Massaud Moisés
Machado de Assis, o modo de
ser e de ver
O professor e crítico Alfredo Bosi
volta, no livro Machado de Assis: O Enigma do Olhar, ao desafio de
determinar o sentido da ficção machadiana e de desvendar os
alicerces de um ponto de vista construído na interseção de uma moral
clássica rígida com as idéias do século 19
Por Massaud Moisés
in Jornal da Tarde, 1.5.1999
Bons ventos têm soprado na direção de Machado de Assis nos últimos
tempos. Parece que de repente se avolumou uma nova onda de
interesse, adensando ainda mais o reconhecimento da sua grandeza
como a maior figura das nossas letras. Agora é a vez de Alfredo Bosi
lançar mais lenha à fogueira, com Machado de Assis: O Enigma do
Olhar (Ática, 227 págs., R$ 23,90), trazendo a sua contribuição ao
melhor entendimento e à melhor avaliação do criador de Capitu.
O livro se distribui por cinco capítulos, dos quais dois são
inéditos e o último contém “Materiais para uma Genealogia do Olhar
Machadiano”, um farto exemplário das possíveis fontes em que o
escritor teria bebido a inspiração para o seu modo de ver a
realidade social carioca dos fins do século 19. Do Eclesiastes até
Schopenhauer, passando pelo Livro de Jó, Maquiavel, Pascal, La
Rochefoucauld, padre Bernardes, la Bruyère, Vauvenargues, Helvetius,
Matias Aires, a Encyclopédie de 1765, Adam Smith e Leopardi,
alinha-se uma pequena, mas seleta e variada, galeria de obras e
autores que teriam colaborado para se estruturar “a lógica imanente
no olhar do observador”.
Assim, à unidade do objeto, que é a obra de Machado de Assis, se
soma a unidade da substância moral e filosófica que teria enformado
a visão do autor. Aí reside, com efeito, a tese que os quatro
ensaios defendem, um dos quais de maneira explícita. “Uma hipótese
sobre a Situação de Machado de Assis na Literatura Brasileira”,
último estudo da série, conclui que o romancista nos mostra, na sua
maturidade, não haver introjetado “nem as idéias dominantes no
período da sua formação (romantismo conservador, liberalismo
encruado para se acumpliciar com o cotidiano político do Império),
nem as correntes que circulavam, a partir de 70, em nosso meio
cultural”. Não era “nem conservador, nem evolucionista; nem
positivista, nem cientificista, nem republicano, nem miliante
abolicionista, (...) educara o seu olhar em valores e modos de
pensar que vinham da tradição analítica e moral seis-setecentista”.
Muito haveria que dizer dessa tese, a começar do fato de ser, pelo
menos, instigante, se me permitem o lugar-comum. Por mais que se
possa concordar com o ensaísta nesse retrato em negativas, não há
como evitar uma simples questão: que era, afinal de contas, Machado
de Assis? Estaria a resposta subentendida nas negativas? Teria sido
progressista (= “não conservador”), monarquista (= “não
republicano”), etc.? Se este é o caso, por que não o declarar? E se
bem observamos, as negativas, notadamente as que constituem o cerne
da tese, bem como as suas possíveis raízes históricas, navegam
genericamente ao largo das águas territoriais da Literatura: os
valores e modos de pensar do escritor “vinham da tradição analítica
e moral seis-setecentista”. Com toda a certeza, não ocorreria a
nenhum leitor imaginar que o ensaísta considera despiciendas as
fontes propriamente literárias que teriam participado na formação da
ideologia imanente no olhar de Machado. Todavia, esse mesmo leitor,
buscando saciar a sua natural curiosidade, poderia indagar: por que
não as enumerou? Seriam óbvias? Menos importantes?
O primeiro ensaio, cujo título dá nome ao livro, tem como núcleo “o
significado da ficção machadiana”, em razão de “um resíduo de
insatisfação cognitiva e desconforto moral” que a leitura “dos
melhores estudos sobre Machado” provocou no ensaísta. É o mais longo
dos quatro estudos e o que mais suscita questões de método. “A
Máscara e a Fenda”, o ensaio seguinte, reproduz um prefácio aos
contos de Machado de Assis, e o terceiro, “Uma Figura Machadiana”,
examina O Memorial de Aires.
