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Rafael Barreto 

 

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Rafael Barreto


 

A Arte em Jung: 

uma análise do processo criativo a propósito de Soares Feitosa e George Gershwin.

A Feitosa, poeta sertanejo.

A Gershwin, músico da cidade.

 

Intróito; Caminhos ao universal, misticismo, loucura e a arte; Criação: expressão do inconsciente, Jung; Gershwin: Summertime; Feitosa: Prozac; Semelhanças: o arquétipo da criança, Isaías.

 


Intróito.

“Falarei de um objeto que está em contato imediato com a melhor parte de nossa felicidade e não muito distante da nobreza moral da natureza humana”1, dizia Schiller na Carta I, de importante obra sua em que se propunha discutir a temática da Arte.

Não só este, mais inúmeros outros autores andaram às voltas com este tema, talvez pelo fato de dizer respeito de forma muito próxima ao humano. Nossa preocupação aqui, portanto, junta-se a toda esta plêiade de pensadores, sem querer lhes ombrear em certeza ou saber, que alguma vez se indagaram sobre o fenômeno da Arte. Antes de tratarmos mais detidamente de nossas intenções, lancemos mão de subsídios à investigação a que propõe o título.

Em Platão existe um desejo de vincular o fenômeno da Arte a um aspecto mais metafísico. No Fedro, Platão estabeleceu a idéia do Belo e da Arte em relação com a Teoria das Idéias e da Imortalidade da Alma. Sua preocupação era, todavia, notadamente pedagógica (aliás como todo o seu pensamento). Assim, sua teoria estética nada tem de autônoma. Ele seria um esteta contrário à estética pura.

De modo semelhante, Aristóteles trata da criação artística em sua “Arte poética”. A Arte seria oriunda da capacidade inata do homem de imitar e do prazer que este tem ao apreciar as imitações. As Artes se distinguem basicamente pelo fato de se utilizarem de diversos meios e maneiras para imitar também objetos diversos. A preocupação com a Arte é, aqui também, instrumental: a Arte teria uma marca do senso moral, sempre buscando a essência interna e ideal de todas as coisas, proporcionando um gozo intelectual. A isso o Estagirita denominava de catarse (purificação ou purgação).

A Arte passa com essa configuração à Idade Média em que o caráter religioso era o suporte e o fim a ser buscado. Assim se manteve até a chegada do Renascimento, em que se descobriu o aspecto próprio do mundo estético. Coube ao napolitano Giambattista Vico, em sua Scienza Nuova, expressar esse novo modelo. Para ele, a função da arte consistia na perquirição acerca da parte sensível de um ser inteligente (o homem) num nível de tal profundidade que a razão não alcança. Por isso, ele dizia, que a obra de arte é dotada de quatro caracteres: ela é fantástica, alógica, infantil e metafísica.

Essa concepção metafísica da Arte aqui se fixa em definitivo no pensamento dos estetas, formando a escola dos estetas puros, seguida pelos românticos, idealistas e, de certa forma, pelo pensamento de Jung que iremos analisar em tópico separado.

Schelling, idealista alemão, em 1800, em seu “Sistema do Idealismo Transcendental”, é expressão dessa crença. Com seus estudos, desperta-se para um ponto interessante na averiguação estética: a avaliação do aspecto do gênio artístico. Schelling cria que somente o artista era capaz de representar o infinito de forma finita, só ele seria capaz de revelar o artista desconhecido que age sobre todo o universo2.

Hegel, condiscípulo de Schelling, em sua “Fenomenologia do Espírito”, completa o amigo, quando afirma que cabe à Arte expressar o Absoluto de maneira sensível, sendo isso uma das supremas atividades do espírito. Igualmente Benedetto Croce, em sua “Filosofia do Espírito”, define a Arte como intuição (advinda do contato imediato com o objeto) lírica (sentimento) do particular, sendo a manifestação mais primitiva do espírito teorético, não sendo utilitária, nem pelo lado prático nem pelo lado intelectual.

