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Donizete Galvão
 

Entrevista a Rodrigo de Souza Leão
 


"O que me espanta é analisar essas músicas como obras literárias. É risível. Acho que os intelectuais se refugiaram nas academias e agora está difícil ocupar novamente o espaço. Tudo virou showbizz. Morro de rir da indignação de alguns quando o Caetano sai em Caras ou quando vai ao Gugu. Aquele clip do Caetano lendo Stendhal em francês, de terno e colete, com uma biblioteca imensa de livros de capa dura não é engraçado? O Caetano quer entrar direto para a Academia Francesa".
 

Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata, pequena cidade do Sul de Minas, em 24 de agosto de 1955. Filho de Sílvio Abel de Souza e Maria Aparecida de Souza. Os pais eram modestos sitiantes e a família não tinha qualquer envolvimento com atividades artísticas ou literárias. Nem mesmo uma Biblioteca Pública havia naquela época na cidade. A avó, Ana Marques Moreira (Anita), fluminense vinda da cidade de Conservatória, foi a figura mais marcante de sua infância. Aos 18 anos, perde o pai que morre aos 49 anos. Esta ausência marca definitivamente sua vida e sua poética.

Seu primeiro contato com a poesia foi a leitura do poema Infância de Carlos Drummond de Andrade no segundo ano primário. Mais tarde descobriu a poesia de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Admira desde então a poesia de Dante Milano e do poeta mineiro Emílio Moura.

Fez o curso primário, ginasial e de segundo grau no Colégio Nossa Sra. do Carmo dirigido por irmãs dominicanas. Estudou administração de empresas em Santa Rita do Sapucaí, também no Sul de Minas. Enquanto estudava, exercia a atividade de professor. Em 1979, muda-se para São Paulo e cursa a Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero. Começa a trabalhar como redator de publicidade na Editora Abril.

Nessa época, participa da antologia Veia Poética, editada por Wladir Nader, com os poetas que estavam começando nos anos 80. Publica também em antologias do Grupo Poeco da Universidade Mackenzie e no Suplemento Literário do Minas Gerais. Traduzidos por Paulo Octaviano Terra poemas seus saem também no Mariel, em Miami, um tablóide editado por escritores cubanos como Reynaldo Arenas e Juan Abreu.

Em 1988, publica Azul navalha ( T.A. Queiroz, Editor). Graças ao empenho de críticos como Leo Gilson Ribeiro e Nelly Novais Coelho é premiado pela APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte - com revelação de autor. O mesmo livro é também indicado para o Prêmio Jabuti em 89.

Em 1991, publica As faces do rio ( Água Viva edições) que tem prefácio do poeta, crítico e tradutor Paulo Octaviano Terra e apresentação do crítico e professor Carlos Felipe Moisés. O livro foi comentado na época pelos críticos Fábio Lucas e Fernando Py.

Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil), terceiro livro de poesia, é editado em 1996. Foi resenhado por Augusto Massi, na Folha de S. Paulo, Floriano Martins na revista Poesia Sempre, por Miguel Sanches Neto na Gazeta de Londrina e por José Paulo Paes, em O Estado de S. Paulo. A resenha de José Paulo Paes foi incluída no livro Os perigos da poesia (Topbooks) editado em 97. O professor e tradutor Paulo Vizioli fez a apresentação e a artista Renina Katz cede uma de suas litografias para ser usada no livro.

Em 97, lança A carne e o tempo (Nankin Editorial) com apresentação do jornalista Humberto Werneck. Três dos poemas desse livro foram publicados pelo jornalista Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S. Paulo, O Globo e outros importantes jornais do país. Este livro esteve entre os indicados para o Prêmio Jabuti 98 da Câmara Brasileira do Livro.

Em 96 e 97, Donizete Galvão participa do Ciclo Poesia iniciativa da Secretaria Municipal da Cultura, coordenada por Claudio Willer e Eunice Arruda, fazendo leituras no Centro Cultural de São Paulo e na Casa de Cultura do Butantã. Lê também seus poemas na Livraria Duas Cidades, tradicional reduto de escritores em São Paulo.