A leitura dos quatro estudos ganha em ser feita à luz da tese que
neles se difunde, assim como à luz do fundamento crítico, ou do tom,
que a preside. O texto final do presente volume, sendo uma recolha
de lugares seletos da possível genealogia do modo de ser e de ver
machadiano, adia para outra ocasião o desafio que seria, admite o
ensaísta, reconstruir o “modo de olhar” machadiano, uma vez que
“seria preciso entender os encontros e os desencontros do moralismo
clássico e jansenista (severo até o limite do pessimismo) e a
concepção liberal-capitalista da natureza humana, que tentou, pela
voz dos precursores da Economia Política, conciliar o cinismo do
interesse individual com a hipocrisia da burguesia ascendente que
celebrava como progresso do gênero humano a prosperidade da sua
classe”. A tese, que é sem dúvida sedutora, aqui se reafirma, mas
deixando para o leitor a expectativa de uma demonstração mais
concludente da sua procedência.
Evidente fica também que a arte literária, ainda uma vez, corre o
risco de ser estendida como mero epifenômeno, e que o horizonte
crítico ou teórico dos ensaios cruza pela Economia Política. Sendo
fastidioso acompanhar todos os momentos em que a argumentação se
funda em conceitos de ordem sociopolítica, satisfaça-nos um que
outro indício da coerência metodológica que se preserva até as
derradeiras linhas, sustentada que é num “realismo aberto que não
decreta a priori a exclusão de qualquer aspecto do real”, com o
qual, de resto, só podemos estar de acordo.
As vantagens e desvantagens do viés sociopolítico estão patentes nas
observações ao conto O Alienista. O ensaísta considera
insatisfatório dizer que a narrativa “faz a sátira do cientificismo
aplicado ao estudo da loucura”. E a razão estaria em que “há nela um
desenho claro de uma situação de força”, manifesta no perfil de
Simão Bacamarte: “Seu status de nobre e portador do valimento régio
transforma-o em ditador da pobre vila de Itaguaí. (...) O eixo da
novela será, portanto, o arbítrio do poder antes de ser o capricho
de um cientista de olho metálico.” Por isso, “o hospício é a Casa do
Poder, e Machado sabia disso bem antes que o denunciasse a
antipsiquatria”. Estaria aí a completa verdade do conto, ou o seu
significado mais relevante?
Acontece que “o Dr. Simão Bacamarte (é) filho da nobreza terra”, ou
seja, de Itaguaí. Condição para ser ditador? Ditador de uma “pobre
vila?” Não lhe bastava ser “filho da nobreza da terra”, se isto tem
algum significado para além do metafórico, e se para tanto serve ser
nobre em Itaguaí? E que valimento régio podia lhe amparar a vocação
ditatorial se, como informa o cronista, el-rei não pode alcançar
“dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia?” Todos os leitores se lembram da
resposta inequívoca que “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal
e das Espanhas” deu ao monarca: “ – A Ciência, disse ele a Sua
Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.”
Em O Alienista há, na verdade, poder e poder. O da Ciência e o da
Política. É certo que Bacamarte reúne condições para segurar as
rédeas do poder político, já que é da nobreza da terra. Mas ele é
acima de tudo, e com mais evidência, expressão do poder da Ciência,
pois este lhe basta. Não fosse ele a encarnação do poder da Ciência,
o conto se desmontaria como um castelo de cartas. Nem lhe bastaria
que fosse apenas nobre. Sendo quem é, entende-se por que se recolhe
na Casa Verde ao fim da narrativa, depois de lá internar quase todo
o povo de Itaguaí.
Claro, pode-se dizer que ali o poder confinava os perigosos da ordem
social por considerá-los dementes, mas Simão Bacamarte o exerce
porque, e apenas porque, médico. Quando muito porque também nobre.
