Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Miguel Sanches Neto




Retrato de corpo inteiro


A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil
11.09.2004


 

Poeta completo é aquele que atinge várias faixas de leitores. Esta pluralidade de gosto é um dos segredos para afirmação no presente e sobrevivência no futuro, nesta breve eternidade (a expressão é de Jorge Luis Borges) que a literatura concede a poucos. Fernando Pessoa levou ao extremo a arte da mutação do eu, funcionando como símbolo da despersonalização lírica. Outros poetas, mais centrados na própria biografia, também conseguiram fazer poesia para todos os gostos, sem se despersonalizar.

É o caso de Manuel Bandeira (1886-1968), sempre atento às expectativas de seus leitores sem deixar de ser ele mesmo. Bandeira viveu num entre-espaço, produzindo poemas com técnica e com impressionismo, como artesão e como vidente, como modernista e como sobrevivente do século XIX, experimentando a vanguarda num tom moleque e fazendo poemas encomendados. Testou as principais formas de seu tempo e as dos mestres do passado. Apesar de modernista, adaptou-se bem ao fardão da ABL. Tudo isso ele fez sem se perder, sem simulação, porque era avesso a viseiras, sabia criticar e ao mesmo tempo contemporizar, soldando estilos diversos, conquistando admirações à esquerda e à direita, tanto em termos políticos quanto estéticos.

Sofreu, é bem verdade, rejeições por sua linguagem subjetiva, mas recebeu também a homenagem - por seus poemas visuais - deste grupo extremamente racionalista e seletivo que formou a poesia concreta. Bandeira é hoje um poeta nacional, num sentido que talvez Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto não tenham sido. Acredito que esta sua posição na poesia brasileira do século XX seja pelo fato de ele ter sabido trafegar nas duas mãos, na que vinha do passado e na que ia contra o passado, e isso concomitantemente. Ficou como poeta-maior, apesar de sua aparente menoridade temática e lingüística, como alguém que encanta crianças e ao mesmo tempo alimenta ensaios de críticos rigorosos, projetando-se nas gerações mais novas e alterando os rumos da própria geração, sendo lido com amor pelo intimismo brasileiro de sua linguagem e cultuado pelo domínio técnico.

Se cada um tira de Bandeira o que lhe interessa, muitas vezes negando suas outras qualidades, Ruy Espinheira Filho valoriza a complexidade do pernambucano, buscando as suas duas principais faces em Forma e alumbramento: poética e poesia em Manuel Bandeira. No poeta não houve uma oposição destas duas posturas, mas uma soma. Explique-se o título. O autor, estreando no crepúsculo de uma arte formalista, soube ser modernista logo em seguida, sem nunca se entregar cegamente a qualquer ideário. Tinha poética (domínio técnico) e poesia (estado lírico), unindo o que ele era, sua comovedora latitude humana, ao que herdara, sua sólida formação literária, tanto tradicional quanto moderna. Ruy Espinheira lê Manuel Bandeira como unificador de pólos, um servindo para corrigir os excessos do outro.

Uma das passagens elucidativas é a da publicação de seu livro Ritmo dissoluto (1924) junto com os anteriores (A cinza das horas e Carnaval). O poema “Os sapos” tinha gerado um alvoroço no front dos passadistas, tornando-se o ataque poético mais memorável porque paródico, mas nem este seu poder destrutivo o afasta dos leitores tradicionais, admiradores do bardo que fazia a passagem para a vanguarda de 22. Em carta de 11 de dezembro de 1923, Bandeira relata a Mario de Andrade:

E agora esta é de estrondo: quem vai editar o meu livro é Laudelino Freire, Scilicet (a saber) a Revista de língua portuguesa, e quem me arranjou isso foi Goulart de Andrade que ataquei nos “Sapos” mas que gosta de mim por causa dos “Sapos”. Viva o passadismo!

Acima dos ataques, é isso que Ruy Espinheira percebe, estava a qualidade poética de Bandeira. Mesmo modernista, os seus poemas eram ricos em lições líricas estabilizadas no gosto mais conservador. E Bandeira vai lembrar em suas memórias que ele já era conhecido como autor de “Poética”, poema que aparecerá no volume seguinte (Libertinagem, 1930), cuja primeira versão pública ostentava um verso altamente bélico, anunciando o fim de um tempo: “Abaixo a Revista da língua portuguesa”. Mesmo satirizados, os representantes da revista irão publicar o poeta, que em seguida diminui o caráter agressivo do verso, mudando-o para um generalizante: “Abaixo os puristas”.

CONVERSA - Todo o ensaio de Ruy Espinheira é um levantamento desta nacionalidade ampla da poesia de Manuel Bandeira, poeta que contentava até mesmo os seus opositores em arte. Recuperar esta grandeza de Bandeira é a tarefa a que se dedica o autor, explicando o porquê de “num país em que o individualismo e o subjetivismo costumam ser atacados como exemplos de inferioridade, Bandeira conseguiu ser aclamado como um de nossos maiores” (p.19).

As qualidades do texto de Ruy Espinheira são conhecidas. Linguagem agradável, ritmo suave, amor ao tema. Isso permite ao autor baiano estabelecer uma sintonia com o outro poeta, revelando que a voz que fala não é a de um crítico distante, mas a de um oficial do mesmo ofício, interessadíssimo nas posições de Bandeira sobre a arte poética, o fazer da poesia. É ponto para o autor do ensaio, pois ele nos coloca diante das razões de Bandeira. Seu estilo crítico é, como no livro anterior (Tumulto de amor e outros tumultos - criação e arte em Mario de Andrade. Record, 2001), o da conversa livre com o leitor.

Para tanto, o ensaísta deixa de ocupar os principais espaços de discussão, preferindo acompanhar a fala do poeta e de seus interlocutores. Dando voz aos mestres, ele nos aproxima da fonte. O livro é, portanto, marcado pela incorporação da voz alheia, num rosário de citações administradas pelo autor. Todas estas características são qualidades, pois a autoria se manifesta, no ensaísmo de Ruy, mais na organização do material do que na invenção de sentido.

Tal opção tem, como toda e qualquer opção, o seu risco. No caso: incorporar como verdade definitiva aquilo que foi dito dentro de um contexto. Ruy Espinheira quase não cai nesta armadilha, mas parece que voou alto sobre certas passagens, lendo, por exemplo, o “Prefácio interessantíssimo”, de Mario de Andrade, sem valorizar a ironia modernista. Outra coisa que o leitor fica esperando do livro é um norte crítico mais determinado, pois o ensaio cresce em parênteses, afastando-se em alguns momentos de sua preocupação central.

Estas, no entanto, são marcas humanas de um ensaio crítico-amoroso que nos devolve Manuel Bandeira de corpo inteiro.

Miguel Sanches Neto é poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e professor de Literatura da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná. Publicou, entre outros, Hóspede secreto (contos), Prêmio Nacional de Literatura Cruz e Sousa, de Santa Catarina.
 



Ruy Espinheira Filho
Leia a obra de Ruy Espinheira Filho