Durante os últimos 10 anos publicou em jornais e suplementos literários como Nicolau, O Galo, Poiésis, Livro Aberto, Babel ( revista de poesia editada na Venezuela), Blanco Móvil (México), Suplemento Literário do Minas Gerais, A Tarde (Salvador) entre outros. Está presente na Nova Antologia da Poesia Brasileira, organizada por Olga Savary. Ainda em 98, saem poemas de sua autoria na Anthologie de la poésie résillienne traduzida por Isabel Meyrelles para o francês, na revista Anto, editada em Portugal e na Antologia da Poesia Mineira do Século XX, organizada por Assis Brasil. Tem inéditos dois livros de poemas infantis: Olha para esse azul e A menina dos olhos e os olhos da menina. Escreveu também uma comédia musical Quero beijar-te as mãos, com referência sentimental ao repertório da dupla Cascatinha e Inhana.

Avesso a participação em grupos, tem procurado uma trajetória independente. Trabalha como publicitário na Editora Abril. É casado com Ana Tereza Marques e tem dois filhos Bruno ( nascido em 84) e Anna Lívia ( nascida em 92).

Entre suas preferências, além da presença magna de Carlos Drummond de Andrade, estão os poetas Kafávis, W.B. Yeats, Octavio Paz , Jorge Luis Borges e Elizabeth Bishop. Na poesia brasileira contemporânea tem admiração pelo trabalho dos poetas Ivan Junqueira, Armando Freitas Filho, Hilda Hilst, Sebastião Uchoa Leite entre outros. Aponta também como exemplo da vitalidade da poesia brasileira as obras de Ruy Proença, Fábio Weintraub, Heitor Ferraz, Ronald Polito e Iacyr Anderson Freitas.

Poemas publicados em 1998:

  • Cinco poemas de A carne e o tempo na coluna de Elio Gaspari publicada em O Globo, Folha de S. Paulo e nos principais jornais do país.

  • Poemas publicados na revista Blanco Móvil, México, em número dedicado ao Brasil

  • Poema inédito sobre o Caraça publicado na revista portuguesa Anto em número especial dedicado à literatura
    brasileira

  • Poemas inéditos na revista Caracol-Viola, editada em Campinas.

  • Três poemas inéditos na revista Orion, que reúne produções de Brasil, Portugal e África.

  • Participação na Anthologie de la poésie brésilliene, Editions Chandeigne, França

  • Participação na antologia Poesia Mineira do Século XX organizada por Assis Brasil

  • Poema em homenagem a José Paulo Paes publicado na revista Nanico, SP

  • Seis poemas inéditos publicados na revista CULT

  • Poema publicado no Correio Braziliense, Brasília, em matéria sobre a poesia brasileira atual


Rodrigo - No poema “Silêncio” você escreve “Da pedra ser./Da pedra ter/duro desejo de durar”. É mais importante durar ou desejar durar? A Eternidade é a busca maior do escritor?


Silêncio

De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.


Donizete Galvão - Para começar, devo confessar que o verso “o duro desejo de durar”é um roubo. Os poetas são ladrões. Eu roubei do Paul Éluard que tem um livro com esse título. Já perguntava Rimbaud: a eternidade, o que é? A eternidade do nome, a glória, a celebridade não interessam. Interessa sim a eternidade da palavra. Que ela permaneça desestabilizadora, inquietante e capaz de emocionar. Não conhecemos quase nada da vida de Hesíodo, de Safo ou de Homero. Os versos que eles fizeram continuam vivos. Acho que o poeta se revolta com a falta de permanência, com tudo aquilo que acaba sem que ele possa registrar. O sentimento em relação a pedra vem daí. Do seu poder de permanência, enquanto nós, humanos, somos efêmeros. Como no verso de Píndaro, “o homem é o sonho de uma sombra”. O poeta procura a palavra que perdure. O ideal, acho, é que fique só a poesia. A biografia pode se perder.

R - Em “Almanaque da Pedra” há uma utilidade “metafórica” para cada tipo de pedra. Qual é a pedra, com certeza preciosa, que corresponde ao poema e a poesia? Concorda com a inutilidade da poesia?


Almanaque da Pedra

Roupa branca no quarador:
enxágue-a com pedra anil.

Afta no canto da boca:
mate-a com pedra-ume.

Água de bica na talha:
jogue-lhe pedra de enxofre.

Faca com corte cego:
amole-a com pedra branca.

Dedo de prosa com craca:
raspe-o com pedra-pomes.


