Paulo de Tarso
Pardal
Beira-Sol - Uma construção de
símbolos
21.10.2001
Adriano Espínola é um construtor de símbolos que reelabora o
discurso preservando o lirismo perdido na produção literária
contemporânea, fruto das transformações da criatividade brasileira.
Essa é, também, uma atitude pós-moderna, haja visto o descentramento
das identidades levar o sujeito a ter muitos referentes, diante dos
quais torna-se imperiosa a escolha, também, de muitos deles. Esta é
a conclusão da análise que se segue sobre a obra Beira-Sol,
elaborada pelo mestre em Letras, Paulo de Tarso "Pardal".
O sol, exata e verticalmente, em cima de cada um é o verdadeiro
senhor da cidade e a tudo consome com sua energia.
A prostituta é um ser que briga, que conhece o comportamento dos
homens,que é remunerada por seu trabalho, mas que tem uma noite
miserável.
A trajetória do livro Beira-Sol, de Adriano Espínola, refaz o
caminho do povoamento: do mar, para o sertão; vai da praia para o
centro da cidade.
Fortaleza é mostrada através daquilo que é sua marca tropical: a
claridade do sol.
O senso de direção e de caminho é uma característica de Adriano
Espínola. Em Táxi e em Metrô, por exemplo, há também esse movimento.
É como se o poeta gostasse de traçar um roteiro, pelo qual ele vai
guiar o leitor, na revisitação poética dos elementos evocados.
Por conta disso, em muitos poemas da primeira parte do livro
Beira-Sol, há a contemplação da praia e de seus elementos: pesca,
praia, dunas, morro do Mucuripe, jangadeiro etc; na segunda, há a
contemplação daquilo que faz parte do centro da cidade: praça,
frutas, zoológico, catedral, lavadeiras etc.
Essa bipartição não é rígida. Há elementos que fogem a esse esquema
de disposição dos poemas, afinal, esse roteiro é poético.
O livro, dentro dessa visão, não é composto de poemas "soltos", em
que cada um fecha-se sobre si mesmo e isola-se dos demais.
Cada poema tem uma relação de cumplicidade com o que se lhe
avizinha. É por esse motivo que se pode ver o "refazimento" de um
deles, que acaba gerando um outro; é o caso de "As lavadeiras de
Maraponga" e "As lavadeiras", em que alguns versos são comuns aos
dois poemas.
Essa relação de irmandade entre os poemas aproxima-os ainda mais e a
unidade do livro fica muito mais segura: o poeta fala de várias
coisas e de uma só: o universo da cidade. É uma cidade em movimento,
que é histórica, pois é de Fortaleza que o poeta fala, mas simbólica
e mítica, porque povoada de elementos que ultrapassam suas
individualidades e adquirem o estatuto do símbolo: é o engraxate, o
jangadeiro, a prostituta, os vendedores, os biscateiros etc.,
personagens de todos os tempos.
Beira-sol é como se fosse uma grande narrativa, feita através de
vários poemas.
Este procedimento tem algo do caminho épico de Táxi, que Pedro Lyra
chamou de uma "autêntica epopéia brasileira da pós-modernidade."
Passada a revolução concretista que desintegra a palavra e que
assume o ludismo e a configuração visual do poema, os poetas
reavivam a sintaxe do discurso e criam novas estruturas de versos e
de ritmos.
A linguagem de Adriano Espínola, nesse contexto, aparece renovada,
metaforizada e simbólica. A geração a que ele pertence reassumiu o
lirismo e a discursividade do verso.
Isso faz parte da renovação pós-modernista. Adriano faz uso tanto
das formas tradicionais (o soneto inglês, por exemplo), como da
pós-moderna - o poema visual. Tudo isso, porém, aparece renovado: o
soneto pode ser formado por um só bloco de versos - uma só estrofe;
em outro momento, ele é formado por quatro tercetos e um dístico.
Tais sonetos, porém, não perdem a estrutura interna decassilábica -
ponte de ligação com o passado.
Na tendência concretista, é rara a quebra da palavra, mas há a
quebra da sintaxe ("Mariterra"), assim como há, concomitantemente, a
utilização do verso tradicional; há o lúdico jogo de palavras e a
sugestão do desenho, como é o caso dos poemas "O coqueiro" e "Os
pássaros". Essa mistura é também um procedimento pós-modernista.
Deve-se notar, também, que os poemas estão dispostos, visualmente,
de acordo com a sugestão melódica e semântica de cada verso.
