jornal e construía pontes
sobre os rios miúdos e torrentosos
– era assim que eu era criança.

Não havia televisão nem brinquedos eletrônicos,
astronauta era mentira de livro de ficção.
Nos tempos de mais calor, eu caçava vaga-lumes
na escuridão das noites de minha infância
– era assim que eu era criança.

Um dia, cresci depressa.
Criei barba, falei grosso, troquei as calças curtas
por roupas de gente grande.
A escolinha se acabou e aprendi contas maiores.
A língua mudou de jeito, diziam “rau ariú, um beijo,
ai loviú” – virei rapaz duma vez.

Não mais o cascalho das ruas, não mais.
Não mais a lama das chuvas,
futebol no meio da rua, coalhada antes de dormir.
Não mais brincadeira de pique, estilingue,
finca ou carrinho; não mais banhos de córrego
nem medo de chinelo velho – chantagem feito ameaça
dos pés para as mãos de mamãe.

Hoje, a barba grisalha e os filhos não mais crianças,
dói fundo no fundo do peito
a saudade do menino magricela
– era assim que eu era criança.

 

 


 

TEMPO E DISTÂNCIA

 

Poesia chegando lenta
nos anos doces da infância.

Poesia cantada
era rima afagada
em cordas e acordes
- feliz serenata!

Meu berço natal,
a mínima aldeia das águas termais
- meu sempre Goiás.

Poesia eram versos
das valsas boêmias,
ingênuas canções:
- acalentantes violões

Eram tais os anos da infância:
escola, igreja, rua,
cascalho, a terra nua,
frutas no pé, o córrego manso,
folguedos, traquinagens,
afago de mãe, brabeza de pai.
- Lembrar traz saudades, ai!

Irreversíveis os anos, triste crescer.
Adolescência, espinhas,
colégio severo, leitura proibida,
olhar de malícia, menina de fita,
as pernas à mostra, o sangue a ferver.

Dor de saudade, a família distante,
o uniforme, as provas, o trem escaldante,
o ritmo das rodas de ferro
nos trilhos de ferro e o canto,
o canto cantante
gritando poesia:
falta o verso,
falta o verso,
falta o verso...

"Eu era feliz e não sabia",
cantava Ataulfo Alves.
Poesia entrava discreta
na mente do negro poeta.

(Difícil distinguir negro e poesia,
somos Brasil de amor e de grei).

Fiz-me vate por amor e índole,
faço versos viandantes,
estrofes de rimas falsas,
poemas de amor e revolta.

Poemas meus, os dos tempos
do cantar amadas indiferentes,
poemas meus de fazer triste
a alvorada, de atormentar o pôr do sol.

Poemas de atrair amadas, poemas outros
de reconstituir romances. Poemas vários,
bem humorados, poemas amargos,
de grito e revolta ante o injusto,
o títere, o tirano, a fome e a dor
dos esquecidos.

Meus versos, andarilhos,
correram mundos,
molharam-se de mares.
Criaram asas, ganharam ares,
voaram o tempo.

Ofertei-os a amigos antigos,
a novos pares, leitores novos.
Escrevi-os em guardanapos de bares,
cadernos de amigos, paredes e tetos
das casas boêmias.

Em livros, tornei-os solenes,
conquistei notícias, recitei-os nas rádios,
nas tevês e em palanques.
Vendi-os de mão em mão,
de porta em porta, de bar em bar.
- Voltaram a mim, em cartas e carinhos.

O trote do trem pedia poesia,
o peito infante, arfante, amando,
musas meninas espargindo alegria.
Alma criança, gestos marotos,
desejo nascente:
- Saudade é musa exigente.

Os livros correram distâncias,
ganhei carícias de jornais longínquos.
No éter, viajei satélites
artificiais, tornei-me "bites" na Internet.
Meus versos navegaram
além dos mares, das estradas, das matas.
- Retornam sempre sob novos comentários.

Viajam longe, muito longe, meus versos.
Deixam a esteira de espuma
no mar virtual de ondas ininteligíveis
para o poeta geógrafo.
Mas sonho vê-los história
no tempo que me suplante,
conduzindo além do tempo
a poesia no transpor milênio!

 

 


 

ACHAMENTO DA TERRA FÉRTIL EM MAR DE CALMARIA

 

Mar ignoto, mar de tormentas,
mar de esperanças, mar de outros sonhos.
Mar de trazer especiarias,
mar de fazer calmaria
e o porto que fica onde fica Maria.

O mar está calmo,
a esquadra se deixa a oeste,
sem medo e sem ventos
(em Tordesilhas de Espanha
a herança do mundo
fica de meio para Portugal).

Vera Cruz, Santa Cruz,
gentios de pele morena,
uma gente pequena,
altiva e sem roupas,
vergonhas à mostra...
Ah, Maria que ficou no porto, no Tejo!
São tantas as semanas
de mar e de homens,
e são dóceis as gentes
nas terras ingentes...