DG - A poesia é mesmo inútil. No sentido de não ter valor de mercado, não ser vendável, não deixar as pessoas mais otimistas, não ter um fim imediato. Ela existe por si, sem que haja uma razão para que exista. Mesmo que chegue até a uns poucos, ela é importante para religar às pessoas ao cosmo, dar um sentido maior no existir. É a outra voz, de que falou Octavio Paz. Nesse sentido, acredito que todo ato criador é também político, mesmo que não haja nenhuma conotação social. Criar é exercer a liberdade. A poesia é importante para manter a língua viva, vigorosa, para além de uma linguagem autoritária ou utilitária. Como pedra, imagino a poesia como um seixo desses que o tempo foi lapidando. Que foi rolando por regatos até ser redescoberto pelo poeta. O seixo pode não servir para nada, mas é belo por ele mesmo.

R - É mesmo a polifonia a ambição do poeta?
DG - Acho que a música chega a regiões em que a palavra não chega. Mozart, Haendel, Villa-Lobos estão aí para mostrar que a música atinge outras esferas. Um ponto importante na conquista da voz do poeta é quando ele descobre a polifonia. Ele deixa de dizer “eu” e passa a dar voz a outros. São várias vozes que se superpõe a dele. Neste caso, acho que o poeta sofre um processo de despersonalização. Sua voz é uma voz projetada. Nela estão as vozes de outros poetas, dos que permaneceram mudos, das dores do seu tempo. Ponge dizia que o “o mundo mudo é nossa única pátria”. Penso no poeta tentando dar voz a essas coisas mudas e também aos homens que foram reduzidos à mudez. Há muitos poetas cuja poesia aspira ao silêncio. O Paul Celan é um bom exemplo. O que me estranha é ouvir jovens poetas dizerem que estão em busca do silêncio. Não é um pouco cedo? Eu, por enquanto, tenho muita coisa para dizer. Quanto mundo mudo precisa ganhar a voz em versos.

R - “Deus do deserto” nos remete a um desejo metafísico de liberação estética. O que um Deus pode impedir o poeta na realização do seu trabalho. A inspiração é fundamental e divina?
DG - Pensei na deusa Atena que nasceu da testa de Deus. Uma deusa sem mãe, portanto, totalmente antipoética. A poesia é sempre filha da grande Deusa Branca. Você pode chamar de inspiração, de inconsciente, de musa ou até mesmo de ofício. O fato é que a poesia tem um sentido oracular. Ela não se constrói do nada. Mesmo o poeta construtivista, que quer o tempo todo negar a presença dessa chama inicial, sabe que há um momento em que a poesia chega. Para alguns, chega quase pronta. Para outros, vem um verso ou uma rima, uma pista que precisa ser trabalhada. Acho importantíssimo o rigor em escrever, rescrever, cortar e burilar. Mas sem o impulso inicial, não há poesia. Você pode até insistir e “fabricar” um poema com sua técnica. Falta-lhe, entretanto, o sopro. É importante cultivar a paciência. Aceitar os períodos mais desérticos, quando a poesia se afasta. Estar atento quando ela ressurge. O poeta deve permanecer com a perplexidade e atenção de um menino que está descobrindo o mundo. A atenção é a sua forma natural de oração.

R - Assim como João Cabral, você em “Menos”, faz uma alusão a Miró. Seria João Cabral a sua influência mais explícita?
DG - Sempre gostei de poetas mais econômicos, mais secos. Na pintura também, gosto de Klee, Mondrian, Miró. Apesar de mineiro, e de morar próximo a uma rua que se chama Estilo Barroco, não sou muito chegado aos efeitos barroquizantes. Não se pode fazer poesia sem passar por Drummond ou de Cabral. A influência de Drummond é frutífera Acho perigoso a aproximação com Cabral porque ele tem um estilo muito marcado. Acho que um dos erros é tentar imitar sua técnica, sem ter sua poética. Penso que é mais uma questão de temperamento do que influência explícita. Não gosto da poesia civil, declamada em altos brados ou em tom lamentoso. Gosto de poetas que chamam de menores como o Emílio Moura, que precisa ser republicado urgentemente, e Dante Milano. Gosto também de Yeats, de Elizabeth Bishop. Por causa da objetividade, tenho mais afinidade com a poesia de língua inglesa do que com a francesa. Dos franceses, o que mais me encanta é Francis Ponge. Como ele, acredito que muita coisa que está nos livros de poesia não é poesia. Tenho sentido um pouco de fastio por uma poesia muita delicada e perfumada. Lembra-me aqueles cartões de Natal muito perfumados e cheio de rosas.

