Ildásio Tavares
CANÇÃO DE FOGO RIDES
AGAIN
Conheço há algum tempo
Miguel Carneiro e me compraz seu talento criador e sua dignidade de
ser si mesmo; sua capacidade de enfrentar de cara o pantanal que
literário; sua valentia. O conhecia como poeta, inclusive de versos
traduzidos ao francês. Descubro-o como ficcionista, dramaturgo e
cineasta, e até pergunto se esta
última
não é uma veia de Riachão de Jacuípe, terra do imenso Olney São
Paulo, tão cedo roubado de nosso convívio, e dos filhos deste Irving
(que também já partiu) e Ilya, parceiro de Miguel no curta que tem o
nome do seu rincão.
Mas é o ficcionista
que me chega às mãos, agora, para a leitura prazerosa e cativante,
O Coronel já não manda mais no trecho,
uma novela calcada no cinema direto do sertão; em seus personagens
arquetípicos e emblemáticos que Miguel soube, com justeza, retratar.
E com aquela justeza pertinente, orgânica, de dentro pra fora, em
que o grotesco supera o pitoresco e a deformação ganha da simples
caricatura – é muito mais uma forma de expressionismo forte do que a
exploração do anedótico. Os personagens de Miguel vivem. Na abertura
da novela, em pouco mais de uma página, Miguel traça um perfil
cinematográfico – glauberiano – do Coronel Trazibulo Fernandes da
Cunha (olha só o nome) em que desce a detalhes que só um sertanejo
poderia conceber. Depois de descrever, minuciosamente, o traje do
Coronel, o narrador conclui: “Tinha a estampa de um barão da
renascença veneziana”, o que agrega um elemento de fantasia ao
processo, um comentário de Comedia dell’Arte.
Mas é justamente pelo
território do dramático que trafega a carruagem de Miguel, bem como
as diligências do velho oeste, descortinando a interação da paisagem
adusta do sertão com a paisagem sempre rica dos seres humanos que
ganham até genealogia na novela, mesclando elementos de ficção a
elementos históricos, e que, salvo erro ou omissão, a família de
Miguel comparece ao pódio. Vejo a preocupação de amarrar a
narrativa ao real, sem contudo partir para a mera fotografia ou
reportagem. Miguel narra e distorce. E nisto é ajudado pelo domínio
que tem do linguajar sertanejo que esgrime com perícia, palavras e
expressões corlocalistas que tingem a novela.
Este clima
expressionista descamba afinal para o realismo mágico, bem a vezo do
misticismo católico deste povo do interior, quando surge em cena a
figura do espírito de Antino Soares, do Padre Viriato e de São
Roque, este primorosamente descrito a partir de sua imagem no
tradicional santinho, com o cachorro lhe lambendo as feridas.
Fecha-se o mundo surrealista. As potências transcendentais se
apresentam para combater o mal imanente. A novela de Miguel é mais
um capítulo da luta do bem contra o mal, do povo contra seus
opressores. Com o technicolor verdadeiro do sertão.
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