Nicodemos Sena
Fortuna Crítica: Oscar D'Ambrósio*
Uma
extensa e densa aula de Amazônia
(Jornal da Tarde,
20/05/2000)
A crítica literária é unânime em
considerar “Vidas Secas”, do alagoano Graciliano Ramos, como uma das
mais importantes obras já escritas em língua portuguesa. O maior
argumento é que o livro, principalmente em seu estilo, é um retrato
do Nordeste brasileiro. A história de Fabiano, Sinhá Vitória, os
meninos e a cadela Baleia fica em segundo plano perante o
vocabulário conciso e o fraseado árido análogo à seca do sertão.
“A Espera do Nunca Mais”, romance
de estréia de Nicodemos Sena, paraense de Santarém, realiza fenômeno
semelhante com a Amazônia. A saga dos caboclos da família Bagata é o
menos importante perante a prosa voluptuosa de um autor que
conseguiu desenvolver um estilo que permite ao leitor visualizar a
forma de ser das pessoas que habitam o Norte do País.
A crítica local não economizou
elogios e o vem considerando a maior revelação da literatura
regional nos últimos anos. O entusiasmo se justifica. No intenso
trabalho de escrever e aprimorar seu estilo, Sena conseguiu fugir
dos estereótipos que cercam a Amazônia. Seu grande medo, como
confessa em entrevistas, era cair no exotismo que geralmente devora
aqueles que se aventuram a escrever sobre a região. O resultado
final, no entanto, atinge plenamente a busca de um estilo próprio de
se debruçar sobre os homens e os problemas amazônicos.
Embora a Amazônia domine a
narrativa, principalmente pelo vocabulário específico, que demandou
a elaboração de um glossário incluído ao final do livro, há uma
personagem que merece uma atenção especial, Diana. Ela é a grande
figura feminina da obra – encarna as qualidades e mistérios
intrínsecos da região amazônica, pois seu fascínio arrebata, mas
também pode levar ao sofrimento ou à morte.
O livro é dividido em três partes,
tendo seus melhores momentos no período entre a década de 1950 e os
anos mais negros da ditadura militar. Basta, porém, ler algumas
linhas para já se sentir ambientado no Norte do País. É o que ocorre
logo no início da obra, quando o personagem Gedeão salta da rede e
tropeça em alguns “paneiros de farinha empilhados no piso de
chão-batido da casa”, procurando a “tênue claridade que penetrava
pela porta de palha”.
A casa do caboclo Gedeão é uma
aula de Amazônia. Feita de madeira e palha, é amarrada com cipós e
enviras, sem o uso de um único prego. Os quartos são estreitos e as
portas, baixas, “uma terrível armadilha para as testas desavisadas”.
Não há janelas e os objetos que dominam a casa são a garrafa com
água, a lanterna de pilha e a espingarda.
Embora o livro não seja um
documento jornalístico ou sociológico, reúne as qualidades de ambos,
pois apresenta dados para compreender melhor o cotidiano dos
moradores da Amazônia. Um exemplo está na página 317, onde é narrado
como uma sucuriju enorme engole um sapo. É descrito como este último
“enchia-se de ar, ficava mais grosso, não queria passar pela goela
da fera, mas ia passando”. Como último esforço, o pequeno sapo
“ainda abriu as perninhas na esperança de ficar entalado na garganta
da cobra”. No entanto, “com as perninhas cansadas”, finalmente
sucumbiu à força descomunal da fera.
A imagem é uma metáfora do livro.
Ele desafia e devora o leitor desde o início. Feito sucuriju, abre
sua bocarra e obriga a penetrar num universo denso. Não adianta
resistir. Uma vez dentro da boca deste livro-serpente, o destino é
conhecer os seus interstícios plenos de um fazer artístico
solidamente urdido, elaborado com mãos de mestre.
Mas o romance não é apenas uma
declaração de amor à natureza ou ao homem do Amazonas. Questões
sociais permeiam o livro com precisão, abrindo chagas na História
nacional. Quem desejava conhecer o melhor da literatura sobre o
Amazonas tinha que passar por “A Selva”, de Ferreira de Castro; “Marajó”,
de Dalcídio Jurandir; “Cabanos, Capital: Cabânia”, de Santana
Pereira; “Verde Vagomundo”, de Benedicto Monteiro, e Márcio Souza,
com seu já clássico “Imperador do Acre”. Agora, para alegria de
todos que amam a literatura nacional, A Espera do Nunca Mais é uma
nova parada obrigatória rumo ao conhecimento filosófico e
existencial da Amazônia.
*OSCAR D’AMBROSIO é
jornalista, crítico literário e autor de “Os Pincéis de Deus”
(Ed. Unesp)
Leia
obra poética de Oscar D'Ambrósio
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