Donizete Galvão
Entrevista a
Rodrigo de Souza Leão
"O que me espanta é analisar essas músicas como obras literárias.
É risível. Acho que os intelectuais se refugiaram nas academias e
agora está difícil ocupar novamente o espaço. Tudo virou showbizz.
Morro de rir da indignação de alguns quando o Caetano sai em Caras
ou quando vai ao Gugu. Aquele clip do Caetano lendo Stendhal em
francês, de terno e colete, com uma biblioteca imensa de livros de
capa dura não é engraçado? O Caetano quer entrar direto para a
Academia Francesa".
Donizete Galvão
nasceu em Borda da Mata, pequena cidade do Sul de Minas, em 24 de
agosto de 1955. Filho de Sílvio Abel de Souza e Maria Aparecida de
Souza. Os pais eram modestos sitiantes e a família não tinha
qualquer envolvimento com atividades artísticas ou literárias. Nem
mesmo uma Biblioteca Pública havia naquela época na cidade. A avó,
Ana Marques Moreira (Anita), fluminense vinda da cidade de
Conservatória, foi a figura mais marcante de sua infância. Aos 18
anos, perde o pai que morre aos 49 anos. Esta ausência marca
definitivamente sua vida e sua poética.
Seu primeiro
contato com a poesia foi a leitura do poema Infância de Carlos
Drummond de Andrade no segundo ano primário. Mais tarde descobriu a
poesia de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo
Neto. Admira desde então a poesia de Dante Milano e do poeta mineiro
Emílio Moura.
Fez o curso
primário, ginasial e de segundo grau no Colégio Nossa Sra. do Carmo
dirigido por irmãs dominicanas. Estudou administração de empresas em
Santa Rita do Sapucaí, também no Sul de Minas. Enquanto estudava,
exercia a atividade de professor. Em 1979, muda-se para São Paulo e
cursa a Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero. Começa a trabalhar
como redator de publicidade na Editora Abril.
Nessa época,
participa da antologia Veia Poética, editada por Wladir Nader, com
os poetas que estavam começando nos anos 80. Publica também em
antologias do Grupo Poeco da Universidade Mackenzie e no Suplemento
Literário do Minas Gerais. Traduzidos por Paulo Octaviano Terra
poemas seus saem também no Mariel, em Miami, um tablóide editado por
escritores cubanos como Reynaldo Arenas e Juan Abreu.
Em 1988,
publica Azul navalha ( T.A. Queiroz, Editor). Graças ao empenho de
críticos como Leo Gilson Ribeiro e Nelly Novais Coelho é premiado
pela APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte - com revelação
de autor. O mesmo livro é também indicado para o Prêmio Jabuti em
89.
Em 1991,
publica As faces do rio ( Água Viva edições) que tem prefácio do
poeta, crítico e tradutor Paulo Octaviano Terra e apresentação do
crítico e professor Carlos Felipe Moisés. O livro foi comentado na
época pelos críticos Fábio Lucas e Fernando Py.
Do silêncio da
pedra (Arte Pau-Brasil), terceiro livro de poesia, é editado em
1996. Foi resenhado por Augusto Massi, na Folha de S. Paulo,
Floriano Martins na revista Poesia Sempre, por Miguel Sanches Neto
na Gazeta de Londrina e por José Paulo Paes, em O Estado de S.
Paulo. A resenha de José Paulo Paes foi incluída no livro Os perigos
da poesia (Topbooks) editado em 97. O professor e tradutor Paulo
Vizioli fez a apresentação e a artista Renina Katz cede uma de suas
litografias para ser usada no livro.
Em 97, lança A
carne e o tempo (Nankin Editorial) com apresentação do jornalista
Humberto Werneck. Três dos poemas desse livro foram publicados pelo
jornalista Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S. Paulo, O Globo
e outros importantes jornais do país. Este livro esteve entre os
indicados para o Prêmio Jabuti 98 da Câmara Brasileira do Livro.
