Rafael
Barreto
A
Arte em Jung:
uma
análise do processo criativo a propósito de Soares Feitosa e
George Gershwin.
A
Feitosa, poeta sertanejo.
A
Gershwin, músico da cidade.
Intróito;
Caminhos ao universal, misticismo, loucura e a arte; Criação:
expressão do inconsciente, Jung; Gershwin: Summertime; Feitosa:
Prozac; Semelhanças: o arquétipo da criança, Isaías.
Intróito.
“Falarei
de um objeto que está em contato imediato com a melhor parte de
nossa felicidade e não muito distante da nobreza moral da natureza
humana”1,
dizia Schiller na Carta I, de importante obra sua em que se propunha
discutir a temática da Arte.
Não
só este, mais inúmeros outros autores andaram às voltas com este
tema, talvez pelo fato de dizer respeito de forma muito próxima ao
humano. Nossa preocupação aqui, portanto, junta-se a toda esta plêiade
de pensadores, sem querer lhes ombrear em certeza ou saber, que
alguma vez se indagaram sobre o fenômeno da Arte. Antes de
tratarmos mais detidamente de nossas intenções, lancemos mão de
subsídios à investigação a que propõe o título.
Em
Platão existe um desejo de vincular o fenômeno da Arte a um
aspecto mais metafísico. No Fedro, Platão estabeleceu a idéia do
Belo e da Arte em relação com a Teoria das Idéias e da
Imortalidade da Alma. Sua preocupação era, todavia, notadamente
pedagógica (aliás como todo o seu pensamento). Assim, sua teoria
estética nada tem de autônoma. Ele seria um esteta contrário à
estética pura.
De
modo semelhante, Aristóteles trata da criação artística em sua
“Arte poética”. A Arte seria oriunda da capacidade inata do
homem de imitar e do prazer que este tem ao apreciar as imitações.
As Artes se distinguem basicamente pelo fato de se utilizarem de
diversos meios e maneiras para imitar também objetos diversos. A
preocupação com a Arte é, aqui também, instrumental: a Arte
teria uma marca do senso moral, sempre buscando a essência interna
e ideal de todas as coisas, proporcionando um gozo intelectual. A
isso o Estagirita denominava de catarse (purificação ou purgação).
A
Arte passa com essa configuração à Idade Média em que o caráter
religioso era o suporte e o fim a ser buscado. Assim se manteve até
a chegada do Renascimento, em que se descobriu o aspecto próprio do
mundo estético. Coube ao napolitano Giambattista Vico, em sua Scienza
Nuova, expressar esse novo modelo. Para ele, a função da arte
consistia na perquirição acerca da parte sensível de um ser
inteligente (o homem) num nível de tal profundidade que a razão não
alcança. Por isso, ele dizia, que a obra de arte é dotada de
quatro caracteres: ela é fantástica, alógica, infantil e metafísica.
Essa
concepção metafísica da Arte aqui se fixa em definitivo no
pensamento dos estetas, formando a escola dos estetas puros, seguida
pelos românticos, idealistas e, de certa forma, pelo pensamento de
Jung que iremos analisar em tópico separado.
Schelling,
idealista alemão, em 1800, em seu “Sistema do Idealismo
Transcendental”, é expressão dessa crença. Com seus estudos,
desperta-se para um ponto interessante na averiguação estética: a
avaliação do aspecto do gênio artístico. Schelling cria que
somente o artista era capaz de representar o infinito de forma
finita, só ele seria capaz de revelar o artista desconhecido que
age sobre todo o universo2.
Hegel,
condiscípulo de Schelling, em sua “Fenomenologia do Espírito”,
completa o amigo, quando afirma que cabe à Arte expressar o
Absoluto de maneira sensível, sendo isso uma das supremas
atividades do espírito. Igualmente Benedetto Croce, em sua
“Filosofia do Espírito”, define a Arte como intuição (advinda
do contato imediato com o objeto) lírica (sentimento) do
particular, sendo a manifestação mais primitiva do espírito teorético,
não sendo utilitária, nem pelo lado prático nem pelo lado
intelectual.