Como poderia ele ser o detentor do poder político, um tirano,
naqueles “tempos remotos” da colônia, se a Câmara exerce os seus
direitos, se ele também acaba por encerrar-se na Casa Verde? Um dono
do Poder o faria? Não sendo, obviamente, manifestação prenunciadora
da antipsiquiatria, não seria antes de tudo uma caricatura do poder
que a ciência da alma já ostentava entre nós?
No auge da rebelião em Itaguaí, o governo passa para as mãos do
barbeiro Porfírio, e este, observa o ensaísta, “procura o médico,
interessado agora em angariar-lhe o poder que momentos atrás
contestara a mão armada”. Não é estranho que o rebelde vitorioso
procure apoio no “ditador?” e procure-o depois que o “corpo de
dragões” se rendera aos Canjicas sob a sua liderança, e “povo e
tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí,
ao “ilustre Porfírio”? Até que “entrou uma força mandada pelo
vice-rei, e restabeleceu a ordem”. A pedido de Bacamarte? Este,
durante a revolta, que é que fazia: “Escrutava um texto de Averróis”.
E o mais que fez ele, e fizeram os revoltosos, está no capítulo VI e
seguintes. Mas é suficiente a ironia que Machado põe nas primeiras
linhas em que delineia o perfil de Simão Bacamarte para nos
convencer de que o pobre médico era um forte candidato à Casa Verde.
Afinal, a ridicularização da classe médica é um tema que vinha de
longe, e Machado apenas o aclimatou a uma vila da comarca de Iguaçu
para melhor exercitar o seu poder de ficcionista agudo e cético. Que
se pode esperar de alguém que recusa o convite régio para emprestar
o seu saber à Universidade ou aos “negócios da monarquia” a fim de
regressar a Itaguaí e se entregar “de corpo e alma ao estudo da
Ciência?” Movia-o a ânsia de poder? certamente. E de Poder? Quem
sabe? Sim e não, diria obliquamente Machado de Assis, decerto
suspeitando (se já não o sabia) que assim estaria mais próximo da
verdade dos fatos. O poder da Medicina pode servir de acesso ao
Poder, talvez saibam ou pretendam os seus praticantes. Mas um
ditador que fosse médico, exercendo a tirania como médico, nos seus
domínios propriamente científicos, é que seria inédito. Salvo a
hipótese de aí se configurar o sonho dourado que a Medicina nutre
deste sempre; nesta hipótese, porém, como não despencar nas sombras
da loucura? Talvez Machado pensasse nisso ao criar o seu Quixote no
Iguatemi.
Talvez seja, em última análise, uma questão de método. Os vários
métodos críticos disponíveis, como se sabe, pedem que sejam
aplicados a partir da natureza poliédrica dos textos literários. E
por isso não se pode empregar uma só estratégia metodológica no
exame de todos eles, sob pena de ser transformada em religião ou
ideologia. Em tese, o método sociopolítico é tão válido quanto o
estruturalista ou o psicossocial, referidos de passagem no livro. Um
perigo, no entanto, espreita a qualquer um deles, quando adotado com
exclusividade: o de reduzir os problemas textuais a uma só chave
hermenêutica, imposta pela univalência das crenças ou convicções do
crítico, e não pelo texto literário.
A análise de O Espelho, levada a efeito um pouco depois de O
Alienista, sugere algumas reflexões nesse rumo. Jacobina, o
protagonista da narrativa, diz aos seus amigos, “investigadores de
coisas metafísicas”, que há duas almas: a “alma interior” e a “alma
exterior”, que pode ser representada por “um espírito, um fluído, um
homem, muitos homens, um objeto, uma operação”. Um título e a farda
de alferes lhe deram a “alma exterior” mais decisiva, como
verificara quando Tia Marcolina sai para uma visita e os escravos
fogem. A solidão desesperante apenas cessa quando se lembra de
vestir a farda. E olhar-se ao espelho: lá via a “alma ausente com a
dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos”. Sentia-se de novo
inteiro; reconquistara a sua “alma exterior; não era mais “um
autômato, era um ente animado”.
