Paulo de Tarso
Pardal
O encantamento do discurso ou o
discurso do encantamento?
01.06.2003
Desde o primeiro livro publicado, Barros Pinho constrói um discurso
que encanta pelas imagens e pela visão poética do mundo. Se a
linguagem poética pode ser definida, também, por um certo
´estranhamento´, por uma relação sintática e semântica que
ultrapassa o discurso cotidiano (muito embora o comum e o cotidiano
componham, também, esse discurso), então podemos afirmar que Barros
Pinho sabe desconstruir a linguagem, para chegar ao encantamento que
emoldura seus textos. Falo de textos, porque o discurso do
encantamento dá-se não só em seus poemas, mas em seus contos: esse
autor ´cearense-piauiense´, como disse Blanchard Girão, deve crer
que a poesia é o ´triunfo da palavra/ sobre as idéias´, para citar
uma das ´Indefinições´ de poesia, de outro desconstrutor da
linguagem: Francisco Carvalho.
Citando apenas dois exemplos - ´As manhãs traziam o sol no ventre.´
e ´quem é o dono do sol também sabe da noite´ -, logo percebemos que
Barros Pinho não perdeu o fôlego das imagens, quer escreva um conto
(o primeiro exemplo é do conto ´Faceirice da Burra Sabiá nos Alegres
do Zeca do Bonário´, do livro A viúva do vestido encarnado, de
2002), quer escreva um poema (o segundo exemplo é do poema ´balada
para dom jerônimo no arco-íris´, do livro pedras do arco-íris ou a
invenção do azul no edital do rio, de 1998).
O seu texto, assim, vai sendo costurado através desse discurso
encantatório, dessa linguagem multifacetada, que tem tanto essas
imagens de encantamento, como as falas comuns, desmetaforizadas:
´era noite/ no beco da cidade/ maria/ ia e vinha/ pra me dizer/ que
estava sozinha´ (de ´mari(a)posa´ do livro Planisfério, de 1969).
O que me impressionou, realmente, foi o talento de Barros Pinho com
o conto: este, sim, acho que deva ser seu rumo na literatura. Seu
conto tem algo de novo; tem uma nova dimensão da linguagem (embora
se possa dizer que a sintaxe roseana esteja presente em seus textos;
se for assim, melhor ainda: quem não sofreu influência do mestre
Guimarães Rosa?); tem um sentido de resgate cultural, com releituras
de causos do nosso sertão, sem se deixar cercar pelo ´regionalismo
puro´, termo que agora cunho para falar das obras-primas dos grandes
mestres. Ele cria novos procedimentos estruturais, principalmente, a
partir da visão do narrador; constrói o humor característico da
nossa gente. O que fica, para nós, leitores, é a vontade de ler mais
histórias que digam respeito a um povo que tem uma maneira muito
própria de conviver e de enxergar os caminhos da existência. Em
relação à estrutura dos contos, o foco narrativo e o ponto de vista
são os elementos que mais chamam atenção: Barros Pinho constrói um
narrador-poeta, que conta os casos do sertão com o olhar do
cantador-de-viola, olhar cuja liberdade de expressão é que dá o
encantamento do discurso. É por esse motivo que, em alguns contos, o
enredo parece diluir-se e esconder-se atrás da fala desse
narrador-poeta, que adquire uma nova função na narrativa: encantar a
história. É isto que dá a dimensão poética aos contos.
Para esse narrador - quer ele esteja dentro ou fora da ação -, o
sertão é um espaço privilegiado, é um espaço mítico de onde emergem
os valores éticos e os códigos de honra de um povo que, quase
sempre, é acostumado a resolver suas diferenças através de
procedimentos medievalescos - a morte parece ser uma punição
acordada e aceita, sem culpa, por parte de quem mata; o desejo não é
racionalizado e aflora da parte mais escondida do instinto do ser
humano, e sua saciação é quase imediata, em alguns contos. A mulher
está sempre no centro das tensões, ora como símbolo de pureza (´...
na troca de prosa que nem sempre mulher podia ouvir sem espantar sua
pureza.´1), ora como provocadora de instintos libidinosos, que têm
uma relação direta com a morte, visto tratar-se, quase sempre, de
traição: ´... dona Amália vem se chegando no meu rumo direitinho
cobra quando perde o veneno. Num aconchego sem demora, faz a gente
trabalhar o corpo dela, com risco de morte a amargar o gosto do
prazer.´ (p.18)
O narrador do livro A viúva do vestido encarnado é a estrela do
texto. Isto subverte as teorias do conto: é aqui onde se encontra,
também, a renovação das narrativas de Barros Pinho - esse narrador
não tem um compromisso fatual e formal com o enredo, embora, em
alguns contos, esse enredo esteja bem estruturado. O que importa,
aqui, é a visão poética do mundo das personagens: Barros Pinho
construiu um narrador fora dos padrões tradicionais. O enredo, por
isso, em alguns contos, fica em segundo plano, e a narrativa
delineia-se unicamente através da visão desse narrador
descompromissado. As ações, que deveriam guiar o leitor para
entender o enredo, entrelaçam-se a outros elementos e, no final,
restam muitos vazios a serem preenchidos pelo leitor. Alguns enredos
parecem anedotas, pela economia das ações, pela linearidade das
personagens e, principalmente, pelo desfecho do relato. Este é o
caso de ´ O casamento de Antônio Veredão´, um personagem
raparigueiro por vocação; ou ´O destino do Zelino da Serra´. Esses
contos iniciam com a saga de seus personagens, com um enredo
direcionando para um destino tenso, e o resultado é um desfecho
hilário.