Em 96 e 97,
Donizete Galvão participa do Ciclo Poesia iniciativa da Secretaria
Municipal da Cultura, coordenada por Claudio Willer e Eunice Arruda,
fazendo leituras no Centro Cultural de São Paulo e na Casa de
Cultura do Butantã. Lê também seus poemas na Livraria Duas Cidades,
tradicional reduto de escritores em São Paulo.
Durante os
últimos 10 anos publicou em jornais e suplementos literários como
Nicolau, O Galo, Poiésis, Livro Aberto, Babel ( revista de poesia
editada na Venezuela), Blanco Móvil (México), Suplemento Literário
do Minas Gerais, A Tarde (Salvador) entre outros. Está presente na
Nova Antologia da Poesia Brasileira, organizada por Olga Savary.
Ainda em 98, saem poemas de sua autoria na Anthologie de la poésie
résillienne traduzida por Isabel Meyrelles para o francês, na
revista Anto, editada em Portugal e na Antologia da Poesia Mineira
do Século XX, organizada por Assis Brasil. Tem inéditos dois livros
de poemas infantis: Olha para esse azul e A menina dos olhos e os
olhos da menina. Escreveu também uma comédia musical Quero beijar-te
as mãos, com referência sentimental ao repertório da dupla
Cascatinha e Inhana.
Avesso a
participação em grupos, tem procurado uma trajetória independente.
Trabalha como publicitário na Editora Abril. É casado com Ana Tereza
Marques e tem dois filhos Bruno ( nascido em 84) e Anna Lívia (
nascida em 92).
Entre suas
preferências, além da presença magna de Carlos Drummond de Andrade,
estão os poetas Kafávis, W.B. Yeats, Octavio Paz , Jorge Luis Borges
e Elizabeth Bishop. Na poesia brasileira contemporânea tem admiração
pelo trabalho dos poetas Ivan Junqueira, Armando Freitas Filho,
Hilda Hilst, Sebastião Uchoa Leite entre outros. Aponta também como
exemplo da vitalidade da poesia brasileira as obras de Ruy Proença,
Fábio Weintraub, Heitor Ferraz, Ronald Polito e Iacyr Anderson
Freitas.
Poemas publicados em 1998:
-
Cinco poemas de A carne e o tempo na coluna de Elio Gaspari
publicada em O Globo, Folha de S. Paulo e nos principais jornais do
país.
-
Poemas publicados na revista Blanco Móvil, México, em número
dedicado ao Brasil
-
Poema inédito sobre o Caraça publicado na revista portuguesa Anto em
número especial dedicado à literatura
brasileira
-
Poemas inéditos na revista Caracol-Viola, editada em Campinas.
-
Três poemas inéditos na revista Orion, que reúne produções de
Brasil, Portugal e África.
-
Participação na Anthologie de la poésie brésilliene, Editions
Chandeigne, França
-
Participação na antologia Poesia Mineira do Século XX organizada por
Assis Brasil
-
Poema em homenagem a José Paulo Paes publicado na revista Nanico, SP
-
Seis poemas inéditos publicados na revista CULT
-
Poema publicado no Correio Braziliense, Brasília, em matéria sobre a
poesia brasileira atual
Rodrigo - No poema “Silêncio” você escreve “Da pedra
ser./Da pedra ter/duro desejo de durar”. É mais importante durar ou
desejar durar? A Eternidade é a busca maior do escritor?
Silêncio
De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.