R - Até que ponto a música indica caminhos poéticos? Letra de música é poesia ou é poema?
DG - A letra de música muito raramente atinge a qualidade de um poema. Por exemplo, Dois irmãos do Chico Buarque é uma letra que poderia ser um poema. Agora, compositor não é poeta. Não há uma obra construída, não há organicidade poética. Num disco com 12 músicas, aqui e ali você encontra bons versos. Mesmo um compositor talentoso com Caetano, comete aqueles versos como “a sua coisa toda tão certa, beleza esperta”. Acho que é um equívoco chamar compositores de poetas. Isso até os desmerece como músicos. A inserção é outra. Estão na indústria de entretenimento. No Brasil, por causa da ditadura, os músicos populares passaram a ocupar o lugar de intelectuais. No começo resistiram, mas muitos hoje se dão ares de “pensadores do Brasil”. O Chico Buarque soube manter a elegância e a compostura. O que me espanta é analisar essas músicas como obras literárias. É risível. Acho que os intelectuais se refugiaram nas academias e agora está difícil ocupar novamente o espaço. Tudo virou showbizz. Morro de rir da indignação de alguns quando o Caetano sai em Caras ou quando vai ao Gugu. Aquele clip do Caetano lendo Stendhal em francês, de terno e colete, com uma biblioteca imensa de livros de capa dura não é engraçado? O Caetano quer entrar direto para a Academia Francesa.

R - “Brecha” é um exemplo de concisão. É possível conviverem a concisão e o poema longo? Cite um exemplo?
DG - Acho que cada poema pede uma técnica e uma forma. A técnica ergue-se e desfaz com o poema. Cada um tem suas exigências. A concisão é uma qualidade, mas não pode virar um projeto. Vejo que muitos poetas jovens pensam que cortando toda sintaxe ficam concisos. O poema pode ficar obscuro, sem que ganhe qualidade. Para falar de umas férias em Maceió, enquanto lia o livro Uma arte, com as cartas da Elizabeth Bishop, pensei que o poema deveria ser longo, como uma carta. No poema longo, é mais difícil você trabalhar. Seus defeitos aparecem mais. Ele deve ser longo, mas sem gorduras. Sinto que há um certo preconceito contra o poema longo. Como se, pelo fato de ser longo, o poeta não fosse rigoroso, não tivesse domínio. Portanto, acho que há poemas longos que estão na medida certa e poemas curtos que são flácidos. Um poeta que une concisão e densidade é o Ronald Polito. A Orides Fontela também. Eu quis e quero arriscar a fazer poemas longos. Não tenho medo dos erros. Percebo que muitos estão medrosos ou trilhando aquela linha de Mallarmé de fazer o poema perfeito e definitivo. A poesia é nosso espaço de liberdade e de risco. Não gosto mais de insigths poéticos, flashes, paisagens mínimas. Sobra charme e falta consistência. Acho que isso não chega a estruturar uma visão poética.

R - A imagem é em “À Margem”, com perdão da rima, o ponto alto, o brasão que encerra a poesia que produz. Como encara a questão “pictórica” em seus poemas?
DG - Não me vejo com um poeta que tenha altos vôos de imaginação. Não sei construir grandes paisagens imaginárias, cenários surrealistas, metáforas em fogo. Acho que a parte pictórica está ligado sim ao sentido da observação. Estou muito atento às coisas, aos bichos, às pessoas. Gosto muito de pintura, acho que em determinados poemas tento uma descrição das coisas. Uma descrição poética. Cada vez mais me apaixono por dicionários, por geografia, paisagens, livros de viagem. Se tivesse tempo ou dinheiro, gostaria de fazer um mapeamento poético de Minas Gerais.