Em Beira-Sol, há poemas alinhados de diversas maneiras: uns
centralizados; outros alinhados pela esquerda. Esse alinhamento vai
depender do ritmo de cada verso ou da expressividade de cada
palavra. É por isso que a disposição de cada um deles vem
graficamente distinta das que se lhe avizinham, daí a variedade
melódica e rítmica da sintaxe dos poemas.
A estrutura do cordel aparece no poema "Mucuripe, peixe e paixão",
em que se pode perceber a cadência da sextilha (com versos em
redondilha maior), do martelo agalopado (décimas decassilábicas), da
oitava em quadrão (oitavas em redondilha maior) e do galope à
beira-mar (com décimas em hendecassílabos).
A utilização dessas estruturas diversificadas mostra o quanto o
poeta conhece as métricas das formas poéticas populares nordestinas.
Para isso, basta perceber que no galope à beira do mar, por exemplo,
as acentuações dos versos estão na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílabas, o que
caracteriza a cadência dessa forma: é a imitação do próprio galope
do cavalo.
Em relação à linguagem, Adriano Espínola, no livro Beira-Sol,
utiliza muito a sinestesia, a metáfora e a humanização. Esses
recursos lingüísticos darão uma tonalidade abstrata aos versos,
principalmente, nos poemas conceituais. O movimento no caminho da
abstração semântica total é o que singulariza seu discurso,
distinguindo-o dos demais poetas de sua geração. É dessa maneira que
ele vai construir sua ideologia e mostrar uma Fortaleza poetizada e
simbólica.
O primeiro poema é simbólico e fala da aurora, do início de tudo. "A
aurora se desamarra do cais.": esta é a fala de um narrador que,
abrindo a cortina do palco, vai mostrar, a partir desse amanhecer
(na praia e do livro), os caminhos e os descaminhos de uma grande
cidade.
"Pesca" abre o livro e inicia a viagem poética a Fortaleza. O
narrador, como na grande maioria dos poemas, contempla a cidade e
transforma sua topografia e seus seres em material poético. Isto
quer dizer que o real evocado passa por um processo de
transfiguração e o leitor percebe a cidade de uma maneira diferente.
Aqui, o interesse volta-se para o "como" a realidade é vista - para
o discurso, portanto.
Esse poema inicia o percurso falando da aurora, do amanhecer e do
início da vida numa grande cidade litorânea. Aqui, tudo se prepara
para a luta diária: é o barco que vai para o mar, para a busca do
alimento e para o sustento do pescador. A natureza - a manhã, o mar,
as ondas, os coqueiros, o sol - abre-se para este pescador, que se
integra a ela e os dois passam a ser cúmplices e integrados num só
universo: o universo da vida e da poesia.
As imagens inusitadas, originais - é disto que o poema é formado -
vão definir a tônica dos demais poemas: Fortaleza é vista através de
um eu-lírico poetizador da dura realidade dos personagens. Este
narrador não interfere no movimento de tais personagens; ele vê e
transfigura a paisagem; ele narra poeticamente o início da labuta do
pescador e um novo desenho forma-se na mente do leitor.
É dessa maneira que Adriano Espínola constrói os narradores dos
poemas. Ele não denuncia, neste poema, direta e naturalisticamente,
o real: fá-lo de maneira esquiva, sutil, sugestiva, construindo
metáforas e humanizando a natureza: "a aurora se desamarra"; "a
manhã sacode"; "o azul estica"; o peixe é "palavra escamosa" e
"espírito agitado" porque é segredo dos mares, entidade misteriosa e
mítica, mas que convive com a realidade do pescador. São dois seres
que se juntam para dar continuidade ao movimento da vida no litoral.
Com este procedimento, Adriano Espínola sensibiliza o leitor através
das imagens e, não, pela descrição grotesca do ambiente. Aqui, tudo
se processa através de uma linguagem simbólica.
Se tudo é linguagem, há que ter o suporte da língua para concretizar
o pensamento: é disso que fala o segundo poema, "Língua-mar"; é um
poema que exalta a língua portuguesa e em cuja sintaxe será
construído o mundo evocado. É através dela que esse mundo é
transformado. O poema é aventureiro, porque está em busca de novos
caminhos - um novo discurso, para falar do real.
Se no primeiro poema há uma espécie de prelúdio, para a grande
sinfonia dramática da cidade, o terceiro poema - "Beira-Sol" - vai
servir de paradigma, para os poemas que lhe estão, simbolicamente,
próximos: "A praia", "As dunas", "No morro do Mucuripe",
"Claridade", "O jangadeiro", "O cavalo e o mar", "A rendeira", "O
coqueiro", "O urubu".