Pelas explicações precedentes, sentimo-nos inclinados a eleger o nosso ponto de vista sobre a questão. Dizemos que o foco da análise aqui expendida não nos foi arbitrariamente definido, mas, de certa forma, até mesmo se nos impusera. Discutiremos aqui não o tema mais amplo da Arte, ou do Belo, mas o processo do artista, no ponto específico da possibilidade de sua comunicação com os demais seres humanos. Queremos dizer: a investigação se concentra nas condições de possibilidade de transmissão de um processo intrinsecamente subjetivo de humano a humano.

Não é este, contudo, o único ponto suscitado pela discussão que temos pela frente. Outro ponto interessa: a perquirição acerca dos motivos pessoais do artista, do seu impulso criativo. Em suma, qual é a força que dá movimento à criatividade do artista, ao mesmo tempo que o permite comunicar sua subjetividade.

A busca dessas respostas parece ter a necessidade de adentrar mais fundo na psique do que a mera investigação dos fatos que circundaram a confecção desta ou daquela obra de arte.

William Shakespeare tem encantado muitas gerações de leitores e espectadores pela profundidade e universalidade de suas imagens, desde o século XVII. Giacomo Puccini foi capaz de criar muitos dos momentos mais belos e memoráveis da história da Ópera de todos os tempos, dispondo do mesmo instrumental de tantos outros compositores.

Billie Holliday, com uma voz de extensão que não era nada notável, meio rouca, tornou-se um dos mitos do Jazz para toda a eternidade, ascendendo de sua condição de mulher negra e pobre. Brueghel pintou toda uma série de trabalhos que retratavam a alma flamenca, sendo considerado um dos gênios da pintura.

O que move cada uma e todas essas pessoas? O que há de “mágico” em seus trabalhos que desperta tamanho interesse em todos nós? Apesar de preferirmos os termos da Estética Pura, parece mais passível de encontrar respostas mais bem sucedidas quando essa análise busca subsídios nas contribuições da Psicologia.

Neste compasso, surge à mente a Teoria de Jung, com especial atenção aos conceitos de Inconsciente Coletivo e Arquétipos.

A pista inicial que Carl Gustav Jung fornece é relativa a imagens primordiais, que povoam as psiques individuais, uma vez que povoam o inconsciente coletivo. Isso explicaria a indagação que representou o estopim de todo este trabalho: como é possível o compartilhamento de emoções que têm, como representação, imagens tão semelhantes por pessoas tão diversas, muitas das vezes sem nenhuma possibilidade de relacionamento? O centro da discussão é, em suma, esse compartilhamento, que representa a ponte, vamos assim figurar, entre humanos.

Como ponto específico, veremos o exemplo desse compartilhamento que representa o móvel primeiro do trabalho: o arquétipo da criança como símbolo da esperança e da capacidade de superação de obstáculos imperiosos, presente na ária “Summertime” de George Gershwin e no poema “No Céu tem Prozac”, de Soares Feitosa.

Caminhos ao universal, misticismo, loucura e a arte.

Afirmamos, juntamente com Hegel dentre outros, que a Arte seria uma forma de ascender o homem a um plano de experiência mais absoluto. A explicação do que esses termos significam nos remeterá diretamente ao tópico seguinte. No presente tópico, ressaltamos que a experiência artística não é única nesse resultado, nem talvez a mais bem sucedida.

Na Cena II do Ato Segundo do “Hamlet” do Shakespeare, há como que um elogio à loucura feita pela personagem Polônio. Ali afirma o gênio de Stratfford-on-Avon que Hamlet apresenta extrema sensatez em sua loucura, “felicidade que só acontece com a loucura e que nem a mais sã razão e lucidez poderiam atingir com tanta sorte”. Realmente, parece haver na loucura uma linha tênue de muita proximidade com a genialidade, capaz de adentrar mais fundo no humano do que o pensamento racional.