Pelas
explicações precedentes, sentimo-nos inclinados a eleger o nosso
ponto de vista sobre a questão. Dizemos que o foco da análise aqui
expendida não nos foi arbitrariamente definido, mas, de certa
forma, até mesmo se nos impusera. Discutiremos aqui não o tema
mais amplo da Arte, ou do Belo, mas o processo do artista, no ponto
específico da possibilidade de sua comunicação com os demais
seres humanos. Queremos dizer: a investigação se concentra nas
condições de possibilidade de transmissão de um processo
intrinsecamente subjetivo de humano a humano.
Não
é este, contudo, o único ponto suscitado pela discussão que temos
pela frente. Outro ponto interessa: a perquirição acerca dos
motivos pessoais do artista, do seu impulso criativo. Em suma, qual
é a força que dá movimento à criatividade do artista, ao mesmo
tempo que o permite comunicar sua subjetividade.
A
busca dessas respostas parece ter a necessidade de adentrar mais
fundo na psique do que a mera investigação dos fatos que
circundaram a confecção desta ou daquela obra de arte.
William
Shakespeare tem encantado muitas gerações de leitores e
espectadores pela profundidade e universalidade de suas imagens,
desde o século XVII. Giacomo Puccini foi capaz de criar muitos dos
momentos mais belos e memoráveis da história da Ópera de todos os
tempos, dispondo do mesmo instrumental de tantos outros
compositores.
Billie
Holliday, com uma voz de extensão que não era nada notável, meio
rouca, tornou-se um dos mitos do Jazz para toda a eternidade,
ascendendo de sua condição de mulher negra e pobre. Brueghel
pintou toda uma série de trabalhos que retratavam a alma flamenca,
sendo considerado um dos gênios da pintura.
O
que move cada uma e todas essas pessoas? O que há de “mágico”
em seus trabalhos que desperta tamanho interesse em todos nós?
Apesar de preferirmos os termos da Estética Pura, parece mais passível
de encontrar respostas mais bem sucedidas quando essa análise busca
subsídios nas contribuições da Psicologia.
Neste
compasso, surge à mente a Teoria de Jung, com especial atenção
aos conceitos de Inconsciente Coletivo e Arquétipos.
A
pista inicial que Carl Gustav Jung fornece é relativa a imagens
primordiais, que povoam as psiques individuais, uma vez que povoam o
inconsciente coletivo. Isso explicaria a indagação que representou
o estopim de todo este trabalho: como é possível o
compartilhamento de emoções que têm, como representação,
imagens tão semelhantes por pessoas tão diversas, muitas das vezes
sem nenhuma possibilidade de relacionamento? O centro da discussão
é, em suma, esse compartilhamento, que representa a ponte, vamos
assim figurar, entre humanos.
Como
ponto específico, veremos o exemplo desse compartilhamento que
representa o móvel primeiro do trabalho: o arquétipo da criança
como símbolo da esperança e da capacidade de superação de obstáculos
imperiosos, presente na ária “Summertime” de George
Gershwin e no poema “No Céu tem Prozac”, de Soares Feitosa.
Caminhos
ao universal, misticismo, loucura e a arte.
Afirmamos,
juntamente com Hegel dentre outros, que a Arte seria uma forma de
ascender o homem a um plano de experiência mais absoluto. A explicação
do que esses termos significam nos remeterá diretamente ao tópico
seguinte. No presente tópico, ressaltamos que a experiência artística
não é única nesse resultado, nem talvez a mais bem sucedida.
Na
Cena II do Ato Segundo do “Hamlet” do Shakespeare, há como que
um elogio à loucura feita pela personagem Polônio. Ali afirma o gênio
de Stratfford-on-Avon que Hamlet apresenta extrema sensatez em sua
loucura, “felicidade que só acontece com a loucura e que nem a
mais sã razão e lucidez poderiam atingir com tanta sorte”.
Realmente, parece haver na loucura uma linha tênue de muita
proximidade com a genialidade, capaz de adentrar mais fundo no
humano do que o pensamento racional.