R - Há uma ambigüidade interessante em “Anel Caucasiano” onde afirma que “Antes que todos esqueçam(...) reste apenas uma montanha de pedra”. A pedra que foi tudo pode ser esquecida, pode ser nada... A pedra nunca é “perda”? O poeta é o escultor do nada, da pedra perda ou da perda pedra?
DG - A ambigüidade deve-se ao fato do poema ter diversas leituras. Uma das principais referências é o mito de Prometeu recontado de diversas maneiras por Kafka. Na última versão, citando bem grosseiramente, ele diz que os deuses foram embora, a ave nunca voltou para bicar o fígado de Prometeu, ele morreu e todos esqueceram da história. Acho que ele descreve os tempos modernos. A pedra como mero acidente geográfico é a pedra sem o menor sentido do sagrado. Um estoque de rochas para ser removidas por escavadeiras. Para os gregos, toda a geografia estava imantada pelos deuses. Os homens de hoje nada vêem de sagrado na paisagem. A poesia deve servir sim para que eles relembrem que cada um tem uma centelha Divina, roubada aos deuses por Prometeu. Em Ascese, naquele capítulo final, Niko Kazantzakis lança um desafio grandioso ao homem. Mesmo que ele não acredite mais em Deus ou em deuses, deve acreditar sim na divindade que há em todo ser humano. Deve lutar para que o homem não seja oprimido, alienado ou se transforme em mero consumidor. O anel caucasiano é esta lembrança que Prometeu carrega do seu período preso na pedra.

R – Faltou Heráclito entre as epígrafes de seu livro “As faces do rio”?
DG - Acho que ele está lá através dos versos de Borges, que sempre falava muito de Heráclito. Achei que sugerir apenas ficaria melhor.

R - “A língua não é instrumento do poeta”. Como é o seu processo de criação? O poema escolhe o poeta?
DG - Eu não concordo com aqueles que chamam poesia de ofício ou artesanato. Embora, a palavra arte tenha origem em artesanato acho que poesia não é artesanato. Se o fosse, depois de aprendido o ofício, iríamos fazendo peças cada vez melhores. A poesia é uma visitação. Você pode escrever hoje e permanecer meses sem escrever nada. Quando ela vira apenas técnica, fica esvaziada. Qualquer poeta de província pode escrever um soneto por dia. Não acredito nesta idéia do Cabral de que poesia é trabalho. Valéry sempre dizia que nada fala mais da gente quando falamos das coisas. Eu sou mais da linha do José Paulo Paes que dizia acreditar piamente em inspiração. Não em escrita automática ou que o poema vem pronto e acabado. Sem a chispa inicial nada feito. Por isso, acho que servimos à língua. Não temos domínio sobre ela, coisíssima nenhuma. Nós passamos, ela perdura. Creio sim que as palavras e os poemas nos buscam. É uma lição de humildade, logo para os poetas que são tão vaidosos.

R - O poema “Trilhas” é um poema piada? Como encara esta vertente?
DG - Não é um poema piada, embora haja um certo humor. Ainda não sei bem onde colocar o humor em minha poesia. Ele aparece mais em tom de sarcasmo e auto-ironia. Em Trilhas, imaginei que aqueles caminhos feitos pelas vacas fossem um espécie de fraseado. Os pontos seriam as bostas. Coisa de quem viveu em sítio e foi buscar muita vaca no pasto.

R - O poema “ambiente de trabalho” foi feito no trabalho?
DG – Foi escrito sim no trabalho. Acho terrível a previsibilidade e mecanicidade de nossas vidas. O trabalho moderno tem uma efeito alienante e emburrecedor. Lembro do livro A invenção de Morel de Bioy Casares, que falou de pessoas "virtuais" bem antes disso existir. Ou daquele cenário de Brazil- O filme ou mesmo de O processo filmado por Orson Welles. A poesia tenta despertar o homem dessa espécie de zumbismo.

R – Em “O prisioneiro da pedra” e “Peso” vislumbram-se os primeiros acordes polifônicos de outro livro “Do Silêncio da Pedra? O que liga estes dois momentos? Pra onde caminha a sua poesia?
DG - Você captou bem. Em cada livro, sempre surge um ou outro poema que dá uma pista do que pode ser o outro. Fui dar conta disso só mais tarde, quando vi que em As faces já existia esta temática sobre a pedra. E que ainda não se esgotou. Acho que vou retomar a este tema.

R – Tem algum mote que o acompanhe pela vida?
DG - Acho que há uma fidelidade às palavras que ouvi na infância, ao meu estado Minas Gerais. Como naquele poema do Drummond, Minas e dicionários estão sempre presentes.