O poema "Beira-Sol" narra o início da vida na praia; os seres em
movimento, já com a realidade transfigurada: o pescador "nasce da
luz solar"; as mulheres "cantam uma canção vermelha"; os meninos
"açoitam o dorso da claridade; as jangadas "aparam a luz" etc.
Os seres evocados - o pescador, as mulheres, o menino - formam a
parte excluída da sociedade e, neste poema, são símbolos que
transfiguram a dura realidade numa explosão de imagens, que imprimem
uma nova cor ao real.
Através dessas imagens insólitas, metaforizadas, o poeta constrói um
outro mundo (o mundo poético), em que cajueiros têm o poder de
transferir, para o jangadeiro, seu "dom de vigília", elemento de que
tal jangadeiro precisa para livrar-se dos perigos do mar.
Se esse mundo aparece transformado, transfigurado, o poeta também
pode antropomorfizar, humanizar os elementos descritos. Assim, os
"brancos dedos/ entrelaçados" das jangadas são as velas ainda
amarradas aos mastros.
Esse é o procedimento que Adriano Espínola utiliza, para a
composição dos demais poemas. Dessa maneira, os outros elementos
evocados nos outros poemas da parte I - "A praia", "As dunas", "No
morro do Mucuripe" etc. - são também símbolos. Eles não valem por
suas individualidades, mas pelo que eles representam, já que são
símbolos.
Assim, "A praia" é um poema-símbolo do nosso litoral. É daí que
surge, também, a dinâmica da cidade: a vida dos homens é comparada
aos peixes fora d'água, porque há ininterruptas ações pela
sobrevivência. Entre o pescador, os homens e os peixes, há uma
profunda relação: após a luta diária, tudo retorna à praia: "ao sono
escamoso e fundo/ das águas." A água é, pois, o elemento de cujo
mistério tudo se origina: é daí que surge a vida e é para lá que
tudo volta."As dunas" formam um universo ameaçador para a cidade - é
"o bote de areia armado"; no poema, são seres vivos, inteligentes,
que só esperam pelo tempo, para mostrarem o seu poder de
transformação.
Assim como as dunas, o Mucuripe ("No morro do Mucuripe") é um ser
imponente, de onde o narrador contempla a cidade e a natureza. O
morro é também um ser misterioso, que parece estar no centro de
tudo, mas de quem não se conhece a verdadeira personalidade: "se
sonha além/ ou no centro?". Foi o elemento que primeiro foi visto
pelos navegantes; isso lhe dá o direito de antigüidade: foi daí que
começou o povoamento.
No poema "Claridade", há a metáfora da transparência. Assim como em
muitos outros poemas, o narrador procura definir o objeto do seu
foco com a clareza que a luz do sol possibilita. No entanto, por
mais claro que seja o ambiente, o descrito adquire novo conceito e
ganha textura poética.
Assim, o narrador define, indefinindo: esse procedimento é típico do
narrador que trabalha com metáforas: esse é o narrador que Adriano
Espínola construiu, no livro Beira-Sol.
O jangadeiro - outra figura simbólica e mítica - é comparado a
Ulisses, ente da mitologia grega, que passou a maior parte da sua
vida envolvido em aventuras. É uma ser destemido, corajoso que não
foge do seu destino. Assim também é o jangadeiro, que repete, diária
e simbolicamente, as façanhas de Ulisses.
Em "O cavalo e o mar" é onde há uma total abstração dos motivos
poéticos. Tudo se transfigura e os seres, "o cavalo-marinho/ & o
mar-eqüestre", metamorfoseiam-se em novas entidades. Eles lutam em
um espaço mítico: estão no plano do real e do imaginário, ao mesmo
tempo. Há uma batalha misteriosa entre os dois, mas não se sabe
porquê. Neste poema, há a revivescência do mito de El-Rei Dom
Sebastião, que "desapareceu" na famosa batalha de Alcácer Quibir e,
desde então, é motivo de poesia. O sebastianismo é o mito da volta,
do retorno de um herói que é necessário em todos os tempos. Assim, a
peleja entre o cavalo e o mar representa, como afirma a última
estrofe do poema, a luta diária e eterna entre os seres.
No poema "A rendeira", a personagem trama, com o fio do imaginário,
o sentido e o labirinto da vida. Ela tenta construir os caminhos,
como os da jornada humana. Assim como a rendeira, o poeta também
tece os labirintos da vida, mas o sonho e a realidade misturam-se e,
ao final do poema, não se tem resposta para o ato criador: o poema
representa o próprio mistério da criação. A rendeira é como o poeta:
eles tecem, constroem, criam, sem precisar de razão para isso.
