Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Nicolau Saião


Soares Feitosa ou os perfumes do mundo

 

 

Posso imaginar, nas minhas horas, a vida eventual e projectada deste cidadão, daquele amigo, de um outro cuja figura se cruzou com o meu olhar por uns raros momentos. Posso supor, posso encenar, posso-o até conferir por dentro e por fora dos tempos que nos são comuns. Tudo isso é, já se sabe, matéria de realidade e de sonho. Melhor dizendo: do que se certifica em cada um de nós, dado que tudo é a um tempo mutável e multiplicável - uma vez que os mundos de quem vive e de quem recorda (efabula?) se interpenetram mediante a escrita e a imaginação criadora. E se é verdade que, ao fim e ao cabo, tudo vai terminar num livro (na literatura que está para além dos minutos quotidianos), de que maneira é que se conformam esses estranhos pedaços de universo – do universo que se vai construindo através do corpo e do espírito que dá origem ao mítico reino das palavras vivas? 

   Francisco (Soares Feitosa) sabe que “as sementes são fartas e o vento generoso”. Viu de noite, em longas caminhadas sertanejas, “a mata, a floresta, os chãos nossos de cada dia”. Andou pelas quebradas das serras, sob as árvores copadas onde por vezes repousam os animais ao crepúsculo, contemplou os cavalos, o beija-flor e a sombra que ele mesmo fazia ao caminhar na madrugada escura para uma povoação encontrada ao raiar do dia definitivo. E por isso ele pôde colocar, num envelope tingido pela cera das abelhas do sertão onde se ramificavam palavras escritas (como “cacimba clara”, como “estrelas”, como “a vaca rainha, os bodes, os capotes”), sementes de imburana-de-cheiro “torradas e moídas pelo próprio autor”, para assinalar  esse grande ímpeto rural e cósmico que cifra a sua poesia – essa poesia estuante de vida e de participação que nos encanta e simultaneamente nos interroga e de repente faz surgir imagens de ao pé da porta, como se estivéssemos ali: “ Era de noite que chovia:/ gotas amarelavam/ à luz frouxa da lamparina de querosene,/ e as mãos cruzadas do menino,/ frio da serra,/ quase-escuro da noite:/ naquele instante era,/ se fundava/ a cheia da cisterna!”(…), diz-nos ele a dado passo criando de repente um fragmento intemporal das vivências que nos são comuns nas duas latitudes, nas latitudes todas.

  No seu livro “Psi, a penúltima”, livro seminal duma poesia que, tal como o seu autor, excursiona pelos quatro pontos cardeais e nos empolga ao dar-nos reminiscências, memórias, esperanças verdadeiras e retratos das cidades e dos campos que umas vezes se contemplam e outras se adivinham, Soares Feitosa (Francisco) é bem o aedo, o nosso próximo de humanidade ao dizer-nos impressamente: “Anda comigo, meu parente, veremos tanto o distante mar como as coisas conhecidas e as figuras que as habitam. Aqui te deixo a lembrança dum primo, dum avô, dum momento imorredoiro. Eis o sol e a penumbra, eis o voo dum pássaro, o cantar dum galo, o sinal dum verso numa página de acaso. E sobre tudo isto, junto de tudo isto, os perfumes das campinas e os sons da vida que se evola”.

    Impressamente. Serenamente, mas com a vivacidade de quem tem em si o conhecimento do que significa uma palavra posta e escrita em cursivo, sublinhada num livro como numa pauta de música, aberta na manhã dos homens como um vulto caminhando firmemente num bosque ou na rua duma cidade longínqua.

 

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22.08.2007