Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão


 

Rodrigo de Souza Leão entrevista o poeta
Floriano Martins - dez/98


 

Você acaba de lançar um livro de entrevistas com escritores latino-americanos. Qual a importância de ouvir as vozes da poesia latino-americana?

Trata-se de um livro de diálogos com poetas latino-americanos. Este é o primeiro registro em livro de um encontro assim tão amplo entre estes poetas. A maioria nem se conhece entre si, sobretudo os brasileiros. Nosso conhecimento da poesia hispano-americana é grosseiramente limitado. A razão de um diálogo não é exatamente a de se saber quem é o mais importante ou quem antecede quem neste ou aquele assunto. O diálogo radica justamente na troca de experiências. Trata-se tão-somente de ouvir o outro. Claro, esta audição implica sempre um sentido crítico. No caso da poesia latino-americana, creio que a importância maior de se ouvir essas vozes vem do fato de podermos descortinar um mundo até então desconhecido. Reunir, como fiz, 24 poetas de dez países em um mesmo lugar de encontro, cumpre o papel de apresentar ao leitor uma nova maneira de observar o fato poético na América Latina. A partir daí é possível entender que esta poesia não se limita àquelas circunstâncias mínimas equivocadamente delineadas pela crítica ou por nossa falta de programação editorial.


O que não pode faltar em uma entrevista?
O que busca saber do entrevistado?


Obviamente, uma comunicação fluida entre as duas partes que a compõem. Uma entrevista falha quando o entrevistador não possui uma carta de indagações ou quando o entrevistado desanda a esquivar-se a todo instante. Enfim, quando não há compromisso, de um lado ou de outro, com a integridade do diálogo. Evidente que há alguns casos de inexpressividade, mas não é disto que tratamos. De minha parte, entrevisto pessoas a partir de um plano de trabalho, de maneira que o que busco saber de um entrevistado é justamente sua relação intrínseca com o que faz. Também busco uma cumplicidade na tessitura de um texto final, de maneira que a entrevista (diálogo) resulte em uma espécie de ensaio a quatro mãos.


Quanto tempo levou para realizar este seu trabalho?
Quais foram as maiores dificuldades?


A publicação de Escritura Conquistada (Diálogos com Poetas Latino-americanos) funciona como a primeira colheita de um largo plantio, que atravessa a contagem de uma década. Ali há entrevistas realizadas entre 1988 e 1996. Contudo, antes já realizara algumas outras não incluídas neste volume, assim como sigo preparando novas. A intenção central é a montagem de um vasto painel crítico em torno da poesia latino-americana em todo este século. Além das entrevistas, há o preparo paralelo de duas outras instâncias: uma Antologia da Poesia Hispano-americana no Século XX e uma seleção de ensaios sobre esta mesma poesia. Claro, a partir daí surgem inevitáveis desdobramentos. Exemplo disto é o libreto Escrituras Surrealistas (O Começo da Busca) (Fund. Memorial da América Latina. São Paulo. 1998) um ensaio sobre o surrealismo na América Hispânica.
Quanto às dificuldades encontradas no preparo de Escritura Conquistada, naturalmente contei com algumas inomináveis recusas por parte de poetas que não quiseram ser entrevistados. Além disto, lamento a morte prematura do excepcional poeta chileno Enrique Lihn (1929-1988), cuja entrevista seria algo indispensável para este livro. Contudo, sua grande dificuldade foi de natureza editorial. O livro passou por várias editoras, situação que me parece absurda, dada a indiscutível sugestibilidade do trabalho em si.


Como foi o processo de escolha dos entrevistados para o livro?