Igualmente o aspecto místico se coloca na situação de mergulhar no homem, sobretudo no seu aspecto da procura de sua raiz mais essencial. Thomas Mann, em uma conferência sobre “Freud e o futuro”, apresenta a seguinte definição do mito como o “(...) fundamento da vida; (...) o padrão sem fim, a fórmula religiosa pela qual a vida se modela que suas características são uma reprodução do Inconsciente”3. A experiência mística também se encontra preenchida dessa capacidade arrebatadora da psique individual face à grandeza do humano, profundamente considerado.

Por último, já preparando o terreno para o próximo tópico, deixamos para tratar da questão do processo artístico. O traço comum entre esses três caminhos (loucura, misticismo e Arte) é a ausência das amarras da racionalidade tradicional e cartesiana. Por meio deles o homem se liberta, tal qual Ícaro em direção ao absoluto do céu.

 Mas como o lendário habitante do labirinto, filho de Dédalo, corre também o humano o perigo de receber a pecha de incompreendido, nas modalidades de gênio ou de louco.

O diferencial do processo artístico é que não se trata de uma “viagem” solitária como as demais. Marcel Duchamp (1887-1968), artista francês dadaísta, dizia que “(...) o ato criativo não é realizado pelo artista sozinho; o espectador traz o trabalho em contato com o mundo exterior decifrando e interpretando sua qualificação interna e a isso adiciona sua contribuição ao ato criativo. Isso se torna ainda mais óbvio quando a posteridade dá o veredicto final e alguma vezes reabilita artistas esquecidos”4. Mas em que limite que o artista se acompanha do espectador? Além disso, em que grau que está o artista acompanhado dos demais artistas no seu processo de criação?

Criação: expressão do inconsciente, Jung.

Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um expoente importante do pensamento ocidental do século passado. Pensando basicamente a Psicologia, Jung procurou uma releitura dos mitos, símbolos e arquétipos mais profundamente arraigados na humanidade. Dessa forma, seu pensamento terá o condão de sobreviver enquanto perdurar o interesse do homem por esses temas, devido à profundidade e à coerência do raciocínio engendrado por ele.

Discípulo de Sigmund Freud, Jung optou, contudo, por palmilhar caminho próprio, criando uma alternativa ao próprio mestre e a seu colega da escola freudiana, Alfred Adler.

Para Freud, a sexualidade exercia importância definitiva – alguns o fazem dizer exclusiva até – sobre a complexa rede da consciência humana, negligenciando atenção às demais instâncias.

Adler, por sua vez, professava a vontade de poder, de posse, como o elemento básico da formação da psique humana.

Jung abandonando a unilateralidade da libido-Teoria do Eros de Freud e da Teoria do Poder de Adler. A psique, conforme descrição de Jung, lança suas raízes no inconsciente coletivo, elemento central de sua teoria. Esse se caracteriza por um patrimônio hereditário de idéias, ou de possibilidade delas, em que a psique humana encontra sua fonte, além do inconsciente particular e consciente.

Num pensamento tão bem estruturado e exposto, é que não se espante de encontrar a relação entre Arte e o sentido de universal do homem. Por força disso, é que se pretende fazer análise sumária acerca de Jung, em busca de pistas da relação entre os objetos mesmos deste artigo.

O Inconsciente coletivo é, por assim dizer, a pedra central do alicerce da Teoria de Jung. Ele é a ligação do seu pensamento com tudo o que a humanidade já produzira acerca da busca da essência primária do homem.

O Inconsciente coletivo é entendido em contraposição com o particular. O inconsciente como que conteria essas duas camadas: o particular é formado pelas recordações infantis mais remotas; o coletivo contem as recordações do período pré-infantil, dos antepassados, incompletos, pois não foram vividos pessoalmente pelo indivíduo5.