O tecido alegórico que garante a trama do conto deixa de ser
encarado na sua polissemia, se apenas se empregar um dos métodos à
disposição do crítico. Ao terminar o seu relato, Jacobina desce
pelas escadas, seguido de Machado, como uma sombra. E o leitor com
eles, abalado por sentimentos de perplexidade, nada incomuns quando
se defronta com a comédia humana machadiana. É de notar, contudo,
que Jacobina, praticando o direito de narrador da sua história,
escapa ardilosamente ao questionamento dos seus interlocutores,
deixando no ar tudo quanto dissera, desde a idéia da existência das
duas almas até, retrospectivamente, o caso da farda de alferes, que
lhe devolvia a “alma exterior” perdida, a integridade humana e a paz
interna. Lembre-se que ele experimentara a troca da “alma exterior”
em outras ocasiões, como a nos afiançar que temos, ou podemos ter,
várias “almas exteriores”. Mas só “alma interior”: “as duas
completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem
perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência”.
Decerto, Machado não teria nada a acrescentar ao epílogo suspensivo,
assim como Jacobina: à imagem e semelhança do seu criador, o herói é
lacônico, prefere-se “calado, pensando, cochilando (...). Não
discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo”.
Evadindo-se pelas escadas, livra-se da interpretação que da sua
história pudessem fazer os demais convivas. Talvez soubesse ou
desconfiasse que a idéia das duas almas e o caso da farda de alferes
não só tinham significados como constituíam a ponta de uma vasta
problemática da condição humana. Como sempre, Machado levanta o véu
das aparências, nunca porém o bastante para nos exibir o que lhe vai
nas entranhas.
Daí que só se pode assentir com o ensaísta em que, com O Espelho,
“não poderia ter descido mais fundo a teoria do papel social como
formador da percepção e da consciência”. Mas com uma ressalva: a
riqueza alegórica do conto solicita, pelo menos, o seu complemento
dialético. Em nota à p. 103, o ensaísta dá sinais de o reconhecer,
declarando ter atentado para “a marcação da consciência pessoal do
narrador que evoca e analisa a sua fixação em tipo social”. Pena que
não inserisse no seu lugar próprio o complemento pedido por sua
interpretação do conto, mesmo porque o ensaio onde ela se encontra,
como informa em nota final, “conheceu mais de uma versão”, tendo
prevalecido, “com algum retoque, (a) primeira delas”.
Em boa parte, Jacobina é o pai da confusão, ao dizer que, com o
título que lhe foi atribuído, “o alferes eliminou o homem”. Eliminou
ou completou o homem? Se aí se aloja a tese do conto, onde fica a
“alma interior?” Como eliminar o homem, em vez de o completar, se
ele possui duas almas? Não creio que se possa tomar a frase senão
como um dos paradoxos que faziam as delícias do Jacobina e,
evidentemente, do autor da narrativa. Como tomar ao pé da letra que
“o alferes eliminou o homem”, se o título e a farda de alferes
constituem uma das possíveis “almas exteriores” e, portanto, uma das
infinitas possibilidades humanas?
Não se perderá o múltiplo sentido simbólico que Machado imprime no
seu mundo ficcional, se não levarmos em conta que a “alma exterior”,
correspondendo ao universo das coisas sociais, e que a “alma
interior”, equivalendo ao que vai na mente de cada um, representam
metades indispensáveis à unidade do ser? Um método único para o
interpretar não seria como o livro único? Enfim, não estará Machado
de Assis, em O Espelho, e mesmo em O Alienista, pondo em xeque o
determinismo que a ciência do seu tempo, meio às cegas, apregoava?
Estendi-me demais, levado certamente pelas perplexidades que a obra
de Alfredo Bosi levanta. Estendi-me além dos limites de um
comentário, sem esgotar as questões. E ainda bem: com O Enigma do
Olhar ganha Machado, que vê a sua ficção ser analisada com
inteligência e rigor. E os leitores têm a seu dispor estudos que
erguem prementes questões de métodos e veiculam idéias das quais
podem discordar, mas às quais não podem ficar indiferentes.
Massaud Moisés é professor-titular da USP, autor, entre outros
livros, de A Literatura Portuguesa e História da Literatura
Brasileira e da seleção, introdução e notas de Contos de Machado de
Assis
Saramago, os cadernos de
Lanzarote
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