Nicodemos Sena
Fortuna Crítica: Caio Porfírio Carneiro*
Universo metafórico de Nicodemos Sena
20/12/2003
Tem-se a impressão, ao início do
livro, que Nicodemos Sena traçou o seu segundo romance, “A Noite é
dos Pássaros” (Editora Cejup, 2003, 136 p.), em parâmetros mais ou
menos similares ao drama de Hans Satden, preso indefeso dos índios,
que entrou, com sua narrativa espetacular, pelos caminhos da
fantasia, da literatura juvenil e chegou ao cinema. Mas se vê, logo
a seguir, que é outra a verdadeira “explosão” ficcional deste livro.
Centrada em 1750, Nicodemos “revolve, de maneira surpreendente, a
vida nativa da foz do rio Amazonas... tendo como tubo de ensaio os
costumes indígenas, sobretudo o canibalismo, que ameaça, em
suspense, no correr de toda a estória, a personagem central do
romance...”. Vem ao vivo até, em pincelada rápida, o indigitado Dom
Pero Fernandes Sardinha, devorado pelos caetés lá pelo idos de 1556.
Tudo isto é pano de fundo; tudo
isto é apenas tomada de cena histórica; tudo isto é lembrança do
tema a ser tratado aqui, centrado na Amazônia setecentista. O
personagem narrador, prisioneiro dos aborígenes, que pensam
transformá-lo em banquete “bárbaro”, vive não apenas o mundo real e
selvagem. Este é o ponto nodal da obra, que caminha para o
alegórico, o fantástico, o mistério, o sonho, as lendas, a
espiralação poética, sem desestruturá-lo. Ao revés, valendo-se desse
jogo cênico, meio épico e mágico, e de linguagem personalíssima, que
caminha do melhor lavor literário ao praticamente anedótico, com
expressões populares bem atuais, este escritor vai tecendo a
história de suspense em suspense. E de surpresa em surpresa.
Surpresa em tudo: do profundo conhecimento do falar dos nativos ao
envolvimento pleno em seus hábitos e costumes. São tantas as
expressões do falar indígena (com as respectivas traduções entre
parênteses), que pouco faltará para que esta obra venha a ser
bilíngüe.
O narrador é vítima, jovem
português, que balança entre o ateísmo e a religiosidade, conforme
as motivações por que passou, é um caso sério, é personagem único na
nossa literatura. Ele e o seu amor Potira, filha do tuxaua, compõem
uma dupla que ciranda e ciranda, em altos e baixos, em todo o texto,
conforme os ventos e vendavais do andamento da história. Ela não
chega a ser uma Iracema alencarista, e nem poderia, porque é uma
índia “moderna”, que viveu há 250 anos. É que o autor foge belamente
de qualquer padrão didático e não segue uma linha narrativa
uniforme. Daí, a “explosão” de novidades literárias já referidas;
daí a instigância da obra; daí a sua originalidade. O sonho e a
realidade se fundem e se completam. Os últimos capítulos são
antológicos, caminham para a problemática filosófica entre a Vida e
o após Vida, e se espiritualizam em poema pleno, particularmente
quando a ave caburé-açu fala com o jovem português.
O autor informa que pesquisou
muito para escrever este romance e a vida dos tupinambás. Pois o
resultado foi compensador. Está aqui, nesta obra valiosíssima, onde
arte criadora alcança picos de belezas admiráveis, pela magia do
como dizer do autor.
“A Noite é dos Pássaros” é muito
mais que um romance calcado em documentos. É uma roldana mágica,
envolvente, com vigor criativo notável na tessitura da vida dos
nativos e suas heranças culturais, da floresta, seus animais e
pássaros, onde o jovem português e sua amada Potira, que o salvou da
morte no último momento, envolvem-se e nos envolvem também nesse
mundo estranho e fascinante, real, emblemático e metafórico.
Romance, e quase Canto, para ser
lido, sentido, e dele não mais se esquecer.
*CAIO PORFÍRIO CARNEIRO é
ficcionista, autor de “Trapiá” e “Maiores e Menores”, entre outros.
Leia
obra poética de Caio Porfírio Carneiro
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