Nilto Maciel
O contista Eduardo Campos
Embora não
tenha alcançado notoriedade no resto do Brasil, no restrito espaço
da crítica literária, Eduardo Campos tem seu nome gravado em alguns
importantes compêndios de História da Literatura. Assim, está
presente em A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, pelo
menos no ensaio de Herman Lima: (...) “folclorista de altos méritos,
tem, naqueles livros (refere-se aos três primeiros da bibliografia
do contista), alguns contos regionais e psicológicos da melhor
marca, a exemplo de “Os Abutres” e “O casamento”, o último,
principalmente, na sua força bem da terra cearense, dos mais belos
da atualidade brasileira”.
Eduardo Campos
é um mestre do conto psicológico. No conto “O Afogado”, do livro
As Danações, o drama parece ir se deslocando não de lugar, mas
de personagem, sob a óptica do narrador onisciente, que aqui e ali
dá voz a algumas personagens secundárias. Na verdade, o protagonista
e aquela que seria a co-protagonista pouco agem, nada falam. O lugar
é uma praia, a lembrar Fortaleza. Um pedaço de praia, onde banhistas
e barraqueiros se locomovem. Toda a ação se dá em poucas horas, que
vai da chegada dos namorados, talvez no meio da manhã ou já de
tarde, ao anoitecer, quando a lua retornou “redonda e luminosa”. As
personagens, no entanto, vão cedendo lugar a outras. Assim, José
Joaquim, que se afogaria logo após os primeiros momentos da
história, e Rosinha, sua namorada, mal se dá a tragédia, vão
desaparecendo (ele, obviamente, por sumir nas águas) e em seu lugar
surgem personagens secundárias, a beber, conversar, falar do
afogamento. O protagonista seria o afogado? Ou seria a podridão
moral dos homens? No final, com o surgimento do cadáver, um “toco
humano” “a girar lento”, com os “dois calcanhares nus,
desfigurados”, o narrador arremata a narrativa com uma frase
moralista: “Foi quando os homens, amesquinhados, começaram a pensar
que não era o afogado que malcheirava, mas eles, que haviam
apodrecido em vida”.
No livro
Três Momentos da Ficção Menor, F. S. Nascimento analisa o conto
“O Abutre”, no “Momento III” e defende a tese de que “já em 1946
esta concepção de “new short story” era praticada no Ceará,
efetivando-se na criação de “O Abutre”, de Eduardo Campos.” Na
justificativa de seu ponto de vista, o crítico conclui: “o que se
evidenciam no curso desta narrativa são impulsos solitários gerando
monólogos interiores que se convertem em projeções visionárias. São
mergulhos no inarticulado, em que os reflexos assomam em forma de
ilusões. São engolfamentos do ser, onde a palavra reponta como um
disparo em meio de um silêncio funesto e perturbador. Por tudo isso,
“O Abutre” se impõe como um modelo da “new short story”, sendo tão
atual quanto “Cão Vadio” de Fran Martins, “Os Sete Sonhos” de Samuel
Rawet, “A Coisa” de Garcia de Paiva” e qualquer uma das unidades
narrativas de O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro.”
Eduardo Campos,
no entanto, não se repete nas formas de narrar. Assim, no conto “A
Viúva Enganada”, do mesmo livro As Danações, embora também se
valha da onisciência, da narração entremeada de diálogos, e
Fortaleza seja o lugar da ação, mais precisamente o Pirambu, o
conflito central se vai delineando sutilmente. A protagonista,
Paulina, viúva do pintor de paredes Chico Pedro, é, como o leitor,
surpreendida, ao final, com a chegada da outra, para o velório. A
surpresa, no entanto, deixa de ser surpresa, se se atentar para o
título da narrativa. Assim, o desenlace se esboça não no começo, mas
no título, o que não deixa de ser curioso, se não for original.
No conto que dá
título ao livro o contista também não muda o ponto de vista, e a
narração vem recheada de falas curtas e diálogos breves,
acrescentado o discurso indireto livre, embora ainda sem muita
ousadia. O conflito, ainda uma vez, se dá no desfecho e na forma
utilizada no conto analisado anteriormente, isto é, ele, o conflito,
se apresenta não no início da narrativa, mas no título, embora de
forma implícita ou simbólica, vez que o vocábulo “danações” pudesse
e possa ter variadas conotações.