Igualmente
o aspecto místico se coloca na situação de mergulhar no homem,
sobretudo no seu aspecto da procura de sua raiz mais essencial.
Thomas Mann, em uma conferência sobre “Freud e o futuro”,
apresenta a seguinte definição do mito como o “(...) fundamento
da vida; (...) o padrão sem fim, a fórmula religiosa pela qual a
vida se modela que suas características são uma reprodução do
Inconsciente”3.
A experiência mística também se encontra preenchida dessa
capacidade arrebatadora da psique individual face à grandeza do
humano, profundamente considerado.
Por
último, já preparando o terreno para o próximo tópico, deixamos
para tratar da questão do processo artístico. O traço comum entre
esses três caminhos (loucura, misticismo e Arte) é a ausência das
amarras da racionalidade tradicional e cartesiana. Por meio deles o
homem se liberta, tal qual Ícaro em direção ao absoluto do céu.
Mas
como o lendário habitante do labirinto, filho de Dédalo, corre
também o humano o perigo de receber a pecha de incompreendido, nas
modalidades de gênio ou de louco.
O
diferencial do processo artístico é que não se trata de uma
“viagem” solitária como as demais. Marcel Duchamp (1887-1968),
artista francês dadaísta, dizia que “(...) o ato criativo não
é realizado pelo artista sozinho; o espectador traz o trabalho em
contato com o mundo exterior decifrando e interpretando sua
qualificação interna e a isso adiciona sua contribuição ao ato
criativo. Isso se torna ainda mais óbvio quando a posteridade dá o
veredicto final e alguma vezes reabilita artistas esquecidos”4.
Mas em que limite que o artista se acompanha do espectador? Além
disso, em que grau que está o artista acompanhado dos demais
artistas no seu processo de criação?
Criação:
expressão do inconsciente, Jung.
Carl
Gustav Jung (1875-1961) foi um expoente importante do pensamento
ocidental do século passado. Pensando basicamente a Psicologia,
Jung procurou uma releitura dos mitos, símbolos e arquétipos mais
profundamente arraigados na humanidade. Dessa forma, seu pensamento
terá o condão de sobreviver enquanto perdurar o interesse do homem
por esses temas, devido à profundidade e à coerência do raciocínio
engendrado por ele.
Discípulo
de Sigmund Freud, Jung optou, contudo, por palmilhar caminho próprio,
criando uma alternativa ao próprio mestre e a seu colega da escola
freudiana, Alfred Adler.
Para
Freud, a sexualidade exercia importância definitiva – alguns o
fazem dizer exclusiva até – sobre a complexa rede da consciência
humana, negligenciando atenção às demais instâncias.
Adler,
por sua vez, professava a vontade de poder, de posse, como o
elemento básico da formação da psique humana.
Jung
abandonando a unilateralidade da libido-Teoria do Eros de Freud e da
Teoria do Poder de Adler. A psique, conforme descrição de Jung,
lança suas raízes no inconsciente coletivo, elemento central de
sua teoria. Esse se caracteriza por um patrimônio hereditário de
idéias, ou de possibilidade delas, em que a psique humana encontra
sua fonte, além do inconsciente particular e consciente.
Num
pensamento tão bem estruturado e exposto, é que não se espante de
encontrar a relação entre Arte e o sentido de universal do homem.
Por força disso, é que se pretende fazer análise sumária acerca
de Jung, em busca de pistas da relação entre os objetos mesmos
deste artigo.
O
Inconsciente coletivo é, por assim dizer, a pedra central do
alicerce da Teoria de Jung. Ele é a ligação do seu pensamento com
tudo o que a humanidade já produzira acerca da busca da essência
primária do homem.
O
Inconsciente coletivo é entendido em contraposição com o
particular. O inconsciente como que conteria essas duas camadas: o
particular é formado pelas recordações infantis mais remotas; o
coletivo contem as recordações do período pré-infantil, dos
antepassados, incompletos, pois não foram vividos pessoalmente pelo
indivíduo5.