O termo “Inconsciente coletivo” foi escolhido pelo fato de seus conteúdos serem mais ou menos os mesmos em todos os locais e indivíduos: eles são comuns em todos os homens, constituindo um substrato psíquico comum6.

A psique coletiva é formada por conteúdos que são incompletos, conforme se disse antes, pelo fato de não se poder, nesse caso, falar em aquisição pessoal. Assim, esses conteúdos não se constituem em informações prontas e acabadas pela hereditariedade, mas a capacidade de acessa-las é que é hereditária7.

Nessa psique coletiva, abrigam-se todas as virtudes específicas e todos vícios da humanidade e todas as outras coisas8. Isso tudo fica abrigado na forma de arquétipos, as formas mais antigas e universais da imaginação humana. Simultaneamente são pensamento e sentimento. O arquétipo é definido com uma certa aptidão para reproduzir essas imagens; se não as mesmas, pelo menos de forma parecida. Eles se comportam empiricamente como forças ou tendências a repetição das mesmas experiências9. É algo que age sempre e em toda a parte.

Há tantos arquétipos quanto há situações típicas na vida. Essa formação é descrita no breve parágrafo seguinte: “Há tantos arquétipos quanto há situações típicas na vida. Uma repetição sem fim gravou essas experiências em nossa constituição psíquica, não na forma de imagens preenchidas de conteúdo, mas primeiro como formas sem conteúdo, representando meramente a possibilidade de um certo tipo de percepção e ação. Quando uma situação ocorre que corresponde a um arquétipo dado, aquele arquétipo se torna ativado e uma certa compulsividade aparece, o que, com um guia instintivo, ganha seu caminho contra toda a razão e vontade, ou então produz um conflito de dimensões patológicas, o que vale dizer, uma neurose”10.

Como visto, esses arquétipos ficam guardados no Inconsciente coletivo até que algo os desperte e os faça agir com influência irrevogável sobre a individualidade. Essa última emerge juntamente com o Inconsciente coletivo, fundidos um no outro. Surgem, nesse compasso, os sonhos e as fantasias, cujas existências eram anteriormente ignoradas. Eis uma chave para se buscar o entendimento da Arte em Jung.

O tema foi tocado pelo autor em dois momentos, ao que se tem notícia. O primeiro num texto de 1931 – Da Relação da Psicologia Analítica e a Poesia – e o segundo num de 1950 – Psicologia e Literatura. Usaremos como base as versões em inglês constantes do volume 15 dos “The Collected Works of C. G. Jung”, denominado “The Spirit in Man, Art, and Literature”, traduzido por R.F.C. Hull e publicado pela Princeton University Press, em 1975.

Jung parte da idéia de que o processo criativo da arte é uma atividade psicológica, podendo ser apreciada a partir de um ângulo psicológico. O ângulo que a Psicologia pode analisar é o da Arte enquanto processo de criação artística, sendo interdito a este saber o que a Arte é. Isso é objeto de estudo da Estética. Assim, o que se pode esperar é uma explanação sobre o processo de criação da Arte e não a Arte em si.

A análise desse processo artístico não há de ser feita tendo como base a mesma forma de análise usada para as neuroses em geral. Não se pode reduzir um trabalho de arte a elementos principiológicos e básicos que teriam feto derivar, causalisticamente, daí o processo criativo. Tudo seria reduzido a repressões da libido, a traumas sofridos na infância, dentre outras causas de neuroses.

Aqui Jung se afasta mais do método de Freud. Em Freud o essencial é coletar todas as pistas que apontam para o inconsciente e, por meio da interpretação desse material, reconstruir o processo criativo. O problema é que tudo ficaria reduzido a um primitivo nível de sexualidade infantil reprimida. Nessa crítica, Jung deixou escrito:

“(...) A técnica freudiana de interpretação, tanto quanto ela se coloca sob a influência da sua hipóteses unilateral e errônea, demonstra uma propensão bastante óbvia.