Donizete Galvão - Para começar, devo confessar que o verso “o
duro desejo de durar”é um roubo. Os poetas são ladrões. Eu roubei do
Paul Éluard que tem um livro com esse título. Já perguntava Rimbaud:
a eternidade, o que é? A eternidade do nome, a glória, a celebridade
não interessam. Interessa sim a eternidade da palavra. Que ela
permaneça desestabilizadora, inquietante e capaz de emocionar. Não
conhecemos quase nada da vida de Hesíodo, de Safo ou de Homero. Os
versos que eles fizeram continuam vivos. Acho que o poeta se revolta
com a falta de permanência, com tudo aquilo que acaba sem que ele
possa registrar. O sentimento em relação a pedra vem daí. Do seu
poder de permanência, enquanto nós, humanos, somos efêmeros. Como no
verso de Píndaro, “o homem é o sonho de uma sombra”. O poeta procura
a palavra que perdure. O ideal, acho, é que fique só a poesia. A
biografia pode se perder.
R - Em “Almanaque da Pedra” há uma utilidade “metafórica”
para cada tipo de pedra. Qual é a pedra, com certeza preciosa, que
corresponde ao poema e a poesia? Concorda com a inutilidade da
poesia?
Almanaque da Pedra
Roupa branca no quarador:
enxágue-a com pedra anil.
Afta no canto da boca:
mate-a com pedra-ume.
Água de bica na talha:
jogue-lhe pedra de enxofre.
Faca com corte cego:
amole-a com pedra branca.
Dedo de prosa com craca:
raspe-o com pedra-pomes.
DG - A poesia é mesmo inútil. No sentido de não ter valor de
mercado, não ser vendável, não deixar as pessoas mais otimistas, não
ter um fim imediato. Ela existe por si, sem que haja uma razão para
que exista. Mesmo que chegue até a uns poucos, ela é importante para
religar às pessoas ao cosmo, dar um sentido maior no existir. É a
outra voz, de que falou Octavio Paz. Nesse sentido, acredito que
todo ato criador é também político, mesmo que não haja nenhuma
conotação social. Criar é exercer a liberdade. A poesia é importante
para manter a língua viva, vigorosa, para além de uma linguagem
autoritária ou utilitária. Como pedra, imagino a poesia como um
seixo desses que o tempo foi lapidando. Que foi rolando por regatos
até ser redescoberto pelo poeta. O seixo pode não servir para nada,
mas é belo por ele mesmo.
R - É mesmo a polifonia a ambição do poeta?
DG - Acho que a música chega a regiões em que a palavra não chega.
Mozart, Haendel, Villa-Lobos estão aí para mostrar que a música
atinge outras esferas.
Um ponto importante na conquista da voz do poeta é quando ele
descobre a polifonia. Ele deixa de dizer “eu” e passa a dar voz a
outros. São várias vozes que se superpõe a dele. Neste caso, acho
que o poeta sofre um processo de despersonalização. Sua voz é uma
voz projetada. Nela estão as vozes de outros poetas, dos que
permaneceram mudos, das dores do seu tempo. Ponge dizia que o “o
mundo mudo é nossa única pátria”. Penso no poeta tentando dar voz a
essas coisas mudas e também aos homens que foram reduzidos à mudez.
Há muitos poetas cuja poesia aspira ao silêncio. O Paul Celan é um
bom exemplo. O que me estranha é ouvir jovens poetas dizerem que
estão em busca do silêncio. Não é um pouco cedo? Eu, por enquanto,
tenho muita coisa para dizer.
Quanto mundo mudo precisa ganhar a voz em versos.
R - “Deus do deserto” nos remete a um desejo metafísico de liberação
estética. O que um Deus pode impedir o poeta na realização do seu
trabalho. A inspiração é fundamental e divina?
DG - Pensei na deusa Atena que nasceu da testa de Deus. Uma deusa
sem mãe, portanto, totalmente antipoética. A poesia é sempre filha
da grande Deusa Branca. Você pode chamar de inspiração, de
inconsciente, de musa ou até mesmo de ofício. O fato é que a poesia
tem um sentido oracular. Ela não se constrói do nada. Mesmo o poeta
construtivista, que quer o tempo todo negar a presença dessa chama
inicial, sabe que há um momento em que a poesia chega. Para alguns,
chega quase pronta. Para outros, vem um verso ou uma rima, uma pista
que precisa ser trabalhada. Acho importantíssimo o rigor em
escrever, rescrever, cortar e burilar. Mas sem o impulso inicial,
não há poesia. Você pode até insistir e “fabricar” um poema com sua
técnica. Falta-lhe, entretanto, o sopro. É importante cultivar a
paciência. Aceitar os períodos mais desérticos, quando a poesia se
afasta. Estar atento quando ela ressurge. O poeta deve permanecer
com a perplexidade e atenção de um menino que está descobrindo o
mundo. A atenção é a sua forma natural de oração.