O
termo “Inconsciente coletivo” foi escolhido pelo fato de seus
conteúdos serem mais ou menos os mesmos em todos os locais e indivíduos:
eles são comuns em todos os homens, constituindo um substrato psíquico
comum6.
A
psique coletiva é formada por conteúdos que são incompletos,
conforme se disse antes, pelo fato de não se poder, nesse caso,
falar em aquisição pessoal. Assim, esses conteúdos não se
constituem em informações prontas e acabadas pela hereditariedade,
mas a capacidade de acessa-las é que é hereditária7.
Nessa
psique coletiva, abrigam-se todas as virtudes específicas e todos vícios
da humanidade e todas as outras coisas8.
Isso tudo fica abrigado na forma de arquétipos, as formas mais
antigas e universais da imaginação humana. Simultaneamente são
pensamento e sentimento. O arquétipo é definido com uma certa
aptidão para reproduzir essas imagens; se não as mesmas, pelo
menos de forma parecida. Eles se comportam empiricamente como forças
ou tendências a repetição das mesmas experiências9.
É algo que age sempre e em toda a parte.
Há
tantos arquétipos quanto há situações típicas na vida. Essa
formação é descrita no breve parágrafo seguinte: “Há tantos
arquétipos quanto há situações típicas na vida. Uma repetição
sem fim gravou essas experiências em nossa constituição psíquica,
não na forma de imagens preenchidas de conteúdo, mas primeiro como
formas sem conteúdo, representando meramente a possibilidade de um
certo tipo de percepção e ação. Quando uma situação ocorre que
corresponde a um arquétipo dado, aquele arquétipo se torna ativado
e uma certa compulsividade aparece, o que, com um guia instintivo,
ganha seu caminho contra toda a razão e vontade, ou então produz
um conflito de dimensões patológicas, o que vale dizer, uma
neurose”10.
Como
visto, esses arquétipos ficam guardados no Inconsciente coletivo até
que algo os desperte e os faça agir com influência irrevogável
sobre a individualidade. Essa última emerge juntamente com o
Inconsciente coletivo, fundidos um no outro. Surgem, nesse compasso,
os sonhos e as fantasias, cujas existências eram anteriormente
ignoradas. Eis uma chave para se buscar o entendimento da Arte em
Jung.
O
tema foi tocado pelo autor em dois momentos, ao que se tem notícia.
O primeiro num texto de 1931 – Da Relação da Psicologia Analítica
e a Poesia – e o segundo num de 1950 – Psicologia e Literatura.
Usaremos como base as versões em inglês constantes do volume 15
dos “The Collected Works of C. G. Jung”, denominado “The
Spirit in Man, Art, and Literature”, traduzido por R.F.C. Hull e
publicado pela Princeton University Press, em 1975.
Jung
parte da idéia de que o processo criativo da arte é uma atividade
psicológica, podendo ser apreciada a partir de um ângulo psicológico.
O ângulo que a Psicologia pode analisar é o da Arte enquanto
processo de criação artística, sendo interdito a este saber o que
a Arte é. Isso é objeto de estudo da Estética. Assim, o que se
pode esperar é uma explanação sobre o processo de criação da
Arte e não a Arte em si.
A
análise desse processo artístico não há de ser feita tendo como
base a mesma forma de análise usada para as neuroses em geral. Não
se pode reduzir um trabalho de arte a elementos principiológicos e
básicos que teriam feto derivar, causalisticamente, daí o processo
criativo. Tudo seria reduzido a repressões da libido, a traumas
sofridos na infância, dentre outras causas de neuroses.
Aqui
Jung se afasta mais do método de Freud. Em Freud o essencial é
coletar todas as pistas que apontam para o inconsciente e, por meio
da interpretação desse material, reconstruir o processo criativo.
O problema é que tudo ficaria reduzido a um primitivo nível de
sexualidade infantil reprimida. Nessa crítica, Jung deixou escrito:
“(...)
A técnica freudiana de interpretação, tanto quanto ela se coloca
sob a influência da sua hipóteses unilateral e errônea, demonstra
uma propensão bastante óbvia.