Uma ilhota em mar próximo,
uma cruz de Jesus,
o grão capelão e a Missa Sagrada
sagrando o achado
da grande ilha de Vera Cruz.
(os gentios, lá longe).
Outra Missa haverá. Aos índios,
água benta e batismo
e a forte mão portuguesa
de El-Rei Dom Manuel,
Primeiro e Venturoso.

A terra, "em nela se plantando,
tudo dá", e nelas, nas índias,
também se há de plantar.

Mas havemos de ir, descobrir outras terras,
converter outros povos
e volver à mãe-pátria,
trazendo alforjes com especiarias
e muita saudade
de novas marias.

 

 


 

RIO QUENTE E EU

 

Na minha terra existe um rio.
Pequeno curso, pequeno caudal
que deságua límpido
nas turvas águas do Piracanjuba.

Corre alegre, borbulhante,
mantendo constante
a água clara
a trinta e sete graus.

Persistente, meu pequeno Rio Quente!
Foi ele a imagem primeira
do que chamei de rio.

Mas não é ele, ainda,
um rio de verdade. É ribeirão;
e na cidade (pouco mais que vila),
o Córrego de Caldas,
miúdo e manso: hospitaleiro
para o banho, farto de lambaris
de ingênuas pescarias.

Rio mesmo
é o Corumbá, violento e forte.
Vem do norte
e reforça o Paranaíba,
que nasce em Minas.

Rios são assim, feito a vida. Tímidos
primeiro, crescentes depois.
E viram grandes
quando grandes somos também
tal como grande nos parece o mundo.

Saudade de ser córrego:
hospitaleiro e manso.

 

 


 

TRÊS SINAIS DE DEVOÇÃO A VILA BOA DE GOIÁS

 

I – Fetiche

Joguei na estrada
o peso incômodo de afazeres:
fiz-me despojado das angústias.

Vim ver a lua quase plena
despontar perto da cruz
na elevação de Dom Francisco.

Vim veloz, sobre rodas roçando asfalto.
Trouxe os pés de beijar as pedras das ruas
e os ouvidos de encantar-me a alma ao rumor do rio Vermelho.

II - O sol

O sol nas pedras (é manhã de agosto)
alegra o tempo de se contar histórias
e de se ouvir conceitos pela luz das letras.

Abri antenas
de sentir presenças
e escutar fuxicos.

Beijei o sol
no verde alegre das folhas
e no vivo das cores do ipê.

III - Cruz do Anhangüera

Cruz mortiça de madeira velha
na cruz das ruas. Logo ali,
Casa Velha da Ponte, no caminho do Rosário.

Cruz de bênçãos, velho madeiro que se tem de história
onde existiu em fé e taipa a Igreja da Lapa
que as águas do rio Vermelho levaram de volta ao barro.

Da Lapa, só lembranças.
E o sussurro ingênuo das águas
colhe bênçãos da velha cruz.

 

 


 

RIOS

 

Os rios são grandes,
visuais, palpáveis.
Alimentam, dão e permitem
a vida
e correm morosos
às vezes,
às vezes céleres
e só têm um destino.

Rios são valsas Danúbio,
poemas Tâmisa e Sena
e Reno e Pó,
são lendas Amazonas
e esperanças São Francisco,
Araguaia e Xingu.
E ainda certezas Grande,
Paraná, Tocantins.

Rio língua e carícia
Tejo sêmen de história Brasil.

Mas há um rio no fundo
dos olhos
e à tona de todas as lembranças.

Rio de imagens e gente feliz,
Rio samba, futebol e cachaça,
Rio trabalho, escolas, ternuras
e lembranças as mais doces
dos anos adolescentes.

Conhece o Rio de Janeiro?


Ao Rio de Janeiro, minha cidade-adolescência

 

 


 

ISRAEL, TERRA E POVO

 

Trouxe as mãos de plantar um pinho.
Do pinho se faz violão
de cantar canções, encantar corações,
afagar saudades.
Ouvi doutores, vi lugares;
o sagrado, sempre presente.

Provas de incontáveis milagres:
naveguei na Galiléia,
molhei-me em águas do Mar Morto.
Senti Jesus.

Com o adeus,
deixo o canto destes versos:
fulgores do coração
agradecido.

(Jerusalém, 13/04/97)

 

 


 

ESPUMAS

 

Um mar de verdes águas
sob azul e alvas nuvens.

Um mar de ondas ágeis,
assim o mar. Ágeis ondas ritmadas,
rompem-se no preâmbulo.

Correm léguas, feito eu;
feito línguas, lambem praias.
E beijam a terra, na carícia que se estende.

Feito um manto sobre a areia.

