Nilto Maciel
A mão firme de um contista
Constituído de
23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos, de
Astolfo Lima Sandy, apresenta um painel de personagens e situações
bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num
tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no
curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama
deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O
protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a
rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens
(como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de
denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os
meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele:
toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só
parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os
personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma
ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais
uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o
palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados
dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.
Os personagens
de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como
caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é
um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme
afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um
cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista
de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação
para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face
descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é
descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia
velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem
algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens.
A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O
Debate”, onde “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta
importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de
intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca
inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também
sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma
mulher muito loura enfeitada de batom e jóias”, “um palhaço tomando
coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.
O uso contínuo
da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e
psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de
Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a
linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um
ataque.
O ponto de
vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na
terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o
protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como
adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se
operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns
defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o
sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do
monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam
dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem
menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa
de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da
trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem
único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado
de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de
uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia.
Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos
dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com
a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo
se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões
como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir
indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a idéia de uso de
arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá
que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais
funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os
políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco,
um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da
televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O
personagem lembra aqueles que vêem nos personagens de novelas
televisivas pessoas de carne e osso.
Poucas são as
narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como
“Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de
móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras,
móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o
ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro
conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas
maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai
da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta,
constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se
dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves,
ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior
das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como
para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na
forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração
de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas
dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a
narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.
Em “O encontro”
tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que
o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a
comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os
primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em
desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se
buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de
ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora
freqüenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que o demônio do
ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).
O choque entre
personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de
Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico.
Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O
narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no
meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade
diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo
substituiu o comércio normal e, por conseqüência, tudo se
transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática
da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo
diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa
singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os
poetas”, assim como em “Confissão”.
Ao término da
leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em
Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor,
aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana
e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas
técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples,
porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.
Leia Astolfo
Lima Sandy
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