R - Assim como João Cabral, você em “Menos”, faz uma alusão a Miró.
Seria João Cabral a sua influência mais explícita?
DG - Sempre gostei de poetas mais econômicos, mais secos. Na pintura
também, gosto de Klee, Mondrian, Miró. Apesar de mineiro, e de morar
próximo a uma rua que se chama Estilo Barroco, não sou muito chegado
aos efeitos barroquizantes. Não se pode fazer poesia sem passar por
Drummond ou de Cabral. A influência de Drummond é frutífera Acho
perigoso a aproximação com Cabral porque ele tem um estilo muito
marcado. Acho que um dos erros é tentar imitar sua técnica, sem ter
sua poética. Penso que é mais uma questão de temperamento do que
influência explícita. Não gosto da poesia civil, declamada em altos
brados ou em tom lamentoso. Gosto de poetas que chamam de menores
como o Emílio Moura, que precisa ser republicado urgentemente, e
Dante Milano. Gosto também de Yeats, de Elizabeth Bishop. Por causa
da objetividade, tenho mais afinidade com a poesia de língua inglesa
do que com a francesa. Dos franceses, o que mais me encanta é
Francis Ponge. Como ele, acredito que muita coisa que está nos
livros de poesia não é poesia. Tenho sentido um pouco de fastio por
uma poesia muita delicada e perfumada. Lembra-me aqueles cartões de
Natal muito perfumados e cheio de rosas.
R - Até que ponto a música indica caminhos poéticos? Letra de música
é poesia ou é poema?
DG - A letra de música muito raramente atinge a qualidade de um
poema. Por exemplo, Dois irmãos do Chico Buarque é uma letra que
poderia ser um poema. Agora, compositor não é poeta. Não há uma obra
construída, não há organicidade poética. Num disco com 12 músicas,
aqui e ali você encontra bons versos. Mesmo um compositor talentoso
com Caetano, comete aqueles versos como “a sua coisa toda tão certa,
beleza esperta”. Acho que é um equívoco chamar compositores de
poetas. Isso até os desmerece como músicos. A inserção é outra.
Estão na indústria de entretenimento. No Brasil, por causa da
ditadura, os músicos populares passaram a ocupar o lugar de
intelectuais. No começo resistiram, mas muitos hoje se dão ares de
“pensadores do Brasil”. O Chico Buarque soube manter a elegância e a
compostura. O que me espanta é analisar essas músicas como obras
literárias. É risível. Acho que os intelectuais se refugiaram nas
academias e agora está difícil ocupar novamente o espaço. Tudo virou
showbizz. Morro de rir da indignação de alguns quando o Caetano sai
em Caras ou quando vai ao Gugu. Aquele clip do Caetano lendo
Stendhal em francês, de terno e colete, com uma biblioteca imensa de
livros de capa dura não é engraçado? O Caetano quer entrar direto
para a Academia Francesa.
R - “Brecha” é um exemplo de concisão. É possível conviverem a
concisão e o poema longo? Cite um exemplo?