 

 


 

FILHOS

 

Tenho filhos: três os primeiros
que me são amigos por adultos
que são.
Mas tenho um filho pequeno
rebento extemporão
filho sabor de neto.
Ele me cobra carícias
que as tem
e palavras que dou de graça
e me faz surpreso por frases e coisas
que me chegam gratas.

Mas corre e sobe e desce
e exige e faz e recomeça
tudo
como se tudo se fizesse fácil

Ó, Lucas! Teu pai é cinqüentão!

 

 


 

BAILARINA

 

Corpo no ar, esguio e sólido
ciente de tudo o que lhe é de direito
e suave.

Corpo cuidado e saudável, ornado de vestes.
Base de concretas e delicadas
sapatilhas.

Cabeça dotada,
isenta de dores e trauma,
apta ao domínio do espaço.

Ágil, leva o corpo ao ritmo
e às magias da trilha melódica
e faz das artes casamento
íntegro, impecável, perfeito!

Por momentos eternos
o baile acontece,
e tudo em volta se envolve
de encanto e leveza.

Os dias, as horas,
tudo o que vem depois e como foi antes,
volta à rotina, conduz a menina à dor do real.
É preciso sobreviver.

Mas para viver, há que ser arte!

 

 


 

QUOTIDIANO

 

Muitas placas
de sinais convencionais:
“Siga em frente”, “Não buzine”,
“sanitário feminino”...
– Olha o rapa!
– Olha o guarda!
(...agora é tarde!)


Paisagem panorâmica,
música mecânica,
concentração messiânica
para a compra eletrônica.

Azul-celeste, verde pálido,
marrom-glacê, vermelho cálido.
Mil ofertas, promoções:
preços bons, liquidações,
multiformas, multicores.

Shopping center, cor e forma,
tristes tempos colloridos.
É Natal, gritam reclames. Renovo
votos de ano-novo.
E os salários?, clama o povo,
clamam magos funcionários.

No andar superior,
ricas fotos panorâmicas
excitam apetites.
Róseo molho (micro-ondas),
sabor de frango
sobre arroz insosso:
– Parece plástico!

 

 


 

A MOÇA CHEGANTE

 

Vi chegar a moça de preto
e era preto o que mais havia
entre as moças antes vindouras.

A moça chegante
sorria ofegante e dizia o nome
Anamélia
ante a poesia de anestesia
rebrotada ao som dos passos.

Ansiei a alvorada
para não doer mais.

 

 


 

FIM DE SEMANA

 

Nega, que bom! É sábado, é noite
Fechei o quiosque, não vendo mais nada
até o domingo virar segunda
outra vez.

Nega, que bom que é você,
esse cheiro de flor, esse cheiro
meu Deus!, esse cheiro de amor
esse cheiro de fêmea
chamando meus beijos,
meus dedos, meus olhos,
tudo de meu nessa pele sua.

Que bom que é cerveja, Nega, e é de noite
e é quase domingo
e é bom mais ainda
que a gente se ama.

É bom sermos nós.
Esta noite, Nega, a chuva refresca
e chove demais, de fazer corredeira,
entupir a sarjeta...

Nega! Nega!
Nega, meu bem!
Acorda! Será que esta noite
eu durmo de novo
com saudade d'ocê?

 

 


 

CHORAS. OU NÃO

 

Não chorar, por quê?
Dói a cabeça, a barriga dói,
cuido de mim.

Uma voz, de longe,
em fios de éter
declamou adeus. Doeu.

Não chorar não me faz feliz.
Nem triste.
Não chorar é parar
e pensar: cuido de mim.
Alvejo dentes, simplesmente,
com escova e espuma,
clareio a alma em orações
e ações.

Não chorar. Nem pedir.
Quero ir para o céu de alma alvejada
e sorriso limpo.

O que doeu, deixo com Deus.

 

 


 

É PURO, MEU PAI

 

Meu pai tem isso de ser simples.
Simplicidade demais irrita
se não se é puro
ou poeta
(poeta, quando puro,
é anjo. E eu não sou anjo
nem puro, eu acho).

Meu pai tem tons
de som vibrante de corda e pinho
que encantam, tão simples.
E semitons
Que soam rápidos, feito surpresa.

Meu pai é simples – fala pouco
e pouco escreve.
Ele, quando toca, me toca.

É um anjo, meu pai.

 

 


 

ORAÇÃO MADRIGAL

 

Ladeira calçada de pedra:
Rosário, Bonfim, Aurora - ruas
distantes na infância,
seculares sob rodas
de carros de bois, cantantes, sofridas.

Agora, o macio das rodas
pneumáticas
sugere saudade.

Um bobo das ruas sorri
e me faz triste: ele é feliz
e me incomoda.

Na Rua do Rosário, escrevo um poema.
Bonfim me leva rua acima,
é procissão de Alvorada.