Para
fazer justiça a um trabalho de arte, a psicologia analítica deve
se livrar inteiramente do preconceito médico; por que uma obra de
arte não é uma doença e conseqüentemente requer uma aproximação
diferente do método clínico”11.
Mais
adiante, Jung dá uma idéia do que seria o processo de criação
artística: “De fato, o significado especial de uma obra de arte
reside no fato de que ela escapou das limitações da pessoalidade e
se colocou além dos limites dos interesses pessoais de sua criação”12.
Assim,
para Jung, o processo criativo não se deve somente a elementos psíquicos
de ordem pessoal; deve muito mais ao poder de imagens que surgem do
inconsciente, com um caráter caprichoso e com vontade própria.
Esse tipo de arte é o que é produzido sobre os símbolos, com a
psique livre de qualquer manifestação intencional do artista.
Pois
bem, esse artista faz uso daquele arsenal de imagens primordiais que
formam a herança comum da humanidade, ou seja, os arquétipos do
Inconsciente coletivo. É do impacto desses arquétipos que surgem
as grandes obras de arte, pois essa voz passa a soar com uma força
bem mais significativa do que a nossa.
Jung
conclui com as palavras seguintes:
“Esse
é o segredo da Grande Arte e do seu efeito sobre nós. O processo
criativo, na medida em que somos hábeis a segui-lo, consiste na
ativação inconsciente de uma imagem arquetípica e em uma elaboração
dessa imagem numa linguagem do presente e faz isso possível para
que encontremos nosso caminho de volta aos momentos mais profundos
da primavera de nossas vidas”13.
Essa
comunicação com o universal é possível, no caso do artista,
sustenta Jung no segundo texto referido, publicado em 1950, pelo
fato de que a pessoa criativa é uma dualidade ou síntese de
qualidades contraditórias14.
Como ser humano, ele pode ter intenções e vontade, além de fins
pessoais, mas como artista ele é o homem no sentido lato – ele é
o “homem coletivo”, um vínculo da vida psíquica inconsciente
da humanidade.
“Esse
é o seu trabalho e é algumas vezes tão pesado que o artista está
fadado a sacrificar a felicidade e tudo aquilo que faz a vida valer
a pena para o homem comum”15.
O
artista é um homem capaz de, por meio de seu trabalho, levar todos
os demais ao estado de participação na vida psíquica do coletivo.
“A
re-imersão ao estado de participação mística é o segredo da
criação artística e do efeito que a Grande Arte tem sobre nós,
por que não é o nível de experiência do indivíduo que conta,
mas a vida do coletivo. Isso se deve ao fato de cada grande obra de
arte é objetivo e impessoal, e profundamente tocante”16.
A
Grande Arte é aquela, portanto, que, lidando com os arquétipos,
transporta qualquer pessoa a um estado de participação mística na
psique coletiva, sendo profundamente tocante, indo ao fundo da essência
do homem. Não importa espaço, tempo ou todo o resto.
Gershwin:
Summertime.
Após
analisar Jung, veremos exemplo que demonstra essa ponte possível
entre homens por meio da Arte, com o uso das mesmas figuras arquetípicas.
O
primeiro caso nos veio pelo conhecimento da ária “Summertime”
da ópera “Porgy e Bess” de George Gershwin.
George
Gershwin, filho de emigrados russos, nascido no Brooklin em
26/09/1898, autodidata, tendo iniciado seus estudos aos 13 anos de
idade, converteu-se no maior dos compositores americanos. Faleceu em
11/07/1937 com um tumor no cérebro.
A
ópera se desenvolve em três atos, baseada no romance de DuBose
Heyward de 1924, do qual esse autor e sua esposa, Dorothy Heyward,
escreveram a peça chamada “Porgy”, em 1926. Desde 1922,
Gershwin queria transformar esse texto em ópera, realizando assim
sua grande ambição como compositor.