Essa característica aproxima os contos dos relatos orais do sertão,
o que demonstra que Barros Pinho é um grande conhecedor de causos
que compõem o imaginário do povo. Se o enredo assemelha-se à
anedota, o discurso complementa aquilo que levaria o relato a ser
considerado, simplesmente, uma piada, e o texto reverte-se de um
lirismo ímpar, o que, de certo modo, dá uma nova dimensão à
estrutura tradicional do conto. O enredo, assim, passa a ter um
valor relativo e, neste caso, não é definidor do gênero. O
descompromisso do narrador, com a ação do relato, aproxima o texto
de Barros Pinho à prosa poética, e isto não é de estranhar, uma vez
que esse autor estreou na literatura com o gênero poesia e, desde
1969, vem publicando livros de poemas.
O mérito deste poeta está a) em aproximar as linguagens de dois
gêneros distintos, resultando em um trabalho pensado, elaborado
lingüisticamente e b) construir contos de extrema compreensão da
cultura sertaneja. A linguagem poética reveste de lirismo as ações,
e o resultado é um texto compromissado com nossos valores culturais,
e com a memória de um povo que, também, vive pelo prazer de viver
(sem o ranço do sofrimento causado pela rudeza do sertão), ou, como
diz o narrador, sobre um personagem: ´Vivia sem o cansaço de viver.´
(p.83) Para termos uma idéia dos relatos, basta que atentemos para
os títulos dos contos: o prazer do texto inicia-se pela leitura
desses títulos: ´O Zeca do Tiro no bode da Nazária´, ´Josefa da
Neblina na Roça do Abdon´, ´O Cego Beluz e o Coronel Veridiano da
Várzea do Sol´, ´Faceirice da Burra Sabiá nos Alegres do Zeca do
Bonário´ etc. A melodia dos títulos mostram, também, a vertente
poética de Barros Pinho.Se analisarmos o conto ´Mundica, mulata do
cais´, por exemplo, perceberemos que os vazios na seqüência das
ações são tão grandes - apesar de o seu perfil ser traçado desde
quando era menina - que, ao final, a personagem se encanta: não
sabemos o que houve com ela. Evidentemente, podemos fazer hipóteses,
pela sugestão do texto e por tais vazios, e todos eles serão
válidos, desde que não ultrapassem a linha do bom senso.
Independente de se chegar a uma conclusão definitiva do paradeiro
dela, o que se observa é que a personagem é apenas um pretexto para
esse narrador desenhar, com seu pincel de poeta, o mundo em que ela
viveu. É, realmente, instigante procurar o motivo de o ponto central
do conto ser uma personagem, e tal personagem diluir-se no enredo. O
narrador conta a história da personagem, mas ele, além disso, abre
um leque de motivos e de temas paralelos, que gravitam em torno da
personagem, e ela, que deveria ser a protagonista da história,
encanta-se, no meio do enredo. Na verdade, o que gira em torno dela
- personagens, espaço, micronarrativas que paralelamante se juntam à
sua história -, e, principalmente a visão do narrador são o centro
do conto. Assim, ela passa a ser, apenas, o mote para o narrador
construir o seu mundo poético, e, não, o mundo fechado da
personagem. Embora isto aconteça, o perfil dessa personagem vai
sendo formado, pela sugestividade do discurso e pelas relações que
os motivos paralelos têm com ela: são camadas de ações paralelas que
se sobrepõem umas às outras, formando um palimpsesto. Isto é o que
marca, de maneira geral, os contos de Barros Pinho.
Em outros contos, o enredo aparece bem nítido, com uma estrutura
tradicional de enredo, e com ações revestidas de tensões, o que
demonstra que Barros Pinho conhece a técnica deste complicado
gênero: este é o caso, por exemplo, do conto que dá título ao livro.
A força de opinião da personagem ´Donana´ é a mesma força da
personagem ´Dôra´, de Rachel de Queiroz, do romance Dôra, Doralina.