Para fazer justiça a um trabalho de arte, a psicologia analítica deve se livrar inteiramente do preconceito médico; por que uma obra de arte não é uma doença e conseqüentemente requer uma aproximação diferente do método clínico”11.

Mais adiante, Jung dá uma idéia do que seria o processo de criação artística: “De fato, o significado especial de uma obra de arte reside no fato de que ela escapou das limitações da pessoalidade e se colocou além dos limites dos interesses pessoais de sua criação”12.

Assim, para Jung, o processo criativo não se deve somente a elementos psíquicos de ordem pessoal; deve muito mais ao poder de imagens que surgem do inconsciente, com um caráter caprichoso e com vontade própria. Esse tipo de arte é o que é produzido sobre os símbolos, com a psique livre de qualquer manifestação intencional do artista.

Pois bem, esse artista faz uso daquele arsenal de imagens primordiais que formam a herança comum da humanidade, ou seja, os arquétipos do Inconsciente coletivo. É do impacto desses arquétipos que surgem as grandes obras de arte, pois essa voz passa a soar com uma força bem mais significativa do que a nossa.

Jung conclui com as palavras seguintes:

“Esse é o segredo da Grande Arte e do seu efeito sobre nós. O processo criativo, na medida em que somos hábeis a segui-lo, consiste na ativação inconsciente de uma imagem arquetípica e em uma elaboração dessa imagem numa linguagem do presente e faz isso possível para que encontremos nosso caminho de volta aos momentos mais profundos da primavera de nossas vidas”13.

Essa comunicação com o universal é possível, no caso do artista, sustenta Jung no segundo texto referido, publicado em 1950, pelo fato de que a pessoa criativa é uma dualidade ou síntese de qualidades contraditórias14. Como ser humano, ele pode ter intenções e vontade, além de fins pessoais, mas como artista ele é o homem no sentido lato – ele é o “homem coletivo”, um vínculo da vida psíquica inconsciente da humanidade.

“Esse é o seu trabalho e é algumas vezes tão pesado que o artista está fadado a sacrificar a felicidade e tudo aquilo que faz a vida valer a pena para o homem comum”15.

O artista é um homem capaz de, por meio de seu trabalho, levar todos os demais ao estado de participação na vida psíquica do coletivo.

“A re-imersão ao estado de participação mística é o segredo da criação artística e do efeito que a Grande Arte tem sobre nós, por que não é o nível de experiência do indivíduo que conta, mas a vida do coletivo. Isso se deve ao fato de cada grande obra de arte é objetivo e impessoal, e profundamente tocante”16.

A Grande Arte é aquela, portanto, que, lidando com os arquétipos, transporta qualquer pessoa a um estado de participação mística na psique coletiva, sendo profundamente tocante, indo ao fundo da essência do homem. Não importa espaço, tempo ou todo o resto.

Gershwin: Summertime.

Após analisar Jung, veremos exemplo que demonstra essa ponte possível entre homens por meio da Arte, com o uso das mesmas figuras arquetípicas.

O primeiro caso nos veio pelo conhecimento da ária “Summertime” da ópera “Porgy e Bess” de George Gershwin.

George Gershwin, filho de emigrados russos, nascido no Brooklin em 26/09/1898, autodidata, tendo iniciado seus estudos aos 13 anos de idade, converteu-se no maior dos compositores americanos. Faleceu em 11/07/1937 com um tumor no cérebro.

A ópera se desenvolve em três atos, baseada no romance de DuBose Heyward de 1924, do qual esse autor e sua esposa, Dorothy Heyward, escreveram a peça chamada “Porgy”, em 1926. Desde 1922, Gershwin queria transformar esse texto em ópera, realizando assim sua grande ambição como compositor.

“Porgy and Bess” estreou em 30/09/1935 em Boston e em 10/10/1935 na Broadway. Por meio dela, o compositor põe em cena a vida cotidiana de uma comunidade negra, nos anos 30, com seu submundo de álcool, drogas e crimes. A originalidade se concentra não só no conteúdo, mas também na forma, com a utilização do jazz na composição do arranjo musical e do canto de toda a obra.