No poema "O coqueiro", há uma nítida manifestação do ideário
concretista: as estrofes traçam o desenho de uma árvore simbólica.
Aí, há a raiz, o tronco e a copa. Na parte que dá sustentação a tal
árvore imaginária - a raiz - é onde se encontra a afirmação de que o
coqueiro é o próprio poema. Ele é erguido da memória, "é um verso
vegetal posto de pé", porque é da terra que ele fala - uma terra
feita de sonhos, como um poema. Se imaginarmos que a poesia de
Adriano Espínola está fincada em suas raízes e em sua gente, podemos
enxergar que aí está um dos motivos centrais de sua poética: o canto
da terra.
O vôo do urubu sobre a praia é visto como mais um elemento que
compõe a dinâmica da cidade. A função do urubu é uma só: reciclar o
material podre pelo tempo. Mesmo assim, ele é visto, como nos outros
motivos poéticos, com elegância e beleza; é heráldico porque,
simbolizando uma ave, está em quase todos os brasões; é parceiro do
sol porque seu vôo é diurno. Neste poema - "O urubu" - há um dos
raros momentos de crítica à estética do passado: o passado não serve
de modelo para a poesia do presente. Este é um momento sugestivo e
sutil: o poeta há que renovar a linguagem para atualizar os temas e
os mitos. O "podre/ do/ tempo", que é passado e ultrapassado,
recolhido pelo urubu - o "poeta de asas pensas" -, é matéria
vetusta: precisa ser recriada.
Os poemas que comentamos até agora têm a mesma dimensão simbólica e
são construídos com imagens metaforizadas e humanizadas. Eles
compõem a paisagem de uma Fortaleza revisitada pela lente da poesia,
daí a beleza de que são revestidos os motivos poéticos.
Os demais poemas da Parte I formam o bloco da revisitação histórica.
Os poemas são, na maioria da vezes, mais narrativos do que
contemplativos; estão mais próximos, portanto, do procedimento
historiográfico, mas não perdem o discurso poético. Este é o mérito
desses poemas: eles fazem a viagem pelos vultos da história, mas com
uma linguagem revestida, também, de símbolos e de metáforas.
É assim, por exemplo, em "Vicente Yáñez Pinzón": este personagem
pisou, pela primeira vez, o solo brasileiro e aqui plantou "uma
cruz.../ feita de areia e vento." Esta imagem poética é, ao mesmo
tempo, símbolo e protesto: o marco inicial foi feito de areia e de
vento - materiais multiformes, polimórficos - porque logo se
transformou e a Pinzón não foi dado o mérito da descoberta da nova
terra.Martim Soares Moreno, no poema de mesmo nome, é visto em sua
dimensão histórica e lendária: histórica porque aqui "... fundou um
forte de colunas/ destemidas..."; lendária porque José de Alencar
tornou-o mito, juntamente com a belíssima e romântica Iracema.
Martim Soares Moreno sonhou com uma cidade portuguesa; Matias Beck,
com outra Holanda.
Adriano Espínola dedica dois sonetos a Matias Beck. O primeiro, fala
do sonho do invasor; o segundo, do malogro da expedição. Neste
soneto, "Matias Beck", o narrador cede a fala ao próprio personagem,
que diz como desistiu do investimento a que se propôs. Sendo
aventureiro, e tendo apenas como objetivo levar uma de nossas
riquezas (a prata), não conseguiu êxito, pois não integrou-se à
nossa cultura nem aos nossos valores.
Estes sonetos mostram a diferença de objetivos dos dois navegadores:
um quer simplesmente o mérito da descoberta e o aumento do império
espanhol; o outro é um mercenário holandês.
Há nestes poemas um resgate dos personagens que iniciaram nossa
história. É uma memória que é revivida e atualizada pela poesia e
que reforça, ainda mais, o propósito de Beira-Sol: rever a história
de Fortaleza.
É importante observar que os poemas, cujos temas enfocam esses
vultos históricos, mantêm um mesmo padrão estrutural: são sonetos
ingleses, cuja estrofação foi modificada: em vez de três quartetos e
um dístico, tais sonetos estão dispostos em quatro tercetos e um
dístico. Somente nestes poemas é que se observa esta estrutura. Nos
demais sonetos ingleses - "Língua-mar", "O jangadeiro", "A rendeira"
- há somente um bloco de versos. Isso demonstra o quanto Adriano
Espínola foi criterioso, ao eleger determinadas formas de composição
e diferenciá-las dos demais temas.
