Maria da Conceição Paranhos
Sobre a poesia de Miguel Antônio
Carneiro
Miguel Antonio
Carneiro. Este é um poeta do cantar de um mundo fragmentário, mundo
que o tempo retorceu e retorce em seus meandros. Por isso mesmo, sua
tendência formal acompanha o tipo de temática que emerge por meio do
poema.
Em Miguel, pode-se
falar do traço que o famoso estilista Leo Spitzer denomina como
“enumeração caótica”: uma forma de enumeração que parece não ter
nexo, mas que mantém uma conexão profunda no espírito do poeta e na
sua organização das palavras que representam a sua reorganização do
mundo. E isto Miguel realiza em sua poesia – uma reorganização do
mundo segundo sua perspectiva singular. Desde o início da seleção,
com o poema “Breviário do Povo”, ele nos conduz para o remoto ano de
1890 a nos guiar por meio dos itens que enumera para um mundo
repleto de signos e de cifras que ecoam em nossa apercepção,
compondo um quadro expressivo da região de sua origem.
Se Miguel se refere
à data do início da lavoura cacaueira no estado da Bahia e aos
coronéis da cana (1890), se ao nascimento de Carlos Gardel (1890),
se à época em que foi construído o Cruzador Tamandaré (1890), se à
fundação do município de Conceição do Coité (1890), com território
desmembrado de Riachão do Jacuípe – terra natal do poeta, se à data
do nascimento do seu avô, que se encontra gravada no portal da
Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Riachão do Jacuípe
(informação do próprio poeta) não é tão relevante como a história
que faz emergir com o inventário de palavras, fatos e expressões que
ressoam como um cantochão – e, literalmente, assim se encerra o
poema “Breviário do Povo” – povoando de mistério as lacunas que são
deixadas entre uns e outros eventos e objetos. Neste poema,
mesclam-se história e histórias, tipos populares, substância
química, sensações olfativas, visuais e auditivas, alistadas
conforme se vê, em parte, abaixo:
1890
Espinhaço do Cavalo
Conde da Ponte que Pariu
Sigilos
Alforrias
Castidades
Phosphori acidum
Bomsucesso
[...]
Cura d’Ars
Rufino Piru
Papaco Coveiro
Ora pro nobis Sancta Dei Genitrix
Ora pro nobis Sancta Dei Genitrix
Pra pro nobus Sancta Dei Genitrix.
A evocação de fatos
históricos permeia-se à poesia de Miguel, mas o que o poeta busca é
um nexo que a história oficial oculta. Em sua poesia, a busca da
história se dá nas lacunas e no esquecimento, nas histórias dos
indivíduos em suas relações com sua terra, com sua memória, com sua
infância e juventude. Assim se lêem “A Coluna Prestes”, “Coberta de
Lã”, “Quatro Fadas do meu Burgo”, “Breviário”, “Lábaro, Libambo e
Letal”, que, além desse traço comum, possuem suas características
diferenciadas.
Em “A Coluna
Prestes” – poema que se apresenta como um recorte ou um relato curto
– o poeta se dirige a uma segunda pessoa, o que é freqüente em sua
poética, sua mãe neste caso, anunciando o final de sua permanência
no seio da família pela escolha política. Os elementos destacados
como bagagem carregam um teor de ternura tocante:
Minha mãe, os Revoltosos estão
chegando
bem pertinho de Pé da Serra
[...].
Arrume minha malota
bote meu galopim da minha Primeira Comunhão,
minha camisa Volta ao Mundo,
minha gaiola com meu azulão.
[...].
Assim também decorre
o poema “Coberta de Lã”, onde os “paninhos de me encobrir” assumem
importância equivalente a “lave meu futuro”. Neste pequeno poema, o
poeta parte da sincronia da vivenciação de eventos particulares, de
caráter lírico, para o épico, quando evoca o “capitão” e o “rio de
1890” e finaliza o poema como se estivesse a tanger gado, evocando
sítios de seu espaço natal.
Aliás, a
reminiscência de sua infância se dá num território mágico, povoado
de figuras, de mulheres, inclusive, sobre as quais também se abate a
garra do tempo e dos descaminhos (“Conversa Antiga”). Em “Quatro
Fadas do meu Burgo”, as figuras pitorescas de Gordulina, Maria dos
Poços, Maria de Guigó e Zefa Moringa são evocadas com o sabor que a
distância temporal propicia, em estrofes curtas e regularmente
dispostas, eivadas de humor. A tendência ao caricatural e ao
grotesco aqui encontra exemplos, bem como no poema “Ofício”, onde,
não obstante, é fincado o coração em sangue do poeta:
Em “Os Dragões da
China” apresentam-se dois momentos na vivência do poeta: pleno, o
primeiro; de perdas, o segundo. Em 10 versos se conta uma história
grave e de efeitos irreversíveis, com o uso de flagrantes
provavelmente colhidos da realidade efetiva como “o anão tinha um
olho de vidro”, “Angélica relia Alberto Caieiro” e assim por diante.
O sentimento de isolamento, de solidão, e, mesmo, de rejeição se
evidencia em poemas como “Testamento”, como em outros. Na lírica
amorosa, o poema “Canção Tatuada no Peito” revela a intensidade do
poeta diante do amor, sempre itinerando por entre os caminhos de uma
cidade que se faz cada vez mais vazia, uma mega-cidade mecanizada e
ausente, que mais se contrasta à delicadeza do poeta que é Miguel
Carneiro.
Meu anjo
eu não queria lhe contar:
o verso está mutilado,
falta uma rima no ar.
Sabe-se, a elegia é
uma forma poética definida como canção ou poema, que expressa
tristeza ou lamentação, usualmente por alguém que morreu. Essa
espécie poética surge na Grécia, na produção textual denominada
elegus, uma canção de lamento acompanhada por flauta.A partir do
século XVI é que as elegias tomam um significado mais abrangente. No
longo poema “Elegia de março”, o gênero assume seu sentido original.
É um longo poema de lamentação. A memória e a tortura do passado
perdido avultam junto com a calamidade política de 1964 – da qual
inevitavelmente nos lembramos, por ser março – e com toda uma gama
de experiências de perda vividas pelo poeta, inclusive pela morte.
[...]
O jovem elo e pacato traz no rosto a marca da dilaceração.
Já não faz mais o dever de casa,
já não recita sua lição para o amanhã.
Em vão, numa auto-estrada,
seu corpo esguio jaz, à espera do rabecão.
É março, é março, é março,
caminhando para o abril de um dia
sem guia.
[...]
Então se percebe a
ameaça do poder deteriorante do tempo. Esse poema, longo e
grandiloqüente, coroa a seleção aqui apresentada, com suas belas
imagens, seu poder de criar um espaço convincentemente melancólico,
sem sentimentalismos fáceis e purgações de superfície – pois, aqui,
estamos diante de um poeta:
[...]
É março, é março, é março, é março,
Desfaço o laço dos meus sapatos
encharcados de lama e pesadelo.
Ausculto o tempo em minha memória,
atado,
vejo-me numa longa rua.
É tarde
e nessa madrugada
Os galos esporeiam meus sonhos.
Outubro de 2003.
Leia Miguel Antônio Carneiro
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