Summertime é a mais conhecida canção desse repertório, havendo obras escritas e sítios na internet dedicados especificamente a ela17. Summertime é cantada primeiramente, sendo aqui que se concentra todo o potencial dramático do tema, por Clara, uma soprano num personagem coadjuvante, como uma canção de ninar, logo no início do primeiro ato, tendo como pano de fundo o bairro do Catfish Row e seus habitantes. Após isso, interpreta-se a canção mais umas três vezes no decorrer da ação.

Summertime como canção de ninar é envolta numa aura de mistério, feitiço, a um só tempo representando um canto de lamento e um hino à esperança. Clara, tenta acalentar uma criança, dizendo-lhe e prometendo-lhe coisas que não têm correlação com o plano geral da situação de submundo das personagens. O texto da ária é o seguinte:

Summertime ... and the livin’ is easy/Fish are jumpin’... and the cotton is high/ Your dad’s rich... and your ma´s good-looking/ So hush little baby... don’t you cry/ One of these mornin’s...you gonna rise up singing/ You gonna spread your wings...and you’ll take to the sky/ But ‘till that morning...there ain’t nothin’ gonna harm you/ With your mamma and dad ... standing bye/ Summertime”18.

Aqui está expressa a idéia da esperança apesar de todos os obstáculos, uma irreprimível vontade de sobrevivência e crença no futuro, expressada na figura de uma criança sujeita a toda sorte de possibilidades de ofensa, desprotegida.

Feitosa: Prozac.

Francisco José Soares Feitosa, poeta cearense, nasceu em Ipu no dia 19/01/1944. Tem uma biografia um tanto diferenciada da maioria dos poetas: nele a poesia surge somente perto dos cinqüenta anos, inadvertidamente. Feitosa traz em sua poesia os gostos, as gentes, as cores e tudo o mais do nosso sertão.

Certa vez Sartre dissera que o que define a vida do escritor é a sua infância. Vendo Feitosa percebe-se que o existencialista estava certo: apesar de seu primeiro poema ter surgido em 1993, estava ali todo o poeta que vinha sendo gestado desde sua infância em Monsenhor Tabosa, no seminário de Sobral na adolescência e nas experiências da vida adulta.

Trazemos aqui exemplo desta obra em que Feitosa trata do fenômeno da esperança no mito da criança, imbuído, naturalmente, das peculiaridades de sua poesia mítico-épico-sertaneja.

O texto a que me refiro é denominado “No Céu tem Prozac”, poema datado de 12/07/1994, incluído em sua obra “Psi, a Penúltima”. O poema é o seguinte:

“Sob a ira de Zeus,/ o monge balbucia,/ entoam-se os mantras sagrados,/ aperta-se o cilício,/ o globo se equilibra,/ em peripécia/ e gira./ Adiam-se-lhe os minutos,/ ao gesto do amor,/ sacrifícios e devoções:/ êxtase de Margarida,/ êxtase de Madre Teresa,/ êxtase do Cura D’Ars,/ êxtase de irmã Dulce;/ gira e gira,/ sustida em piedade, Colunas de Hércules,/ Atlas da Fé – a destruição merecida -,/ gira e gira – adiada -/ a serviço do mal,/ sob o império do mal,/ o mundo gira e gira.../ Os santos vigiam e guardam, só eles;/ vigiai e orai!/- Mãe, no céu tem pão?/ Pois nem só de pão vive o homem:/ há que ter pão, do céu,/ ao espírito;/ há que ter pão, em cima da mesa,/ aos escolhidos;/ há que ter pão, debaixo da mesa,/ aos enjeitados;/ sempre existirão pobres convosco,/ migalhas a Lázaro;/ ao banquete, as libações:/ - saúde, muita saúde, coronel!/ Tem filhinho, muito pão,/ pão-doce, pão-seco, muit pão/ aquele/ bem gostoso/ durma, filhinho,/ amanhã, deixo você brincar,/ durma, meu amor./(...)/ -Tem mesmo, mãe, tem .../ de verdade,/ lá,/ no céu,/  tem pão?/ (em tom de ninar):/ desce gatinho,/ de cima do telhado,/ para ver o Francisquim/ dormir bem sossegado,/ desce, gatinho,/de cima do telhado,/ para ver o Francisquim/ dormir bem sossegado .../ Adormeceu:/ Dormiu/ Causa mortis:/ inanição,/ fome./ E dormimos,/ todos, / o sono dos justos/ In, in memoriam, / in, in infamiam,/ in, injustitiam:/ Prozac!”19.