R - José Paulo Paes encara a poesia como talento e João Cabral de Melo Neto como trabalho. Qual a sua opinião? Está de que lado?
DG - Não concordo com esta linha engenheiro do verso do João Cabral. Acho que ele faz isso por ter horror à poesia sentimental e perfumada. Sou seu leitor e vejo que há muita emoção nos seus versos, ele fala dele quando fala das coisas. Os poetas mentem muito e falam uma coisa hoje e outra amanhã. Ele diz ter horror ä música e gosta do canto flamenco, que é de uma intensidade emocional extrema. Como já lhe disse, acredito no dom, no "duende" dos espanhóis. Só que não significa falta de trabalho ou rigor. Você continua tendo sim a responsabilidade de decantar as palavras. Acredito como defende María Zambrano na origem da poesia como oráculo. O que posso dizer está no poema Fiapos, que lhe enviei.


Fiapos
Para José Paulo Paes

Sei que sei
não sei bem o quê.
Saber não revelado,
ainda envolto em
membrana de placenta.
Lembro-me de que preciso
lembrar de uma coisa
que não deveria ser esquecida.
Lembrar de quê?
De um território que se espraia
em sua mudez de azul?
De uma palavra soprada
em tempos de antes de eu nascer,
que na tarefa de viver
caiu no esquecimento?
Num lapso, às vezes,
parece que me lembro
e a lembrança passa
sem que fique registro.
A luz de Apolo
roça minha cabeça
sem que arrebatá-la
eu possa.
Por ela, esmolo.
Rendo sacrifícios.
Ignora-me.
Vai-se embora
com suas chispas.
Ficam fiapos,
cacos, esboços.
Logo, desmemoriado,
quedo-me cego
e abandonado.


R - Como procedeu no soneto “Olhos” para concentrar ali muitas das dualidades de uma vida? A vida imita a arte?
DG - Sei que há uma tensão na minha poesia. Que busca a harmonia de um Mondrian ou quer a intensidade de um Pollock ( acho que exagerei!) Enfim, há esta luta entre delicadeza e profundidade. O poema Olhos tem uma origem bem real. Tínhamos mesmo um cavalo cego. Em A carne e o tempo ele retorna no poema Crinas. É um cavalo que freqüenta meus sonhos, e quando sonho com ele, sinto uma sensação de dor intensa. Por causa dele e porque está muito ligado à figura do meu pai. É muito duro aprender a perder. E o que é a vida? Uma perda contínua. Você fala desse poema e este é um dos que me causaram maior dor para trazê-lo à luz.

R - Você colocou uma nota explicando alguns, nomes, passagens do livro... Qual a importância que dá ao entendimento do leitor?
DG - Coloquei no segundo livro e me arrependo amargamente. Segui o conselho de um amigo, que gosta de ser di..dático. Para quem não sabe, parece um tom professoral e pretensioso. Quem já conhece, acha que está sendo chamado de burro. Portanto, conselho de quem já aprendeu errando: nada de notinhas. Acho que Marianne Moore era a única poeta que sabia fazer notas precisas. Além disso, elas tiram parte do mistério do poema.

R – Como vê a questão religiosa em alguns de seus poemas?
DG - Você aponta muito bem esta vertente pouco observada. Não tenho nenhuma religião, nem mesmo posso dizer que tenho fé. Li muito sobre zen-budismo, sufismo, antroposofia e mitologia. Há uma frase de Plotino que diz que o divino que há nele busca o divino que há no mundo. Acredito numa espécie de chama que nunca se apaga. Acho que o meu pensamento religioso hoje é próximo do que está em Ascese, do Kazantzakis. Acho que a poesia é uma religião sem Deus. Gostaria muito de ter uma fé. Penso nisso quando ouço Arvo Pärt ou Gorécki, em cuja música há um genuíno sentimento religioso. O que tenho é uma ânsia, um desejo de pacificação. Sou muito ligado ao mundo terreno para ser um místico. Embora, perceba que há um veio místico em minha poesia. Acho que Artaud também estava buscando alguma coisa. Até mesmo o uso de drogas pode ser visto como a procura de um sentido divino.