Em "Silva Paulet" e "Chico da Silva", Adriano Espínola traz a
história para mais perto do nosso tempo. Silva Paulet, no início do
século XIX, "traça um plano de urbanização em xadrez", para a cidade
de Fortaleza; Chico da Silva, pintor primitivista, descoberto por
Jean-Pierre Chabloz no início de 1943, tinha como tema central de
suas telas animais fabulosos, alucinantes: eram cobras aladas,
dragões quixotescos, peixes fantásticos, galos diabólicos, entre
outros bichos apavorantes. Chablot, percebendo o talento de um
artista que pintava os muros das casas do Pirambu, forneceu papel e
tinta a Chico da Silva e comprou os trabalhos que ele fazia. Levou
tais trabalhos para a Europa, e escreveu, sobre o artista cearense,
na conceituada revista francesa Cahiers D'art.O sonho de Silva
Paulet é o mesmo do arquiteto grego: "as retas do desejo", ou seja,
a organização espacial da cidade, cujas casas, até então, eram
erguidas "à deriva". Adriano Epínola, no poema "Silva Paulet",
constrói um ser atemporal, como em muitos outros, que tem o poder de
fundar a "morada do infinito". Essa é uma maneira simbólica de dizer
o quanto um arquiteto é valioso, ao traçar os lugares onde as
pessoas irão erguer suas moradas e seus sonhos. É o engenheiro do
espaço físico e cósmico. Bachelar diz que a casa é o lugar de abrigo
do homem e, sem ela, tal homem fica sem comunicação com o infinito,
com o cosmos, daí Paulet ser erigido, no poema, sob o estatuto do
símbolo: ele traça "morada do infinito" porque é daí que os
habitantes irão comunicar-se com Deus.
Chico da Silva, enquanto artista, desenha na tela todas as suas
"alucinações". Os seres representados nas telas são de outro mundo:
do mundo do sonho, do pesadelo. Os motivos surrealistas são
tratados, esteticamente, com a técnica primitivista, a "visão
primitiva", de que fala o poema, em sua última estrofe. "Chico da
Silva" é o elemento representativo das nossas artes plásticas. Ao
dedicar um poema ao grande pintor, Adriano Espínola, por extensão,
também retrata todos os artistas da terra; artistas que, como ele,
procuraram recriar o imaginário da nossa cidade.
"Mucuripe peixe e paixão" é a parte representativa da nossa
literatura de cordel. A melodia e o ritmo dos versos, compostos em
diversas métricas, mostra o quanto o poeta é conhecedor do
versificar cordelístico. O narrador descreve a cidade e narra fatos
ligados aos personagens, que são comuns a outros poemas: o sol, o
Mucuripe, as favelas etc. Esse narrador imita os cantadores de
viola, os repentistas, os coquistas.
As bananas são dedos da terraamarelecidos. A manga-espadasangra. O
coco é cabeçadece/pada. O sumo do diaé amargo.
Luz cortante de peixeiraonde vão colher a vidasubmersa no
horizontechega à praia ferido de beleza.O verso, então, é espumaque
sobre as ondas se apruma.
Tudo é metrificado e rimado e, por conta da imitação da estrutura do
cordel, os versos têm a cadência das cantorias: há a cadência do
côco, do martelo agalopado, da oitava em quadrão e do galope à beira
do mar. Nesse poema, a visão social é mais transparente. A linguagem
modifica-se, para ficar mais próxima da dos cantadores de viola,
embora haja versos, cujas imagens são marcas definidoras e
caracterizadoras desse narrador: "luz cortante de peixeira"; "onde
vão colher a vida/ submersa no horizonte"; "chega à praia ferido de
beleza"; "o verso, então, é espuma/ que sobre as ondas se apruma"
etc. Adriano Espínola, com esse poema, exalta o nosso poeta popular,
que, como ele, também canta a nossa cidade e a nossa região.
Finalizando a primeira parte do livro, o poema "Fortaleza revisited"
dialoga com os textos de Fernando Pessoa, poeta português que criou
os famosos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo
Reis. Há uma nítida intertextualidade nesse poema, a partir do
título: Fernando Pessoa, com o heterônimo de Álvaro de Campos tem um
poema intitulado "Lisbon Revisited".
Há, também, no poema de Adriano Espínola, a "despersonalização", a
"fragmentação" e o fingimento poético pessoano: "Sou outro/ em mim".
Diferentemente do narrador pessoano, que é exaltado, o narrador do
poema "Fortaleza revisited" simplesmente reafirma a sua condição de
transfigurador das coisas e de si mesmo, para cantar a cidade.