Sendo um livro que vem a partir de um projeto mais amplo de difusão da poesia latino-americana, a seleção de autores entrevistados buscou tanto uma abrangência do maior número possível de países assim como destacar a importância desses poetas no universo literário de seu país. Em um primeiro momento, como já disse, reuni dez países. Agora estou trabalhando no complemento deste painel iniciado em Escritura Conquistada. Cabe aqui uma digressão interessante. Quando tive recentemente uma breve conversa com alunos e professores na UnB, um professor nicaragüense indagou-me por qual razão havia incluído no livro um “poeta de direita” como é o caso, segundo ele, de Pablo Antonio Cuadra. Disse-lhe da absoluta inconsistência de seu enfoque, uma vez que não relevo a política e sim a poética. Neste território sagrado é indiscutível a contribuição de Cuadra (1912), que renovou todo um cenário literário em seu país, seja na poesia, no teatro ou no ensaio.


Qual foi o entrevistado mais arredio? Teve alguma decepção?
Um poeta ou escritor que se revelou aquém de suas expectativas intelectuais?


A leitura do livro mostrará que os verdadeiros poetas não se furtam ao diálogo. Não há, portanto, nenhuma passagem em que se verifique uma postura arredia. Conversamos claramente sobre os diversos assuntos colocados em pauta. Tomei o cuidado de fazer com que, de alguma maneira, todos participássemos do livro como um todo. Neste sentido, teci uma extensa rede de citações, um entramelado de referências que iam ligando cada entrevista às demais, repetindo propositadamente algumas indagações, buscando um entrelaçamento das diversas opiniões, para que assim o livro tomasse uma consistência maior. Não houve, como indagas, decepção alguma. O livro está repleto de notáveis satisfações. O crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón me escreveu dizendo que tracei “um panorama da poesia menos habitual, e portanto da mais necessitada de leitura”, completando: “para que vejam os experts que nem tudo começa e acaba nos quatro de sempre”. Este feliz espaço de comunhão, por assim dizer, não teria mesmo como permitir a decepção.


Qual a diferença de uma entrevista por e-mail ou carta e a cara a cara?

Não há diferença alguma. Tudo irá depender sempre da postura das duas partes envolvidas. Evidentemente que há sempre uma possibilidade de maior reflexão no texto escrito, ao contrário do imediatismo da resposta falada. Por outro lado, há aqueles que defendem que no primeiro caso se perde a espontaneidade. Não creio que o leitor sério esteja interessado apenas na espontaneidade de uma entrevista. A mim interessa sobretudo a reflexão que ela possa propiciar. Mas isto também se pode conseguir em uma entrevista ao vivo.


Os poetas têm espaço devido na mídia?

Jamais terão. Há uma incompatibilidade clara entre a Poesia e toda forma de massificação de valores. Nem creio que seja exatamente a este tipo de situação que os poetas aspiram. Claro que tua pergunta indaga mais sobre o reconhecimento público do trabalho poético. Mesmo aí, quando observada melhor a circunstância em que se dão algumas evidências, compreendemos que sua raiz não é justamente a do reconhecimento, mas antes a do manejo hábil com a matéria em questão. De uma maneira geral, a mídia não pode mesmo esboçar reconhecimento algum pela Poesia. Nem mesmo é esta sua tarefa usual. A Poesia implica concentração, recolhimento, iluminação, ao passo que a mídia tem-se mostrado empenhada na dispersão e distorção de valores, ou seja, é mero obscurantismo.


Qual é o melhor caderno cultural brasileiro?

Seria irresponsável uma resposta tão a seco, e nada traria de construtivo a essa discussão. Em um país imenso como o nosso, devemos observar também aqui com uma lente mais ampla. Há os jornais que circulam em todo o país, ao mesmo tempo em que aqueles de circulação restrita à região em que atuam. Entre eles muitos possuem suplementos culturais. Cada um a seu tempo, dentro das circunstâncias da empresa jornalística a que estão vinculados, buscam realizar um trabalho digno. Para não deixar de mencionar nomes, posso citar alguns destes suplementos: Pensar, do Correio Brasiliense (DF), Cultura, do Jornal da Tarde (SP), Prosa & Verso, de O Globo (RJ), A Tarde Cultural, de A Tarde (BA), Viver, do Diário de Pernambuco (PE), Sábado, de O Povo (CE). Não há importância alguma em se discutir qual seja o melhor. Antes importa assinalar que uma distorção conceitual entre cultura e entretenimento faz com que alguns suplementos culturais mais se pareçam com os chamados cadernos de variedades.