Fiéis descem a Aurora
e Aurora, a moça, joga-me um beijo
desde a janela.

Meu coração ora em silêncio.
O Rio das Almas murmura amém.

 

 


 

ANTIGA MANHÃ, AQUELA

 

À porta da minha casa
um homem cantava modinhas
e era feliz.

Minha mãe torrava café,
meu irmão andava cambaleante,
usava botinas e meias
e tinha ao pescoço uma chupeta
de borracha vermelha
que emitia um assobio – e nada mais
usava meu pequeno irmão.

Era manhã de sol, manhã antiga
naquele ermo ao sul de Goiás.

Era alegre a cantiga
de Antônio Cego, o preto
que cantava à porta.


Antônio cego era um homem feliz.

 

 


 

SAUDADE CERTIFICADA

 

Saudade do teu cheiro. Saudade
do tremor discreto de tuas mãos
porque te beijei sem avisar.

Saudade de beijar teus pés;
e dos teus dedos
a escrever carícias nos meus cabelos.

O tempo e o longe dão-me plena
esta intolerável certeza: a saudade
é certificado incontestável da tua ausência

 

 


 

MÃE

 

Tristes não, nem saudosos. Alegres, talvez.
Apenas certos de estender aos anos
alcatifas de coradas flores.

Não cúmplices, mas pedaços
de uma vida, a mesma, entrelaçados
por fecundo sêmen, no estertor de legítimo gozo
de humores a fluir com força:
momento de evocar-me à luz.

À luz, à luz... como vim
e vi-me feito à imagem
de Deus, dizem os crentes;
do Homem, é o que diz Deus.

Há, sim, o entendermo-nos sempre.
Refazer das carnes após o amor de hormônios,
multiplicar de genes, gestar com paciência,
parir entre dores, odores, suores
e as sempre lágrimas.

Deu-me o plasma, e o sorvi como a vida;
deu-me formas, palavras, cores, paladares,
música, dimensões, poesia
e o sentir,
que não se é poeta
impunemente.

De risos, lágrimas, sucessos,
e de tristes, felizes, esperanças
e de entes queridos ou distantes,
a fé no verbo te eterniza em mim.

 

 


 

FIGURAS FRUTAS

 

A polpa que apalpo (dura), por fora,
é carne e gordura a dar forma às nádegas
− ancas sobre as pernas
andadeiras pernas sensuais
− guardiãs dos mistérios anais
das tardes, noites, manhãs de amor inteiro.

Navego teu corpo, tal menino de antes
a correr pomares à cata de frutas;
hoje, caço putas inocentes;
mulheres morenas,
negras ou claras, virtuosas. Transmudam-se
nas alcovas, nos parques, no milharal...

(Houve o elevador,
o avião noturno, o último banco
no ônibus quase vazio;
e o sacrilégio na sacristia
em tarde morna, o padre sonolento
a dormitar a sesta).

Pomares de adolescência, a corrida
atrás de Irene alva e rósea.
A pele tenra
feito casca de manga madura, a manga rosa
dada em paga antecipada
do amor infante.

Alcança. E toca. E tomba.
Cai a moça jovem, quinze anos feitos.
Peito arfante, cheio, túmido;
e os mamilos eriçados, túrgidos,
salientes sob o pano claro
do vestido pobre.

Férias de fim de ano, quase Natal;
menino ginasial, o dia à toa, menina-moça
com tesão e charme. Os pés, as frutas,
artelhos como jabuticabas cheias,
peitos como sapotis, densos.

As uvas figurativas de seus mamilos tenros.

 

 


 

ENQUANTO CHOVE

 

Há essas mãos de que gosto
e me afagam.
Essas mãos com que sonho.
Ganham meu corpo,
fazem meus hormônios
se agitarem.

Delicadas, macias, nervosas e tensas.
Aconchegam-me o extremo do sonho,
tocam-me o rosto, o peito.

Aquecem-me a pele,
os pêlos, o talo rijo
e inquieto.

Mãos tateantes,
rítmicas e precisas:
conduzem-me ao ápice.

E convidam-me
à comunhão dos corpos
no bem-estar nos lençóis.

 

 


 

CONVITE AO CIO

 

Brincava de olhar,
de rir, de tocar.
Brincava de amar
mas brincava de sexo
(sem querer, eu acho).

Tinha um cheiro, a menina;
um cheiro maneiro
feito pele morena, quente
e de pêlos.

Enfim,
era algo rápido
que sacudia o sangue
e me erguia o falo pulsante,
pensante (evidente) na concha molhada
e quente, também; e convidativa.

Ah, mulher! Dá pra mim, vai!

 

 

 

Regina de Souza Vieira

 

Maria Azenha

 

 

 

 

 

 

 

30/10/2007