Na segunda parte do livro, intitulada "O cão dos sentidos" (há,
aqui, uma intertextualidade com o nome de um livro de João Cabral de
Melo Neto chamado O cão sem plumas), o narrador, que até então
mantinha-se distanciado, passa a fazer parte da história,
confessando-se: há um "eu", em alguns poemas, que se coloca dentro
das ações que se irão desenrolar. No primeiro poema desta parte, "A
praça", o eu-lírico diz: "A manhã me afoga,/ .../As coisas avançam/
sobre mim,/ .../ amedrontando-me:/ ...".
A mudança de postura do narrador dá-se quando esse narrador passa a
contemplar os temas do "centro" da cidade. Aqui, os elementos que
fazem parte da beira da praia escasseiam e outros motivos surgem: a
praça, a lavadeira, as frutas, o zoológico etc.
Na primeira parte do livro, esse narrador contempla a paisagem;
aqui, ele fica mais próximo das ações. Com esta atitude, os poemas
de temática social denunciam, com um maior realismo, o que toda
cidade grande produz: a marginalidade de determinados personagens. É
o caso, nesse primeiro poema, dos mendigos, dos engraxates, dos
vendedores de pano, dos biscateiros, dos pivetes, dos malandros.
O narrador coloca-se, enfaticamente, dentro dos acontecimentos;
inclusive dentro da história. O tom do poema é mais cáustico, cruel,
porque o narrador, ao invés de apenas contemplar de longe, participa
do real representado e, com isso, absorve suas angústias.
Assim, a beleza de uma praça não aparece. Aqui, são destacados
elementos que caracterizam uma praça moderna de uma grande cidade:
ela não é mais um lugar somente de passeio, ou de entretenimento,
mas, principalmente, um local que tanto pode ser, para uns, de
trabalho, como de malandragem, para outros.
Essa diversidade de funções faz da praça um país de muitas línguas,
aqui simbolicamente representado pelo mendigo, pelos engraxates,
pelos vendedores de pano, pelos pivetes, pelo malandro, entre outros
personagens. Cada um desses elementos tem um uma função, uma língua
e uma maneira de ser diferente. Com isso, Adriano Espínola tanto
reafirma a idéia de que a praça é um espaço de todos, como atualiza
o conceito desse espaço, dentro do mundo contemporâneo: é o espaço
da complicada luta, dos marginalizados, pela vida. Ao lado disso, há
também um espaço para a poesia, mas somente para aquele narrador
comprometido com a visão social dos que nela labutam. Esse é o ponto
sobre o qual se comprova, mais uma vez, o compromisso desse autor
com a visão realística do mundo.
A identificação do narrador com os malandros - "Numa fila/ malandros
acenam/ para o meu coração pungista" - é de extrema beleza e
poeticidade: o narrador rouba não mais as carteiras, as jóias, ou o
dinheiro dos transeuntes, mas a poesia dos personagens que habitam a
praça. Aqui se encontra a síntese de construção dos narradores que
Adriano Espínola criou para seus poemas: é o narrador que tem a
sensibilidade e a perspicácia de olhar o mundo através da poesia,
mesmo que esse mundo apresente-se caótico e excludente, como é o
caso dos habitantes da praça e de tantos outros locais visitados no
livro.
Nas três últimas estrofes, a descrição mais transparente do real
transfigura-se e o narrador vê duas praças: a que ele enxerga e a
que ele imagina. A que ele vê é a real; a outra é a metafórica, a
transfigurada, a poética. Ele diz perder-se entre as duas, por que
elas são, para ele, igualmente importantes: a que ele vê é motivo de
denúncia, mas, também, de poesia; a que ele recria é motivo de
angústia, em vista do seu aguçado sentimento social. Neste momento,
encontramos o porquê de o narrador dizer, no primeiro verso desse
poema, que "A manhã me afoga".
A linguagem sinestésica de alguns versos desse poema revela tanto o
cuidado poético com discurso, como o sentido revelador da denúncia
social: "queixa sonante das moedas"; "buzina amarela"; "ódio
reluzente"; "bafo peludo da vida". Isso é o que dá a visão cáustica
e naturalística do poema.
"Evocação a Garcia Lorca" é um poema dividido em cinco partes, que
exalta o poeta espanhol, assassinado pela repressão daquele país.
A primeira parte - em versos de 12 sílabas (alexandrinos) - é a
lembrança e a evocação do poeta; nas 2ª, 3ª e 4ª, o poema fala da
vida e da morte dele; e, na última, vê-se a ligação deste poema com
o livro Beira-Sol: a memória de Lorca, da sua luta pela causa
popular é também memória que dá forças ao narrador, para continuar
cantando Fortaleza. Evocando, o narrador presentifica o poeta
espanhol e, pela força da palavra poética, integra-se na luta pela
sua cidade.
