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Miguel Sanches Neto


 

Mestres contemporâneos
 

CADERNO G

 

Publicada em 1980, uma década depois da morte do poeta, quando a geração marginal, com suas propostas de um estilo à-vontade, invadia o centro do campo literário, a antologia Testamento de Pasárgada (2.ª edição – Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ ABL, 2003), de Manuel Bandeira (1886-1968), feita para Ivan Junqueira, é um verdadeiro programa poético. Não se trata, portanto, apenas de uma seleção ingênua e apaixonada dos melhores poemas, mas de uma reorganização desmitificadora da obra deste grande poeta brasileiro, que serve tanto para melhor apresentá-lo aos leitores quanto para defender um conceito de arte.

Como formato, Testamento de Pasárgada descende diretamente da Antologia poética, de Carlos Drummond de Andrade, feita pelo próprio autor em 1962. Neste volume, Drummond dispõe sua obra não por ordem cronológica, mas de acordo com as afinidades dos poemas, revelando assim que o poeta é sempre ele mesmo em todas as suas fases. Ou, como quer Ivan Junqueira, o poeta não tem fases, mas faces. O que nos aponta para uma verdade que, tanto naquela época como agora, continua válida: não se pode pensar a literatura dentro de um quadro evolutivo, pois a grande arte é e sempre será atemporal.

Esta idéia, que alimenta a análise crítica de Ivan Junqueira, presente na seleção dos poemas e nos comentários que abrem cada bloco, tinha, em 1980, uma função bastante específica – tirar Manuel Bandeira das leituras históricas, viciadas pela mitificação modernista. Bandeira era visto como tributário deste movimento, como alguém que tinha melhorado sua poesia ao sofrer a influência do novo ideário, como se ele não pudesse ser poeta fora desta circunstância. Este ponto de vista fora incorporado pelo próprio autor, mas Ivan logo no início do livro muda a maneira de entender esta relação com o Modernismo: "Há um equívoco da parte de Bandeira ao estimar que é imensa a sua dívida para com o Modernismo, quando este, na verdade, é que lhe deve tudo" (p.59). É a grandeza do poeta que fortaleceu o movimento e não este que definiu a sua grandeza. Tal mudança de perspectiva tinha como finalidade combater leituras historicistas.

Para tanto, Ivan Junqueira não prioriza nem um momento de sua produção e nem uma vertente, mostrando como todas dialogam entre si e estão aglutinadas por uma vocação inequívoca para a poesia feita para durar. Ivan lê Bandeira como um autor "clássico" por excelência, com um domínio total da arte poética, tirando-o do círculo estreito dos valores modernistas. Bandeira aparece, na antologia, como o grande poeta moderno do Brasil, ao lado de Drummond. Ele não ficou preso a uma idade, assumindo o papel de soldador de tempos, indispensável em uma pátria jovem. Ele "só pôde descobrir o novo através do antigo, o que nos lembra aquela relação dialética tão cara a Chesterton segundo a qual o progresso humano poderia ser comparado à marcha de um gigante cujos olhos estivessem dirigidos para a frente e os pés voltados para trás" (p.91). Bandeira só foi moderno por ter sido clássico, o que revela que todo grande escritor tem como horizonte a busca da perenidade, de um senso de medida que o leve a se estabilizar na língua, mesmo quando se propõe uma revolução. Esta antologia mostra, por sua quebra da hierarquia temporal, que Bandeira não pertence ao Modernismo, pois era "um consumado mestre da língua, o que, desde logo, o inscrevia numa tradição de classicismo literário e de sábia fidelidade às origens e aos limites instrumentais impostos pelo sistema lingüístico" (p.148). Esta solidez livrou o poeta dos equívocos de outros movimentos, como o do hermetismo da Geração de 45 e o das brincadeiras concretistas – estas foram praticadas por Bandeira pelo que elas eram: jogos lúdicos que possibilitavam a reconquista da infância perdida.

Nas 19 seções do livro encontramos este Bandeira devolvido à sua latitude definitiva, que passa a figurar na língua como modelo lírico. Com esta afirmação das raízes clássicas de sua poesia, Ivan Junqueira estava também questionando a leitura mais superficial que os jovens poetas dos anos 70 faziam de Bandeira, tomando-o como um defensor da arte minimalista, do prosaísmo flácido e do confessionalismo rasteiro. O poeta carioca mostra que tudo isso, no grande pernambucano, vinha potencializado por um domínio autêntico das formas tradicionais. É nesta mudança de leitura que reside a grande importância de Testamento de Pasárgada, antologia construída sobre uma oportuna postura crítica.

Esta obra explica Bandeira, mas também serve para fortalecer a própria poética de Ivan Junqueira, que pode ser conhecida, e reconhecida, na seleção feita por Ricardo Thomé: Melhores poemas de Ivan Junqueira – São Paulo: Global, 2003. Para Thomé, Ivan é o poeta do palimpsesto, ou seja, um autor que escreve sobre o papel marcado por outras gerações, somando-se a elas e não as negando. Em outras palavras, é um autor integrado ao grande texto clássico.

Nesta viagem rápida por sua poesia, o leitor percebe principalmente uma estabilidade estilística do primeiro livro (Os mortos, 1956-1964) aos poemas inéditos. Em toda a coletânea, é sempre o mesmo autor, avesso às mudanças de superfície, apegado a esta escrita carregada de tempos. O seu grande tema é a morte, que angustia o poeta desde sua estréia. Contra o precário, um dos conceitos fundadores do Modernismo e de todas as vanguardas, ele busca um verbo imorredouro, o que explica sua opção pela palavra ressuscitadora, que devolve ao mundo dos vivos os ossos do passado, dotando-os de carne e voz:
 

E eis o faço porque, ao toque
dos meus dedos em seus bordos,

tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca. (p. 212)

 

No campo dos recursos estéticos, estes ossos aparecem como medidas tradicionais, sustentáculos desta voz poética que mantém vivo e atual o que pertenceu a outras gerações.

Ivan Junqueira, podemos concluir, é o poeta do tempo suspenso, que não busca o rompimento de vínculos, mas a criação de uma temporalidade inconsútil. E isso fica demonstrado na mínima variação de tom e de temas de sua poesia. Livro após livro, é o mesmo poeta que encontramos, o que muda é apenas o domínio, cada vez mais refinado, de sua arte. Podemos dizer que, a partir de O grifo (1987), Ivan dá um salto de qualidade, pois sua poesia adquire mais naturalidade sem perder seu rigoroso senso de medida. Os versos fluem melhor, não sentimos o peso das palavras, tão integradas elas se encontram à sua voz poética. É quando ele se estabelece, definitivamente, como um mestre contemporâneo.

 

Ivan, 2003

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Manuel Bandeira
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