R – Fale sobre o seu processo criativo?
DG - Tudo começa com um certo mal-estar, uma fixação, um desejo de exprimir alguma coisa que está incomodando. Normalmente, tenho apenas pistas: um verso, uma rima, uma palavra, o final do poema. Aí vou redescobrindo, puxando a linha, até que fisgue o peixe. Portanto, em primeiro lugar respeito muitíssimo esta chispa inicial. Ela precisa acontecer. Procuro ter paciência e não forçar a mão. Depois, deve-se tratar com muito cuidado aquilo que nos doi dado ou revelado. Vem a fase da escrita, de cortar, de reescrever. Acho que sempre corto mais do que acrescento. O amadurecimento do poema é um processo de eliminação do que não é fundamental. De limpeza, mesmo. Escrevo direto no computador. os poemas ficam ali descansando. Só no final de um livro volto a ele e mexo novamente. Cada livro meu tem um certo "conceito" ou "projeto", com exceção do primeiro. Nada muito cerebral. A partir de um título e das epígrafes ( fundamentais para mim) vou formando um campo imantado para que os poemas venham se juntar a este núcleo. Claro que no meio do caminho surgem alguns poemas fora do "tema" que nunca recuso. Em cera medida, sei quando entrei no "miolo" do livro e escrevi os poemas mais consistentes. Sempre há uma peneirada final depois da leitura de um ou dois amigos. Além disso, minha criação é quase sempre noturna. Daí o poema Domínio da noite, de A carne e o tempo. Gostaria de ser um poeta solar, mas vivo sob Saturno, sou melancólico. Acho que meu único método é respeitar o dom. O momento mais luminoso é quando chega um poema quase todo "dado" e "revelado". É uma luminosidade que nos faz cegar e ansiar por ela. O que é muito perigoso. Você só sente "real" quando está escrevendo. Como isso é impossível, parte da sua vida pode mergulhar na escuridão. Daí o fato de que muitos poetas, lembro Hölderlin, que foram profundamente tocados pela poesia tenham mergulhado na loucura. Você pode chegar a experiências limites. No meu segundo livro, passei por esta espécie de febre.

R- Na medida que lia sua obra percebi a presença de uma porção lírica pulsando com maior intensidade a cada livro. É isso mesmo?
DG - Não sei como dei vazão à porção lírica que até então se resguardara. Brincadeira, nunca tive medo de ser chamado de lírico. Isto era um xingamento na época da poesia concreta. O que motivou foi o fato da poesia brasileira estar caminhando para um minimalismo. Flashes, paisagens mínimas, sensações. Lendo os autores que julgo importantes via que els não temeram correr riscos, de parecer prosaicos ou se deixarem levar pela realidade lá fora. Não sei lhe explicar, mas acho a poesia atual como uma pessoa que veste a roupa certa, tem a postura certa, leu os livros certos e vai num happy hour muito chique, cheio daqueles críticos da Folha de S. Paulo, e todo mundo se parece. Daí resolvi partir para poemas mais longos, e para falar da perda da juventude e dos aguilhões da carne achei melhor uma linguagem mais rude e intensa. Estava muito impressionado com o Baudrillard de A Transparência do Mal e certos poemas tiveram essa exacerbação de simulacros. Há quem goste, há quem tenha detestado, achando que soltei as rédeas, fui autocomiserativo. Sinceramente, não fiquei nem um pouco abalado. Não acredito em livros perfeitos e assépticos. Hoje, tiraria alguns poemas que lá estão. Mas gosto de muita coisa. Deveria ter dividido o livro em duas seções para deixar mais claro sua arquitetura. Na verdade, ele não é bagunçado como as pessoas imaginam. Ele tem uma linha condutora. Mesmo a seção final que deveria ter chamado de "A educação dos sentimentos" tem um propósito que é mostrar a saída através da arte. São as aragens do sagrado de que falou Guimarães Rosa.

R - Qual o papel do escritor na sociedade?
DG - Não sei bem qual é o papel do poeta no mundo de hoje. Para que poetas em tempos sombrios? Acho que a poesia tem a função de religar o homem ao semelhante, ao cosmo. De dar voz aos que estão mudos. De depurar a língua tirando dela as palavras descartáveis e clichês. Não há um dia em que não duvide de tudo isso. Será mesmo que o poeta alcança alguma ressonância? Sou um pessimista. Vejo o mundo atual com um misto de horror e medo. Será que a poesia pode frutificar numa terra tão devastada? Não tenho respostas. Vou insistindo. Alguns preferem as batalhas perdidas.


 


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