Desse ponto em diante, aparecem os novos motivos, que se iniciam com
as "Lavadeiras de Maraponga" e "As lavadeiras", personagens que
tendem a desaparecer da vida pós-moderna, mas que está presente no
imaginário do narrador, como seres partícipes da história da cidade.
O tratamento que é dado às personagens é também simbólico e
metafórico: são elas que sabem decifrar, pelo sujo das roupas, a
"aparência dos homens". A elas também é dada a capacidade de renovar
essas roupas e, metaforicamente, aqueles que as vestem.
Apesar de estarem em extinção, elas utilizam-se de um procedimento
pós-moderno: o da reciclagem (das roupas e dos homens).
Os dois poemas dialogam entre si: há versos que são comuns aos dois.
É um tipo de intertextualidade, que Vitor Manoel de Aguiar e Silva
chama de "intertextualidade homo-autoral": é uma espécie de
auto-imitação. Adriano Espínola refaz o poema, acrescentando novas
imagens, novos elementos e um novo poema se forma com essa
transformação, assim como as roupas ("passadas na tábua-tempo"),
transformadas pelas lavadeiras. Nesse sentido, poeta e lavadeiras
têm uma mesma função: refazer. As lavadeiras tornam novas as roupas;
o poeta refaz o mundo, dando-lhe uma nova roupa: a da poesia.
"As frutas", metonimicamente, representam um mercado. Neste poema há
a diversidade do que aqui é produzido. É um poema, também, de tom
amargurado. As imagens construídas são cáusticas: "as bananas/ são
dedos da terra,/ amarelecidos"; "A manga-espada/ sangra"; "O coco é
cabeça/ dece/pada"; o "sumo do dia" é amargo.
A visão de causticidade vai ser comum em muitos outros poemas dessa
segunda parte do livro.
No poema "A árvore", há uma divisão temática: a própria árvore e o
sol. É a visão de um narrador que sabe que, sem o sol, a árvore não
poderia existir, daí a textura semântica dada ao sol. A árvore, pelo
que é sugerido pelo título, deveria ser o principal foco. Mas não é
isso o que ocorre. Ela passa a ser apenas um argumento para a
decidida visão de um narrador que quer acentuar a importância da
claridade na Terra do Sol.
Em "O gato" e "O cão", há um retorno àquilo que é primordial nos
seres: a essencialidade. O narrador descreve-os, mas pergunta onde
está a primordialidade de cada um: o gato "é anterior ou posterior
às coisas?"; o cão é "cão dos sentidos?"
Nesse sentido, todos eles têm relação com o imponderável, com o
imprevisível e com o misterioso: um salta "sobre o invisível"; o
outro, "ante a brusca presença/ do real." São seres, assim, que
estão no limiar do visível e do invisível; do real e do irreal;
estão no limite entre o "ser" das coisas e o "estar" no mundo. É por
conta desse viver no limiar (de ser a ponte para dois mundos
diferentes) que os dois animais percorrem, sorrateiramente, o real.
Com isso, notamos, mais uma vez, a direção dos poemas no rumo da
abstração - característica marcante dos poemas.
"Zoológico" é composto por vários pequenos poemas, que falam de
animais. As descrições desses animais são, algumas vezes,
enigmáticas, irônicas, e seguem, também, o caminho da abstração.
Desses poemas, note-se a construção visual de "Os pássaros", em que
a leitura passa a ser não-linear, como acontece com a maioria dos
poemas concretistas. A quebra da palavra "passam" sugere o próprio
vôo. Note-se, também, a ironia de "O macaco": "...Carteira de
identidade?)"
Em "Meio-dia" e "Meio-dia " há uma antecipação do final dos motivos.
É nesta hora que a primeira parte do dia finda e não resta outra
alternativa para os seres a não ser descansar e beber "um copo de
sombras".
O meio-dia representa a própria claridade absoluta: não há outro
período tão intensamente iluminado, e cruel, como este. "Tudo se
queima"; a cidade transforma-se.Os dois poemas descrevem a sensação
do sol a pino e sua influência nas pessoas e nas coisas. É nesse
momento que se percebe a verdadeira metáfora da claridade. O sol,
exata e verticalmente, em cima de cada um é o verdadeiro senhor da
cidade e a tudo consome com sua energia.
No poema "João", Adriano Espínola presta uma homenagem ao poeta
pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Assim como ocorreu no poema "Fortaleza revisited", aqui há
referência àquilo que caracteriza a poesia de João Cabral: o
anti-lirismo, termo empregado por Marly de Oliveira, no prefácio à
obra completa do autor de O cão sem plumas.