A diferença é que uma veste-se de azul, e a outra, de encarnado. Se
Dôra sai da fazenda Soledade com um vestido azul, contrariando o
ritual do período de luto, imposto pela tradição católica, a
personagem ´Donana´ é muito mais ousada, pois vai à missa de 7º dia
do marido com um vestido encarnado, afrontando todos os rituais da
Igreja.
Do livro Dôra, Doralina:Tirei o luto para a viagem. Se pudesse
tirava a pele, arrancava os cabelos, saía em carne viva.
Senhora protestou ao me ver com o meu costume azul:- Você faz
questão de causar escândalo?
Cerrei a boca com força, não respondi, mas não mudei de roupa.
Atravessei toda Aroeiras, comprei passagem esperei, tomei o trem,
vestida de azul.
Do livro A viúva do vestido encarnado: Tia Donana vinha serena e
bonita mas estampada no rosto a cicatriz do seu sofrimento. Vestia o
vestido encarnado da promessa feita ao italiano, seu marido, sob o
olhar espantado de quantos se preparavam para assistir à cerimônia
oficiada pelo cônego Deusdedith de Freitas, que nos dentros dos
botões de sua batina viveu atormentado por muito tempo. (p. 127)
Os excertos mostram o quanto as personagens estão sofridas, tanto
pela morte dos maridos, como, principalmente, pela mágoa. Elas foram
traídas e, a partir do conhecimento desse fato, reelaboram suas
vidas, com a disposição de quem sabe que o casamento é para ser
vivido dentro de uma linha de conduta que não ultrapasse o
suportável, mas elas só se dispõem a mudar quando os maridos morrem.
Apesar de todas as transformações por que a sociedade contemporânea
já passou, este é, ainda, um padrão de comportamento,
principalmente, do interior, quando as condições de trabalho são
muito restritas, em relação à mulher. A dependência, tanto familiar,
como econômica, ainda parece ser a causa desse comportamento. De
qualquer forma, a vida real está fielmente representada nos textos
acima referidos, o que, para a nossa análise, é indicador que Barros
Pinho também constrói textos com um consciente realismo social.
Se a distância dos instintos e do comportamento desse povo, para a
sociedade contemporânea, está longe, mais perto fica da vida no
sertão, porque é exatamente isto o que ocorre em nosso interior.
Ainda em relação ao narrador, há um elemento estrutural que marca o
discurso de Barros Pinho. Esse narrador distanciado, repentinamente
(e sem as marcas textuais de mudança de fala), cede lugar a uma
personagem, e a narrativa flui como se estivéssemos ouvindo uma
História de Trancoso. Esta mudança de foco narrativo resgata a
tradição oral que existia no sertão, e que a modernidade, com toda a
sua tecnologia, engoliu, prejudicando sobremaneira aquilo que exista
no imaginário coletivo sobre tais histórias, que remontam ao período
da colonização, e que firmava uma cultura e marcava uma memória. O
conto que mais se aproxima daquilo que se convencionou chamar de
´História de Trancoso´ é o de título ´O 10 nos limites de Bené
Gavião´. Este conto encerra uma história de cunho realista e mítico,
com um personagem comum, que transforma-se, após levar nove pisas, e
assume o papel de ganhador, na última que lhe queriam dar. Aqui, as
ações são encaminhadas dentro do padrão tradicional, com personagens
e narrador bem definidos; com ironia, humor, sofrimento e morte; com
tensões; com início e desfecho mítico. O início: ´Esta história é um
sonho sonhado de dentro da realidade. Bené dormiu, quando acordou, o
acontecido se sucedera com as mãos em sangue.´ (p.83); o fim: ´Cancão
contava para quem quisesse ouvir: - O Bené pulou este batente e saiu
daqui com uma cabeça de onça, o corpo de homem e asas de gavião
encantado.´ (p.85) A voz anunciadora do discurso estabelece, logo de
início, um diálogo com o leitor, e firma-se o pacto da história:
aqui ficam bem definidos o contador, a história e o público: era
assim que as ´Histórias de Trancoso´ iniciavam, com esse pacto, que
tanto chamava a atenção e prendia o ouvinte, como fazia todos crerem
na veracidade dos fatos contados, que encantavam os que tiveram
oportunidade de ouvi-las. (Fui desse tempo.)
De certa forma, os contos de Barros Pinho reavivam, em nossa
memória, esse contar, que formou tantos bons leitores e
escritores.Acho que se isso viesse a ocorrer, hoje, sem dúvida,
teríamos leitores proficientes e excelentes produtores de texto, o
que, infelizmente, está raro, nos tempos atuais. Então, o livro de
Barros Pinho é importante não somente para a contística
contemporânea e sua estética (na verdade, acho que este livro
demarca o conto cearense), mas como importante peça de formação
desses leitores, tão carentes de livros que despertem o prazer de
ler.
Paulo de Tarso Pardal
Escritor e professor
Leia a obra de Barros Pinho
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