Na opinião de
Braga Montenegro, no ensaio “Eduardo Campos, Contista”, publicado
como apresentação de O Abutre e Outras Estórias (1968), “é no
conto onde melhor se manifestam suas qualidades de talento”. E
acrescenta que se manifesta, “com maior freqüência, em Eduardo
Campos o feitio de um escritor regionalista, no que não lhe vai
qualquer restrição”. Mais adiante argumenta: “Suas inclinações de
contista operam com maior força nos elementos de fabulação, nos
problemas de essência, nos componentes, por assim dizer, narrativos,
que dão às suas estórias um tom conteudístico de ação muito
evidente, mas lhe retrai em parte a disposição criadora expressiva”.
Em O Abutre
e Outras Estórias, possivelmente escrito logo após As
Danações, Eduardo Campos utiliza outros focos narrativos. Assim,
em “O Casamento ”, se vale do ponto de vista do escritor onisciente,
que dá voz às personagens em breves diálogos diretos e também em um
monólogo interior. O mesmo ocorre em “Céu Limpo”. No entanto, em
“Ela Era Seu Lar” o contista dá uma guinada de muitos graus, ao
deixar de lado a tradicional narração em terceira pessoa, com
diálogos, utilizando um misto de monólogo interior e narração de
observador, sem nenhum diálogo. Como aqui: “Ao regressar do banho,
cantarolando (terá forças para tanto?) não achará a mesa posta, com
a dignidade anterior, e nem os pratos, os tomates ao natural,
recortados caprichosamente”. E aqui: “E principia a notar que foi
antes um trambolho, um ser inútil dentro de casa”.
No artigo “O
Ficcionista Eduardo Campos”, (EL), Francisco Carvalho analisa o
volume de contos Dia da Caça assim: “São contos de estrutura
relativamente simples, em que se evidencia a familiaridade do Autor
na abordagem de certas manifestações do lirismo popular, ao lado de
uma particular sensibilidade pelos termos ligados à terra e ao
homem”. Em outra passagem argumenta o crítico: “Os seus processos
narrativos são bastante simples e não revelam qualquer preocupação
imediata de originalidade estilística”.
Passando dos
primeiros livros para os mais recentes, como A Borboleta
Acorrentada, observa-se que a linguagem do contista em nada
mudou, consciente de que os modismos passam e o mais valioso na obra
literária não está na aparente transgressão de normas. O ponto de
vista onisciente ou da terceira pessoa Eduardo Campos não abandonou,
mesmo quando a maioria optou pela primeira pessoa. Assim também o
uso da narração seguida de diálogo, raras vezes se valendo da
linguagem puramente oral, dando preferência à literária, sem
afetação. O conto “Depoimento ou Descrime Com Muito Amor” é
constituído todo ele de um diálogo, quebrado apenas na última fala,
como numa chave-de-ouro. Talvez assim idealizado para que o desfecho
se retardasse e atingisse o leitor com mais agudeza. Apesar desse
apego à narração, o contista não esqueceu as outras linguagens, como
o discurso indireto livre. No conto “À Viúva de Anágua, Canário e
Gato, Tudo Pode Acontecer” isto ocorre logo no início e em diversos
momentos da narrativa. Percebe-se também a presença, embora não
muito freqüente, do monólogo interior indireto. As personagens
continuam bem delineadas, definidas, como se fossem retratos do
cotidiano. Até mesmo aquelas que nas mãos de alguns narradores
poderiam se transformar em personagens bizarras, irreconhecíveis aos
olhos dos leitores de outras culturas. Assim também se pode falar da
apresentação dos conflitos das narrativas. Nada de explicações,
volteios circenses, excesso de figurantes e cenários. Tudo muito
comedido, como se escrevesse para o palco ou o cinema mais
artístico, criativo. Nada hollywoodiano. Veja-se o conto “O
Reencontro”. O homem que volta ao lar, após anos e anos (“o desgaste
físico, a irremediável fragilidade do homem vencido”), bate à porta
da ex-esposa, subserviente, aniquilado, a confissão de desamparo
(“Ela largou você? Mais ou menos.”), a recordação (“E nossos filhos?
Fale-me deles...”). Tudo muito medido, sem meias-palavras. Tudo
muito bem pintado, porém sem extravagâncias, apenas cadeiras, os
quadros da sala, o velho sofá, o tapete. E closes, muitos closes, no
rosto, nas rugas, nos braços do homem desiludido.
Na opinião de
Herman Lima, “os contos “O Abutre”, de Eduardo Campos, e “Lama e
Folhas”, de Moreira Campos, por exemplo, são dos mais belos e
originais, que já se escreveram entre nós, em qualquer tempo”.
Leia Eduardo Campos
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