As imagens construídas perfazem o caminho da metalinguagem e da
intertextualidade. Os elementos evocados (chuva, rio, flor, potro)
identificam-se com o próprio poema que está sendo elaborado.
O "conter a chuva", o "amansar o rio", o "reter a flor", o "domar o
potro" etc. são confissões de um narrador que, antagonicamente a
João Cabral, não consegue ser anti-lírico, porque a sua poética e
sua linguagem erigem-se sobre outros paradigmas, sobre outros
modelos de construção poética.
"A catedral" é um poema que representa a religiosidade do povo. "O
pássaro de pedra" faz a ligação entre os seres e Deus. É de lá que a
canção do sino (a "canção marrom-dourada") anuncia a hora da oração.
A catedral é mais um símbolo, poeticamente construído, para compor o
imaginário do povo de Fortaleza.
Em "A velha", Adriano Espínola desenha o perfil da terceira idade,
que, para o narrador, é sinônimo de sabedoria e de beleza. A
personagem é ícone do tempo: os dois têm a mesma dimensão de
sabedoria.
"Prisma" é um poema-resumo, que é estruturado, cabalisticamente, com
o número sete: são sete cores; sete motivos; sete dísticos. Adriano
sintetiza, em um só poema, o percurso da visita a Fortaleza, através
da simbologia da cores: cada motivo é representado por uma delas: "o
ar do meio-dia" é "amarelo eleoso", assim como a "vertigem do
poente" é vermelha. A voz, o ar, a memória, a hora, o poente, o sono
e o instante (do poema) são os sete motivos que, atravessando o
prisma imaginário da poesia, ganham cores.O caminho da noite é
sugerido pela gradação da colorações cinza, vermelha e violeta,
respectivamente: "cinza, a hora que escorre/ dos edifícios";
"vermelha a vertigem/ do poente"; "violeta a raiz/ do sono."
Esses momentos culminam com a afirmação da transparência - o
"branquíssimo" do último dístico quer dizer isso - reafirmando a
metáfora da claridade.
"Maria" é um poema que fala das prostitutas, motivo também
trabalhado nas sextilhas de "Mucuripe, peixe e paixão". Neste, o
motivo é tratado de maneira generalizante. Em "Maria", pelo
contrário, há detalhes e particularidades da personagem, a partir da
sua nomeação; há um conjunto de ações e de descrições, que desenham
o perfil da prostituta. Ela é um ser que briga, que conhece o
comportamento dos homens, que é remunerada por seu trabalho, mas que
tem uma noite miserável - "dorme por entre gatos". Há, aqui, o
reconhecimento de uma profissão, mas que, apesar disso, não conduz a
profissional a ter uma vida digna. Isso é mais um reforço à idéia de
marginalidade, imposta por uma sociedade cheia de preconceitos, que
não aceita tal profissão.
Adriano banaliza esse conceito, construindo o último verso do poema
como se fosse a resposta a uma ladaínha, que se vinha, profanamente,
entoando: "Ave Maria, cheia de graça."
É um poema formado por um bloco de versos, que caracteriza a
personagem, e por um verso isolado: uma espécie de refrão, que
representa a sacralização do profano, do pecado.
Nos dois últimos poemas, "Mariterra" e "Residência", há um elemento
que até então não havia sido trabalhado: o erótico.
Na verdade, pelo movimento dos poemas e pelo propósito de
revisitação a Fortaleza, não havia espaço para isso, haja vista o
tom cáustico e cruel da maioria das descrições dos motivos.
Aqui, no final, há um narrador com um foco diferente, que trata os
temas de modo sugestivamente sensual.
"Mariterra" é um poema deslocado, tematicamente, dos demais. Sugere,
mais, uma declaração de amor a um personagem ("Moema"), cuja relação
com a cidade não está determinada. É um belo poema, em cuja
linguagem há neologismos bem construídos; tem a estrutura do
discurso pós-moderno, fragmentário, cuja sintaxe é quebrada, abrindo
muitos vazios no texto, e que, por isso mesmo, exige uma ativa
participação do leitor, para preencher esses vácuos sintáticos.
Se em "Mariterra" a declaração parece dirigir-se a uma personagem,
em "Residência", a confissão de amor é para a própria cidade, em
cujas partes - dunas, riachos, esquinas, ruas etc. - há uma
propositada humanização, que indica a tonalidade sensual e erótica
do poema - "As dunas empinadas apontam-no [o corpo]/ para o céu da
minha boca."
Leia a obra de Adriano Espínola
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