O quadro é o mesmo de Summertime: uma criança submetida a toda sorte de perigos – o da fome talvez seja o menor deles -, uma canção de ninar, palavras de agonia misturadas às de esperança.

A crença de dias melhores se remete aos céus nas duas composições, “You gonna spread your wings...and you’ll take to the sky”, em Gershwin. Em Feitosa é demonstrada pela indagação de Francisquim: “Tem mesmo, mãe, tem .../ de verdade,/ lá,/ no céu,/  tem pão?”.

Sob essa ponte imagética é que se encontram os caminhos do poeta cearense e do músico norte-americano: alimentados ambos pelo símbolo da criança, erigem o império da emoção, da esperança!

Semelhanças: o arquétipo da criança, Isaías.

Nas duas composições, percebe-se o mito da criança desamparada, que se encontra presente em variados mitos e elaborações artísticas. Ela está na fundação lendária de Roma, com os irmãos abandonados e encontrados pela loba; está no mito do Zeus recém-nascido, preparando-se para matar seu pai, o tirano Crono; está no abandono de Moisés às águas do rio; está na ária “La mamma morta” da ópera Andrea Chénier, no ato III, de Umberto Giordano (“bruciava il loco de mia culla”); dentre outras tantas.

Jung dizia que uma das configurações essenciais do motivo da criança nos arquétipos é o de sua “futuridade”20. A criança é o futuro potencial, é o símbolo da união dos opostos, um mediador, arauto da cura. Por meio de seus feitos miraculosos equilibra-se a desproteção da criança, por isso, por muitas vezes ela aparece como o Deus-Criança ou como a Criança Herói21.

Nesse contexto surge a visão mais importante da Cristandade, o nascimento de Cristo, o messias. Veja-se como o Profeta Isaías, filho de Amós, em seu livro I, anuncia a vida do Emanuel (aquele que está perto de Deus):

“Pois por isso mesmo o senhor vos dará este sinal. Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e será chamado o seu nome Emanuel. Ele comerá manteiga e mel, até que saiba rejeitar o mal, e escolher o bem” (Capítulo 07, versículos 14 e 15)

É esse ser, vindouro, nem sequer nascido, anunciado como o filho de uma virgem, que representa a salvação:

“Ajuntai-vos, povos, e sereis vencidos, e vós todas as terras de longe ouvi: Incorporai as vossas forças e sereis vencidos, tomai as vossas armas e sereis vencidos: formai qualquer desígnio, e ele sairá frustrado: proferi alguma palavra de mando, e ela não será executada: porque Deus é conosco” (Capítulo 8, versículos 09 e 10).

O motivo, arquétipo, da criança desamparada é assim a mensagem, desde há muito tempo, gravada no Inconsciente coletivo, que alimenta a crença do homem no futuro. É um dos mais primitivos, senão o mais, dos sentimentos do homem. Nas palavras de Jung:

“É a personificação das forças vitais que estão fora de nossas mentes conscientes; dos caminhos e possibilidades de que nossa mente consciente unilateral não sabe nada; uma completude que abraça as várias profundidades da natureza. Ela representa a mais forte e inelutável ânsia em cada ser, a ânsia de se perceber como ser. (...) A ânsia e a compulsão de se auto-compreender é uma lei da natureza e, portanto, do poder invencível, até mesmo se sua efetividade, no início, seja insignificante e improvável”22.