DG - Acho que cada poema pede uma técnica e uma forma. A técnica
ergue-se e desfaz com o poema. Cada um tem suas exigências. A
concisão é uma qualidade, mas não pode virar um projeto. Vejo que
muitos poetas jovens pensam que cortando toda sintaxe ficam
concisos. O poema pode ficar obscuro, sem que ganhe qualidade. Para
falar de umas férias em Maceió, enquanto lia o livro Uma arte, com
as cartas da Elizabeth Bishop, pensei que o poema deveria ser longo,
como uma carta. No poema longo, é mais difícil você trabalhar. Seus
defeitos aparecem mais. Ele deve ser longo, mas sem gorduras. Sinto
que há um certo preconceito contra o poema longo. Como se, pelo fato
de ser longo, o poeta não fosse rigoroso, não tivesse domínio.
Portanto, acho que há poemas longos que estão na medida certa e
poemas curtos que são flácidos. Um poeta que une concisão e
densidade é o Ronald Polito. A Orides Fontela também. Eu quis e
quero arriscar a fazer poemas longos. Não tenho medo dos erros.
Percebo que muitos estão medrosos ou trilhando aquela linha de
Mallarmé de fazer o poema perfeito e definitivo. A poesia é nosso
espaço de liberdade e de risco. Não gosto mais de insigths poéticos,
flashes, paisagens mínimas. Sobra charme e falta consistência. Acho
que isso não chega a estruturar uma visão poética.
R - A imagem é em “À Margem”, com perdão da rima, o ponto alto, o
brasão que encerra a poesia que produz. Como encara a questão
“pictórica” em seus poemas?
DG - Não me vejo com um poeta que tenha altos vôos de imaginação.
Não sei construir grandes paisagens imaginárias, cenários
surrealistas, metáforas em fogo. Acho que a parte pictórica está
ligado sim ao sentido da observação. Estou muito atento às coisas,
aos bichos, às pessoas. Gosto muito de pintura, acho que em
determinados poemas tento uma descrição das coisas. Uma descrição
poética. Cada vez mais me apaixono por dicionários, por geografia,
paisagens, livros de viagem. Se tivesse tempo ou dinheiro, gostaria
de fazer um mapeamento poético de Minas Gerais.
R - Há uma ambigüidade interessante em “Anel Caucasiano” onde afirma
que “Antes que todos esqueçam(...) reste apenas uma montanha de
pedra”. A pedra que foi tudo pode ser esquecida, pode ser nada... A
pedra nunca é “perda”? O poeta é o escultor do nada, da pedra perda
ou da perda pedra?
DG - A ambigüidade deve-se ao fato do poema ter diversas leituras.
Uma das principais referências é o mito de Prometeu recontado de
diversas maneiras por Kafka. Na última versão, citando bem
grosseiramente, ele diz que os deuses foram embora, a ave nunca
voltou para bicar o fígado de Prometeu, ele morreu e todos
esqueceram da história. Acho que ele descreve os tempos modernos. A
pedra como mero acidente geográfico é a pedra sem o menor sentido do
sagrado. Um estoque de rochas para ser removidas por escavadeiras.
Para os gregos, toda a geografia estava imantada pelos deuses. Os
homens de hoje nada vêem de sagrado na paisagem. A poesia deve
servir sim para que eles relembrem que cada um tem uma centelha
Divina, roubada aos deuses por Prometeu. Em Ascese, naquele capítulo
final, Niko Kazantzakis lança um desafio grandioso ao homem. Mesmo
que ele não acredite mais em Deus ou em deuses, deve acreditar sim
na divindade que há em todo ser humano. Deve lutar para que o homem
não seja oprimido, alienado ou se transforme em mero consumidor. O
anel caucasiano é esta lembrança que Prometeu carrega do seu período
preso na pedra.
R – Faltou Heráclito entre as epígrafes de seu livro “As faces do
rio”?
DG - Acho que ele está lá através dos versos de Borges,
que sempre falava muito de Heráclito. Achei que sugerir apenas
ficaria melhor.
R - “A língua não é instrumento do poeta”. Como é o seu processo de
criação? O poema escolhe o poeta?