Quem é mais importante: o poeta Floriano ou o jornalista?

Não existem essas duas figuras ou quaisquer outras. Sou essencialmente poeta. Não sou jornalista de profissão. O trabalho jornalístico (artigos, resenhas, entrevistas etc.) surge como uma opção de reflexão crítica em torno da produção cultural de meu tempo.


Como surgiu o poeta? Quais são as suas influências?

Poetas surgem do nada, de um mesmo magma escaldante de onde surge todo artista. Da plenitude negra do mistério. Não surgem essencialmente de textos ou desejos alheios, embora se alimentem de ambos. São naturalmente a grande soma de todas as vertigens, porém só firmam sua voz ao distingui-la das demais. Há um elo mágico entre o poeta e a biblioteca. Não a biblioteca imaginária, mas antes a real, que é composta de suas leituras, de suas identificações. Poetas herdam sempre algo de perdido. São uma invisível ponte entre as inúmeras instâncias imperceptíveis do cotidiano. Pegam, escutam, cheiram, ouvem, vêem. Claro está que minha poesia encontra-se impregnada de todas as substâncias que compõem os sentidos humanos. Posso particularizar algumas identificações a exemplo das canções interpretadas por Agostinho dos Santos, Dolores Duran ou Nat King Cole, que meu pai ouvia durante minha infância; minhas leituras das tragédias de Shakespeare e alguns romances de Dostoievski, sobretudo Crime e Castigo; ou mesmo a paixão que me despertaram pouco depois as obras de Goya, Dürer, Velázquez, Brueghel e Bosch , mas a verdade é que essas identificações não funcionam em isolado, nem tampouco podem dispensar a vivência humana, ou seja, o entramelado de sentimentos de que somos feitos.


Como é o seu processo criativo?

Já os poemas não surgem do nada. Têm sua origem em algo bastante concreto: a busca de identificação do criador consigo mesmo isto evidentemente não quer dizer a tessitura de uma camisa-de-força da egolatria e não se realizam senão na condição de objetos de linguagem. Interessa-me unicamente uma escritura de exceção. Não creio em arte de escolas, assim como desprezo os epigonismos de toda ordem. Não se pode criar nada sem que se imponha alguns desafios. Toda a discussão atual em torno de pós-isto ou aquilo não justifica senão uma debilidade estética contagiante, o mesmo que essa obsessão pelo resgate de alguma instância perdida. Passado ou futuro devem ser guiados por princípios mais sugestivos. O processo criativo de um poeta não justifica a qualidade de uma obra de arte. Apenas ilustra seu entorno. Há os que escrevem mascando cravo, os que se encharcam de uma droga qualquer, os obsessivos pela realidade, aqueles cuja pena é movida unicamente pelas desventuras amorosas, os que não dispensam a presença de um metrônomo etc. Tudo isto ajuda a compor a mitologia em volta do poeta. Não mais que isto.


Você vive de literatura. Conte-nos um pouco.

Francamente não sei de onde se tirou esta idéia. É verdade que não tenho uma profissão paralela (funcionário público, professor de curso de letras, redator publicitário etc.), porém crio uma série de afluentes que ajudam a regar o trigo e a cevada. As opções foram por instâncias que funcionassem como desdobramentos de um universo poético já bastante definido. A partir daí firmam-se os trabalhos de pesquisa, as traduções, os ensaios, os textos críticos para imprensa etc. Porém este conjunto de ações implica uma série de riscos. O mais acertado, ao menos no momento, seria dizer que estou vivendo de riscos.