À guisa de conclusão, não gostaríamos de retomar conclusões dispersas no decorrer da exposição, como é corriqueiro fazer, coligindo-as neste momento. Somente não nos podemos, contudo, furtar de agradecer a Gershwin e a Feitosa, na certeza de que, a semelhança do que Marcel Duchamp dissera, a obra de arte nunca é uma viagem solitária, nas pessoas dos quais também o fazemos a todos os demais criadores do gênero humano.

Sem esses místicos, loucos, gênios enfim, seria mais tormentosa e solitária a passagem do homem pela Terra.

 



1 SCHILLER, A Educação Estética do Homem, Tradução de Roberto Schwarz e Mário Suzuki, 3 ed, São Paulo, Iluminuras, 1995, P. 23.

2 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do Ocidente, tradução do italiano de Benôni Lemos, revisão de João Bosco de Lavor Medeiros, 4 ed, São Paulo, Paulinas, 1987, Volume 3, P.32.

3 apud KERÉNYI, Karl. Os Deuses Gregos. Tradução de Octávio Mendes Cajado, São Paulo, Cultrix, 1999, Pp.15 e 16.

4 Extraído da “Sessão sobre Ato Criativo”, da Convenção da Federação Americana de Artes, realizada na cidade de Houston, no Estado do Texas, em abril de 1957.

5 JUNG, Psicologia do Inconsciente, tradução de Maria Luiza Appy, 4 ed, Petrópolis, Vozes, 1985, publicado originalmente em 1916, p. 69.

6 JUNG, The Archetypes and the collective Unconscious, tanslated into English by R.F.C. Hull, 2 ed, New York, Princeton University Press, 1975, Bollingen Series XX, The Collected Works C. G. Jung, volume 9, part 1, p. 4, tradução do autor.

7 JUNG, Psicologia (...), p. 57.

8 JUNG, O Eu e o Inconsciente, tradução de Dora Ferreira da Silva, 5 ed, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 126.

9 JUNG, Psicologia (...), p.61.

10 JUNG, The Archetypes (...), p. 48.

11 JUNG, The Collected Works of C. G. Jung, volume 15, “The Spirit in Man, Art, and Literature”, translated into english by R.F.C. Hull, New York, Princeton University Press, 1975, p. 71.

12 JUNG, The Spirit (...), p. 71.

13 Idem, ibidem,p.82.

14 Idem, ibidem, p. 101.

15 Idem, ibidem, p. 101.

16 Idem, ibidem, p. 105.

18 Tradução do autor:

“É Verão ... e viver é fácil/ os peixes estão pulando e o algodão está alto/ seu pai é rico e sua mãe é muito bonita/ então calma meu amor e não chore/ Numa dessas manhãs você irá surgir cantando/ Você abrirá suas asas e subirá aos céus/ Mas até essa manhã não terá nada que te fará mal/ Com sua mãe e seu pai esperando por você”.

19 FEITOSA, Soares. Psi, a penúltima. Salvador: SEGES, 1997, p. 149 a 153.

20 Futurity, no original. The Futurity of the Archetype, In: Collected Works os C. G. Jung, tanslated into English by R.F.C. Hull, 2 ed, New York, Princeton University Press, 1975, Bollingen Series XX, The Collected Works C. G. Jung, volume 9, part 1, p. 164, tradução do autor.

21 Idem, ibidem, p. 165.

22 JUNG, The Invencibility of the Child, In: Collected Works os C. G. Jung, tanslated into English by R.F.C. Hull, 2 ed, New York, Princeton University Press, 1975, Bollingen Series XX, The Collected Works C. G. Jung, volume 9, part 1, p. 170, tradução do autor.

 

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William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

 

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Jorge Amado