DG - Eu não concordo com aqueles que chamam poesia de ofício ou
artesanato. Embora, a palavra arte tenha origem em artesanato acho
que poesia não é artesanato. Se o fosse, depois de aprendido o
ofício, iríamos fazendo peças cada vez melhores. A poesia é uma
visitação. Você pode escrever hoje e permanecer meses sem escrever
nada. Quando ela vira apenas técnica, fica esvaziada. Qualquer poeta
de província pode escrever um soneto por dia. Não acredito nesta
idéia do Cabral de que poesia é trabalho. Valéry sempre dizia que
nada fala mais da gente quando falamos das coisas. Eu sou mais da
linha do José Paulo Paes que dizia acreditar piamente em inspiração.
Não em escrita automática ou que o poema vem pronto e acabado. Sem a
chispa inicial nada feito. Por isso, acho que servimos à língua. Não
temos domínio sobre ela, coisíssima nenhuma. Nós passamos, ela
perdura. Creio sim que as palavras e os poemas nos buscam. É uma
lição de humildade, logo para os poetas que são tão vaidosos.
R - O poema “Trilhas” é um poema piada? Como encara esta vertente?
DG - Não é um poema piada, embora haja um certo humor. Ainda não sei
bem onde colocar o humor em minha poesia. Ele aparece mais em tom de
sarcasmo e auto-ironia. Em Trilhas, imaginei que aqueles caminhos
feitos pelas vacas fossem um espécie de fraseado. Os pontos seriam
as bostas. Coisa de quem viveu em sítio e foi buscar muita vaca no
pasto.
R - O poema “ambiente de trabalho” foi feito no trabalho?
DG – Foi escrito sim no trabalho. Acho terrível a previsibilidade e
mecanicidade de nossas vidas. O trabalho moderno tem uma efeito
alienante e emburrecedor. Lembro do livro A invenção de Morel de
Bioy Casares, que falou de pessoas "virtuais" bem antes disso
existir. Ou daquele cenário de Brazil- O filme ou mesmo de O
processo filmado por Orson Welles. A poesia tenta despertar o homem
dessa espécie de zumbismo.
R – Em “O prisioneiro da pedra” e “Peso” vislumbram-se os primeiros
acordes polifônicos de outro livro “Do Silêncio da Pedra? O que liga
estes dois momentos? Pra onde caminha a sua poesia?
DG - Você captou bem. Em cada livro, sempre surge um ou outro poema
que dá uma pista do que pode ser o outro. Fui dar conta disso só
mais tarde, quando vi que em As faces já existia esta temática sobre
a pedra. E que ainda não se esgotou. Acho que vou retomar a este
tema.
R – Tem algum mote que o acompanhe pela vida?
DG - Acho que há uma fidelidade às palavras que ouvi na infância, ao
meu estado Minas Gerais. Como naquele poema do Drummond, Minas e
dicionários estão sempre presentes.
R - José Paulo Paes encara a poesia como talento e João Cabral de
Melo Neto como trabalho. Qual a sua opinião? Está de que lado?
DG - Não concordo com esta linha engenheiro do verso do João Cabral.
Acho que ele faz isso por ter horror à poesia sentimental e
perfumada. Sou seu leitor e vejo que há muita emoção nos seus
versos, ele fala dele quando fala das coisas. Os poetas mentem muito
e falam uma coisa hoje e outra amanhã. Ele diz ter horror ä música e
gosta do canto flamenco, que é de uma intensidade emocional extrema.
Como já lhe disse, acredito no dom, no "duende" dos espanhóis. Só
que não significa falta de trabalho ou rigor. Você continua tendo
sim a responsabilidade de decantar as palavras. Acredito como
defende María Zambrano na origem da poesia como oráculo. O que posso
dizer está no poema Fiapos, que lhe enviei.
Fiapos
Para José Paulo Paes
Sei que sei
não sei bem o quê.
Saber não revelado,
ainda envolto em
membrana de placenta.
Lembro-me de que preciso
lembrar de uma coisa
que não deveria ser esquecida.
Lembrar de quê?