Os grandes polemistas morreram.
A polêmica morreu. Faz falta?


Não creio nesses obituários inconseqüentes. É claro que estamos nitidamente enfrentando uma entressafra, sobretudo de valores. Ao mesmo tempo, somos avassalados por alguns impérios parasitas de meros catalogadores de plantão. A polêmica pertence ao reino do diálogo e não da exposição barata de preconceitos ou à vulgaridade da espetacularização das fraquezas humanas. Em uma época em que a transgressão tornou-se uma falácia banal, o polemista pode naturalmente ser confundido com o moralista, o conservador, o careta. Possivelmente esta confusão terá alguma participação em uma característica bastante peculiar de nossa sociedade contemporânea: a inação. Vivemos em um estado pleno de diluição de valores, onde passado e futuro não se tocam, pela simples razão de que não há compromisso com o presente. Vivemos em um estado de congelamento da história. A humanidade posta em freezer. Não é exatamente o polemista que faz falta. Faz falta essencialmente recuperarmos nossa vontade de viver.


Por que a crítica literária migrou para as universidades?
Qual a importância da teoria literária?


Não vejo isto exatamente. Ao que parece estamos de volta ao universo da mera catalogação. Claro que há uma ambientação acadêmica algo rançosa que empobrece toda discussão crítica. Poderíamos chamar a isto de síndrome do viés, aquela retórica risível da “questão de… passa por”. Contudo, há uma forma inteligente de discurso, sobretudo quando busca fundar-se no diálogo, no exercício de abrir-se à experiência alheia, à voz do outro. Pode-se dizer da universidade que tenha erguido muros que a impedem de relacionar-se com o restante da comunidade que efetivamente a sustenta. Por outro lado, escritores também são dados a fundar guetos, ao mesmo tempo em que igualmente perderam um norte crítico, no caso acentuadamente autocrítico. O que um perde acaba sobrando para que a outra faça dele o pior uso.


O Nordeste produz uma poesia de qualidade.
O que falta para torná-la ainda mais conhecida? Como vê a internet?


Não me agrada o que há por trás disto de se dizer que o Nordeste produz uma poesia de qualidade e que não é conhecida ou reconhecida. Isto pode conduzir àquele nocivo sentido do pária sem fundamento, do injeitado, do ’tadinho. Sem falar nos riscos de um redutor ideário regionalista. Creio que é bem conhecida a poesia de João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão ou Sebastião Uchoa Leite. Se há casos de desconhecimento ou falta de reconhecimento, isto não se dá exatamente pelo fato de se ser nordestino ou sulista. Quando surgem compilações da poesia de Joaquim Cardozo ou Raul Bopp tudo nos parece um espanto. E quase nada sabemos da poesia de Henriqueta Lisboa, Augusto Meyer e Américo Facó. Isto se dá, antes de qualquer outra coisa, pelo simples fato de que o país se desconhece a si mesmo. E não me refiro unicamente a (falta de) atitudes governamentais. Somos dados a transferir responsabilidades. É nossa herança cabralina. Adoramos mandar ou por a culpa nos outros. Governos devem cuidar de um mínimo de administração pública. Poetas, de um mínimo de administração poética. E há também papéis fundamentais a serem desempenhados por editores, críticos literários, jornalistas etc. Se tudo é bem comum, então cuidemos de cada coisa com igual zelo. Nossos governos são tristes e não trocam uma lâmpada de praça sem interesse próprio. De uma certa forma, os poetas brasileiros também agem assim. Enquanto não aprendermos a ouvir o outro, nenhuma internet nos salvará.


Qual o futuro do objeto livro?

Creio que a melhor felicidade que se pode alcançar em um livro é a da identificação com seu universo. Descobrir afinidades entre si e a leitura de um livro é um momento de extrema grandeza. Assim o é com qualquer outra forma de convívio, de doação, de diálogo. Não entendo porque nos preocupa tanto o futuro do objeto livro e não mencionamos o futuro de nossa própria humanidade. O livro não é determinante desta e sim o contrário. Se mantivermos uma garantiremos a perenidade do outro, assim como de quaisquer objetos que sejam sua expressão verdadeira. Toda discussão fora deste plano me soa como um catastrofismo vulgar.