“Porgy
and Bess” estreou em 30/09/1935 em Boston e em 10/10/1935 na
Broadway. Por meio dela, o compositor põe em cena a vida cotidiana
de uma comunidade negra, nos anos 30, com seu submundo de álcool,
drogas e crimes. A originalidade se concentra não só no conteúdo,
mas também na forma, com a utilização do jazz na composição do
arranjo musical e do canto de toda a obra.
Summertime
é a mais conhecida canção desse repertório, havendo obras
escritas e sítios na internet dedicados especificamente a
ela17.
Summertime é cantada primeiramente, sendo aqui que se
concentra todo o potencial dramático do tema, por Clara, uma
soprano num personagem coadjuvante, como uma canção de ninar, logo
no início do primeiro ato, tendo como pano de fundo o bairro do Catfish
Row e seus habitantes. Após isso, interpreta-se a canção mais
umas três vezes no decorrer da ação.
Summertime
como canção de ninar é envolta numa aura de mistério, feitiço,
a um só tempo representando um canto de lamento e um hino à
esperança. Clara, tenta acalentar uma criança, dizendo-lhe e
prometendo-lhe coisas que não têm correlação com o plano geral
da situação de submundo das personagens. O texto da ária é o
seguinte:
“Summertime
... and the livin’ is easy/Fish are jumpin’... and the cotton is
high/ Your dad’s rich... and your ma´s good-looking/ So hush
little baby... don’t you cry/ One of these mornin’s...you gonna
rise up singing/ You gonna spread your wings...and you’ll take to
the sky/ But ‘till that morning...there ain’t nothin’ gonna
harm you/ With your mamma and dad ... standing bye/ Summertime”18.
Aqui
está expressa a idéia da esperança apesar de todos os obstáculos,
uma irreprimível vontade de sobrevivência e crença no futuro,
expressada na figura de uma criança sujeita a toda sorte de
possibilidades de ofensa, desprotegida.
Feitosa:
Prozac.
Francisco
José Soares Feitosa, poeta cearense, nasceu em Ipu no dia
19/01/1944. Tem uma biografia um tanto diferenciada da maioria dos
poetas: nele a poesia surge somente perto dos cinqüenta anos,
inadvertidamente. Feitosa traz em sua poesia os gostos, as gentes,
as cores e tudo o mais do nosso sertão.
Certa
vez Sartre dissera que o que define a vida do escritor é a sua infância.
Vendo Feitosa percebe-se que o existencialista estava certo: apesar
de seu primeiro poema ter surgido em 1993, estava ali todo o poeta
que vinha sendo gestado desde sua infância em Monsenhor Tabosa, no
seminário de Sobral na adolescência e nas experiências da vida
adulta.
Trazemos
aqui exemplo desta obra em que Feitosa trata do fenômeno da esperança
no mito da criança, imbuído, naturalmente, das peculiaridades de
sua poesia mítico-épico-sertaneja.
O
texto a que me refiro é denominado “No Céu tem Prozac”, poema
datado de 12/07/1994, incluído em sua obra “Psi, a Penúltima”.
O poema é o seguinte:
“Sob
a ira de Zeus,/ o monge balbucia,/ entoam-se os mantras sagrados,/
aperta-se o cilício,/ o globo se equilibra,/ em peripécia/ e
gira./ Adiam-se-lhe os minutos,/ ao gesto do amor,/ sacrifícios e
devoções:/ êxtase de Margarida,/ êxtase de Madre Teresa,/ êxtase
do Cura D’Ars,/ êxtase de irmã Dulce;/ gira e gira,/ sustida em
piedade, Colunas de Hércules,/ Atlas da Fé – a destruição
merecida -,/ gira e gira – adiada -/ a serviço do mal,/ sob o império
do mal,/ o mundo gira e gira.../ Os santos vigiam e guardam, só
eles;/ vigiai e orai!/- Mãe, no céu tem pão?/ Pois nem só de pão
vive o homem:/ há que ter pão, do céu,/ ao espírito;/ há que
ter pão, em cima da mesa,/ aos escolhidos;/ há que ter pão,
debaixo da mesa,/ aos enjeitados;/ sempre existirão pobres
convosco,/ migalhas a Lázaro;/ ao banquete, as libações:/ - saúde,
muita saúde, coronel!/ Tem filhinho, muito pão,/ pão-doce, pão-seco,
muit pão/ aquele/ bem gostoso/ durma, filhinho,/ amanhã, deixo você
brincar,/ durma, meu amor./(...)/ -Tem mesmo, mãe, tem .../ de
verdade,/ lá,/ no céu,/ tem
pão?/ (em tom de ninar):/ desce gatinho,/ de cima do telhado,/
para ver o Francisquim/ dormir bem sossegado,/ desce, gatinho,/de
cima do telhado,/ para ver o Francisquim/ dormir bem sossegado .../ Adormeceu:/
Dormiu/ Causa mortis:/ inanição,/ fome./ E dormimos,/ todos, / o
sono dos justos/ In, in memoriam, / in, in infamiam,/ in,
injustitiam:/ Prozac!”19.