De um território que se espraia
em sua mudez de azul?
De uma palavra soprada
em tempos de antes de eu nascer,
que na tarefa de viver
caiu no esquecimento?
Num lapso, às vezes,
parece que me lembro
e a lembrança passa
sem que fique registro.
A luz de Apolo
roça minha cabeça
sem que arrebatá-la
eu possa.
Por ela, esmolo.
Rendo sacrifícios.
Ignora-me.
Vai-se embora
com suas chispas.
Ficam fiapos,
cacos, esboços.
Logo, desmemoriado,
quedo-me cego
e abandonado.
R - Como procedeu no soneto “Olhos” para concentrar ali muitas das
dualidades de uma vida? A vida imita a arte?
DG - Sei que há uma tensão na minha poesia. Que busca a harmonia de
um Mondrian ou quer a intensidade de um Pollock ( acho que
exagerei!) Enfim, há esta luta entre delicadeza e profundidade. O
poema Olhos tem uma origem bem real. Tínhamos mesmo um cavalo cego.
Em A carne e o tempo ele retorna no poema Crinas. É um cavalo que
freqüenta meus sonhos, e quando sonho com ele, sinto uma sensação de
dor intensa. Por causa dele e porque está muito ligado à figura do
meu pai. É muito duro aprender a perder. E o que é a vida? Uma perda
contínua. Você fala desse poema e este é um dos que me causaram
maior dor para trazê-lo à luz.
R - Você colocou uma nota explicando alguns, nomes, passagens do
livro... Qual a importância que dá ao entendimento do leitor?
DG - Coloquei no segundo livro e me arrependo amargamente. Segui o
conselho de um amigo, que gosta de ser di..dático. Para quem não
sabe, parece um tom professoral e pretensioso. Quem já conhece, acha
que está sendo chamado de burro. Portanto, conselho de quem já
aprendeu errando: nada de notinhas. Acho que Marianne Moore era a
única poeta que sabia fazer notas precisas. Além disso, elas tiram
parte do mistério do poema.
R – Como vê a questão religiosa em alguns de seus poemas?
DG - Você aponta muito bem esta vertente pouco observada. Não tenho
nenhuma religião, nem mesmo posso dizer que tenho fé. Li muito sobre
zen-budismo, sufismo, antroposofia e mitologia. Há uma frase de
Plotino que diz que o divino que há nele busca o divino que há no
mundo. Acredito numa espécie de chama que nunca se apaga. Acho que o
meu pensamento religioso hoje é próximo do que está em Ascese, do
Kazantzakis. Acho que a poesia é uma religião sem Deus. Gostaria
muito de ter uma fé. Penso nisso quando ouço Arvo Pärt ou Gorécki,
em cuja música há um genuíno sentimento religioso. O que tenho é uma
ânsia, um desejo de pacificação. Sou muito ligado ao mundo terreno
para ser um místico. Embora, perceba que há um veio místico em minha
poesia. Acho que Artaud também estava buscando alguma coisa. Até
mesmo o uso de drogas pode ser visto como a procura de um sentido
divino.
R – Fale sobre o seu processo criativo?
DG - Tudo começa com um certo mal-estar, uma fixação, um desejo de
exprimir alguma coisa que está incomodando. Normalmente, tenho
apenas pistas: um verso, uma rima, uma palavra, o final do poema. Aí
vou redescobrindo, puxando a linha, até que fisgue o peixe.
Portanto, em primeiro lugar respeito muitíssimo esta chispa inicial.
Ela precisa acontecer. Procuro ter paciência e não forçar a mão.
Depois, deve-se tratar com muito cuidado aquilo que nos doi dado ou
revelado. Vem a fase da escrita, de cortar, de reescrever. Acho que
sempre corto mais do que acrescento. O amadurecimento do poema é um
processo de eliminação do que não é fundamental. De limpeza, mesmo.