Você detectou inveja no meio literário e mostrou isto através de um ensaio. A inveja tem cura?
Neste mesmo ensaio você pede união. Isto é possível?


Naquele meu artigo (“A inveja, essa Ibijara”, publicado no suplemento Sábado, do jornal O Povo, em 11/01/97, e que estou recolhendo agora em livro) denunciei a presença da inveja e da presunção como duas gritantes características negativas do cearense. Isto reflete uma baixa cultura e uma carência alarmante de auto-estima. Naquela ocasião me escreveram algumas pessoas dizendo que estas não se tratavam de características essencialmente cearenses. Isto é claro, porém entre nós elas são por demais imperativas. A inveja é um desejo desmedido pelo que nos é alheio. Só se justifica, portanto, em quantos não se conhecem a si mesmos. A presunção, por sua vez, é uma forma de desprezo pelo alheio, justamente por falta de autocrítica. Em um caso cobiçamos aquilo que não sabemos ao certo se temos ou não, enquanto que no outro nos supomos aleatoriamente superiores, sendo ou não. Daí que nossa grandeza é a medida do que se tem e nunca do que se é. Nisto de adorarmos o alheio, acabamos não identificando nossos reais e vitais valores e só os reconhecemos em segunda mão. Se há cura para a inveja? Esbocemos uma aparente digressão. Há pouco tempo, uma campanha movida pelos Correios em Brasília fez com que os carros parassem diante das faixas de pedestre. Uma outra campanha reduziu bastante o cruzamento indevido de sinal vermelho em Salvador. Talvez pudéssemos descobrir uma maneira de fazer com que cearenses reduzissem o volume da música em sons de carro, bares etc. Assim como candangos ou baianos, cearenses precisam ser ensinados a ouvir o outro. A cidade de Fortaleza é uma cidade imperativamente ruidosa. Como sabemos, o ruído interfere na comunicação. Talvez esta tenha que ser nossa grande campanha, a de redução do ruído a um nível aceitável, de maneira que a reabsorção do silêncio nos ensine a percepção do que está dentro de nós e à nossa volta. Se aparentemente embaralho os assuntos, isto se dá porque vejo todas essas coisas muito interligadas. Se escrevo um poema, publico um livro, assino um texto na imprensa, traduzo outro poeta etc., estas são formas de compromisso. Tenho que estar ciente do que faço, assim como do que se faz ao meu redor. Não pode então haver espaço para inveja, presunção ou qualquer outro aspecto redutor.


Qual a principal característica da poesia cearense?

Não há isto. Não há a “principal característica” da poesia tailandesa ou da peruana. Devemos abominar toda forma de regionalismos ou nacionalismos. A princípio, não há uma poesia cearense, mas antes, bem antes, uma poesia feita no Ceará. O poeta está aqui, sendo ou não daqui, identifica-se com esta ou aquela circunstância, nada mais. Basta imaginar dois casos pertinentes: Gerardo Mello Mourão e Francisco Carvalho. O que ambos têm em comum? Este tipo de falsa identificação pertence ao mundo escolástico, aos manuais ou cartilhas similares. Há uma poesia sendo escrita hoje no Brasil que muito se assemelha a esta ambientação retórica das cartilhas. Se observarmos bem, temos hoje uma poesia que é refém absoluta de uma imagem. Costumo dizer, a título de boutade, que se tirarmos o vaso de plantas da janela cai por terra grande parte da poesia que se escreve hoje no Brasil. Além disto, perdemos o radical da identidade da voz poética. Se embaralharmos os poemas em uma dessas ocasionais mostras em periódicos nacionais, ninguém dará pela troca de autores. Não há mais voz poética, e sim uma mera articulação de sintomas.