O
quadro é o mesmo de Summertime: uma criança submetida a
toda sorte de perigos – o da fome talvez seja o menor deles -, uma
canção de ninar, palavras de agonia misturadas às de esperança.
A
crença de dias melhores se remete aos céus nas duas composições,
“You gonna spread your wings...and you’ll take to the sky”,
em Gershwin. Em Feitosa é demonstrada pela indagação
de Francisquim: “Tem mesmo, mãe, tem .../ de verdade,/ lá,/ no céu,/
tem pão?”.
Sob
essa ponte imagética é que se encontram os caminhos do poeta
cearense e do músico norte-americano: alimentados ambos pelo símbolo
da criança, erigem o império da emoção, da esperança!
Semelhanças:
o arquétipo da criança, Isaías.
Nas
duas composições, percebe-se o mito da criança desamparada, que
se encontra presente em variados mitos e elaborações artísticas.
Ela está na fundação lendária de Roma, com os irmãos
abandonados e encontrados pela loba; está no mito do Zeus recém-nascido,
preparando-se para matar seu pai, o tirano Crono; está no abandono
de Moisés às águas do rio; está na ária “La mamma morta” da
ópera Andrea Chénier, no ato III, de Umberto Giordano (“bruciava
il loco de mia culla”); dentre outras tantas.
Jung
dizia que uma das configurações essenciais do motivo da criança
nos arquétipos é o de sua “futuridade”20.
A criança é o futuro potencial, é o símbolo da união dos
opostos, um mediador, arauto da cura. Por meio de seus feitos
miraculosos equilibra-se a desproteção da criança, por isso, por
muitas vezes ela aparece como o Deus-Criança ou como a Criança Herói21.
Nesse
contexto surge a visão mais importante da Cristandade, o nascimento
de Cristo, o messias. Veja-se como o Profeta Isaías, filho de Amós,
em seu livro I, anuncia a vida do Emanuel (aquele que está perto de
Deus):
“Pois
por isso mesmo o senhor vos dará este sinal. Eis que uma virgem
conceberá e dará à luz um filho, e será chamado o seu nome
Emanuel. Ele comerá manteiga e mel, até que saiba rejeitar o mal,
e escolher o bem” (Capítulo 07, versículos 14 e 15)
É
esse ser, vindouro, nem sequer nascido, anunciado como o filho de
uma virgem, que representa a salvação:
“Ajuntai-vos,
povos, e sereis vencidos, e vós todas as terras de longe ouvi:
Incorporai as vossas forças e sereis vencidos, tomai as vossas
armas e sereis vencidos: formai qualquer desígnio, e ele sairá
frustrado: proferi alguma palavra de mando, e ela não será
executada: porque Deus é conosco” (Capítulo 8, versículos 09 e
10).