Escrevo direto no computador. os poemas ficam ali descansando. Só no
final de um livro volto a ele e mexo novamente. Cada livro meu tem
um certo "conceito" ou "projeto", com exceção do primeiro. Nada
muito cerebral. A partir de um título e das epígrafes ( fundamentais
para mim) vou formando um campo imantado para que os poemas venham
se juntar a este núcleo. Claro que no meio do caminho surgem alguns
poemas fora do "tema" que nunca recuso. Em cera medida, sei quando
entrei no "miolo" do livro e escrevi os poemas mais consistentes.
Sempre há uma peneirada final depois da leitura de um ou dois
amigos. Além disso, minha criação é quase sempre noturna. Daí o
poema Domínio da noite, de A carne e o tempo. Gostaria de ser um
poeta solar, mas vivo sob Saturno, sou melancólico. Acho que meu
único método é respeitar o dom. O momento mais luminoso é quando
chega um poema quase todo "dado" e "revelado". É uma luminosidade
que nos faz cegar e ansiar por ela. O que é muito perigoso. Você só
sente "real" quando está escrevendo. Como isso é impossível, parte
da sua vida pode mergulhar na escuridão. Daí o fato de que muitos
poetas, lembro Hölderlin, que foram profundamente tocados pela
poesia tenham mergulhado na loucura. Você pode chegar a experiências
limites. No meu segundo livro, passei por esta espécie de febre.
R- Na medida que lia sua obra percebi a presença de uma porção
lírica pulsando com maior intensidade a cada livro. É isso mesmo?
DG - Não sei como dei vazão à porção lírica que até então se
resguardara. Brincadeira, nunca tive medo de ser chamado de lírico.
Isto era um xingamento na época da poesia concreta. O que motivou
foi o fato da poesia brasileira estar caminhando para um
minimalismo. Flashes, paisagens mínimas, sensações. Lendo os autores
que julgo importantes via que els não temeram correr riscos, de
parecer prosaicos ou se deixarem levar pela realidade lá fora. Não
sei lhe explicar, mas acho a poesia atual como uma pessoa que veste
a roupa certa, tem a postura certa, leu os livros certos e vai num
happy hour muito chique, cheio daqueles críticos da Folha de S.
Paulo, e todo mundo se parece. Daí resolvi partir para poemas mais
longos, e para falar da perda da juventude e dos aguilhões da carne
achei melhor uma linguagem mais rude e intensa. Estava muito
impressionado com o Baudrillard de A Transparência do Mal e certos
poemas tiveram essa exacerbação de simulacros. Há quem goste, há
quem tenha detestado, achando que soltei as rédeas, fui
autocomiserativo. Sinceramente, não fiquei nem um pouco abalado. Não
acredito em livros perfeitos e assépticos. Hoje, tiraria alguns
poemas que lá estão. Mas gosto de muita coisa. Deveria ter dividido
o livro em duas seções para deixar mais claro sua arquitetura. Na
verdade, ele não é bagunçado como as pessoas imaginam. Ele tem uma
linha condutora. Mesmo a seção final que deveria ter chamado de "A
educação dos sentimentos" tem um propósito que é mostrar a saída
através da arte. São as aragens do sagrado de que falou Guimarães
Rosa.
R - Qual o papel do escritor na sociedade?
DG - Não sei bem qual é o papel do poeta no mundo de hoje. Para que
poetas em tempos sombrios? Acho que a poesia tem a função de religar
o homem ao semelhante, ao cosmo. De dar voz aos que estão mudos. De
depurar a língua tirando dela as palavras descartáveis e clichês.
Não há um dia em que não duvide de tudo isso. Será mesmo que o poeta
alcança alguma ressonância? Sou um pessimista. Vejo o mundo atual
com um misto de horror e medo. Será que a poesia pode frutificar
numa terra tão devastada? Não tenho respostas. Vou insistindo.
Alguns preferem as batalhas perdidas.
Leia mais entrevistas feitas por
Rodrigo Saraiva Leão
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