Estamos além do moderno.
No pós-moderno, onde está a novidade? Qual a novidade?


Não, não. Não estamos além do moderno. Já é um milagre estarmos nos mantendo na modernidade. Temos andado para trás. A modernidade implica uma ampliação de diálogo. O moderno significa abrir-se à compreensão do outro. Uma arte que seja mais abrangente, e que isto não se limite a uma pecha meramente estatística. Creio que o Surrealismo acima dos ismos de quermesse imprime o grande sentido de modernidade, na medida em que recusa toda forma de catalogação. No entanto, a amplidão proposta pela modernidade desandou em um desnorteamento, coincidindo com uma série de outras quedas de valores no decorrer desta fatia final do século. Não há uma novidade propriamente dita, no sentido corrosivo em que este termo se encaixa hoje. As verdadeiras novidades não se anunciam. Elas vão se dando bem além de nossa conta. Quando leio um poeta como o irlandês Seamus Heaney, vejo ali uma modernidade fundada justamente no diálogo que mantém com a tradição, no caso a literatura celta. É preciso entender que a modernidade não é um caderno de receitas. Não vamos alcançá-la recortando o verso segundo orientações terceiras. O moderno será o reflexo de nosso diálogo com o mundo. Não há novidade. Nunca houve novidade. O que há são desdobramentos e não são visceralmente o cerne da questão.


O que mais lhe agrada em um poema?

Semanas atrás, quando estava em São Paulo, fui ver a estréia do filme Kenoma, de Elianne Caffé. Saí dali irritado pelo fato de que apenas uma das partes havia funcionado. É excepcional ver como o ator José Dumont extrai leite das pedras. O mesmo se dá na encenação de Jeromy Irons na versão cinematográfica de Adrien Lyne para o romance Lolita de Nabokov. Não há soma, não há abrangência de recursos. Aspectos como roteiro ou definição de personas, isto nos parece não ir além de uma falácia ordinária. No entanto, não se pode sair de uma sessão de cinema dizendo “oh que maravilhosa fotografia”, como uns hippies abestados ecoavam ao final dos anos 70. Se leio um poema e tenho a impressão que a ausência de José Dumont ou de Jeromy Irons pode liquidar com seu valor aparentemente intrínseco, então não estou lendo nada. Não se trata de uma demagogia da forma, mas antes de uma essencialidade de valores constitutivos de uma expressão artística. Então o que me agrada em um poema é sua completude, sua ousadia por abranger, a só tempo, as inúmeras estações de que é feito.


Qual o papel do ensaísta para a literatura?

Suponho que indagues pela função da crítica. Neste sentido, prefiro valer-me do que já havia dito em um artigo meu justamente sobre a crítica literária no Brasil, publicado no jornal O Povo (15/03/98). Assim começava aquele texto: “Disse Heine que o historiador é aquele que profetiza o que já aconteceu. Borges nos lembra que é desta difícil arte de adivinhar o passado que surgem as histórias da literatura. A estimativa do valor de uma obra não pressupõe um equívoco. O crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón refere-se à revelação de uma ‘quietude sacramental’ que centraliza toda inquietude da escritura poética como sendo o ‘ofício sagrado’ da crítica. Ou seja, não uma crítica que domine (detenha) o sentido de uma obra, mas que o habite, que se permita fazer parte dele. Não há a determinação do sentido e sim sua celebração. A crítica literária não pode aspirar a ser uma sentença. Trata-se, a bem da verdade, de um exercício de perplexidades. O crítico tem que descobrir a mesma trilha singular do objeto de sua crítica. Seguir as pistas, investigar idéias, formas, técnicas. Em última instância, estabelecer um diálogo com o texto.” Eis o que penso.


 

Floriano Martins

Leia Floriano Martins

 

 

 

 

 

30.09.2005