O
motivo, arquétipo, da criança desamparada é assim a mensagem,
desde há muito tempo, gravada no Inconsciente coletivo, que
alimenta a crença do homem no futuro. É um dos mais primitivos,
senão o mais, dos sentimentos do homem. Nas palavras de Jung:
“É
a personificação das forças vitais que estão fora de nossas
mentes conscientes; dos caminhos e possibilidades de que nossa mente
consciente unilateral não sabe nada; uma completude que abraça as
várias profundidades da natureza. Ela representa a mais forte e
inelutável ânsia em cada ser, a ânsia de se perceber como ser.
(...) A ânsia e a compulsão de se auto-compreender é uma lei da
natureza e, portanto, do poder invencível, até mesmo se sua
efetividade, no início, seja insignificante e improvável”22.
À
guisa de conclusão, não gostaríamos de retomar conclusões
dispersas no decorrer da exposição, como é corriqueiro fazer,
coligindo-as neste momento. Somente não nos podemos, contudo,
furtar de agradecer a Gershwin e a Feitosa, na certeza de que, a
semelhança do que Marcel Duchamp dissera, a obra de arte nunca é
uma viagem solitária, nas pessoas dos quais também o fazemos a
todos os demais criadores do gênero humano.
Sem
esses místicos, loucos, gênios enfim, seria mais tormentosa e
solitária a passagem do homem pela Terra.
1
SCHILLER, A Educação Estética do Homem, Tradução de Roberto
Schwarz e Mário Suzuki, 3 ed, São Paulo, Iluminuras, 1995, P.
23.
2
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do Ocidente,
tradução do italiano de Benôni Lemos, revisão de João Bosco
de Lavor Medeiros, 4 ed, São Paulo, Paulinas, 1987, Volume 3,
P.32.
3
apud KERÉNYI, Karl. Os Deuses Gregos. Tradução
de Octávio Mendes Cajado, São Paulo, Cultrix, 1999, Pp.15 e
16.
4
Extraído da “Sessão sobre Ato Criativo”, da Convenção da
Federação Americana de Artes, realizada na cidade de Houston,
no Estado do Texas, em abril de 1957.
5
JUNG, Psicologia do Inconsciente, tradução de Maria Luiza Appy,
4 ed, Petrópolis, Vozes, 1985, publicado originalmente em 1916,
p. 69.
6
JUNG, The Archetypes and the collective Unconscious, tanslated
into English by R.F.C. Hull, 2 ed, New York, Princeton
University Press, 1975, Bollingen Series XX, The Collected Works
C. G. Jung, volume 9, part 1, p. 4, tradução do autor.
7
JUNG, Psicologia (...), p. 57.
8
JUNG, O Eu e o Inconsciente, tradução de Dora Ferreira da
Silva, 5 ed, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 126.
9
JUNG, Psicologia (...), p.61.
10
JUNG, The Archetypes (...), p. 48.
11
JUNG, The Collected Works of C. G. Jung, volume 15, “The
Spirit in Man, Art, and Literature”, translated into english
by R.F.C. Hull, New York, Princeton University Press, 1975, p.
71.
12
JUNG, The Spirit (...), p. 71.
18
Tradução do autor:
“É
Verão ... e viver é fácil/ os peixes estão pulando e o algodão
está alto/ seu pai é rico e sua mãe é muito bonita/ então
calma meu amor e não chore/ Numa dessas manhãs você irá
surgir cantando/ Você abrirá suas asas e subirá aos céus/
Mas até essa manhã não terá nada que te fará mal/ Com sua mãe
e seu pai esperando por você”.
19
FEITOSA, Soares. Psi, a penúltima. Salvador: SEGES, 1997, p.
149 a 153.
20
Futurity, no original. The Futurity of the Archetype, In:
Collected Works os C. G. Jung, tanslated into English by R.F.C.
Hull, 2 ed, New York, Princeton University Press, 1975,
Bollingen Series XX, The Collected Works C. G. Jung, volume 9,
part 1, p. 164, tradução do autor.
22
JUNG, The Invencibility of the Child, In: Collected Works os C.
G. Jung, tanslated into English by R.F.C. Hull, 2 ed, New York,
Princeton University Press, 1975, Bollingen Series XX, The
Collected Works C. G. Jung, volume 9, part 1, p. 170, tradução
do autor.
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