Rodrigo Petronio
Elogio de Hilda Hilst
Quando Erasmo de Rotterdam, em 1509, escreveu o seu
Elogio da Loucura, onde a figura emblemática dessa deusa às avessas
sobe em um palco e desfila com muito humor toda a série de
conseqüências benéficas que seu influxo sobre os homens gera,
fazendo a sua autodefesa, creio que ele estivesse apenas deixando em
evidência os prazeres do paradoxo, além de reforçar de maneira
irônica a ambigüidade própria dos valores que norteiam as
sociedades. Vários séculos depois, temos a loucura novamente
personificada, mas em uma nova chave provavelmente não prevista pelo
humanista holandês. Nesse meio século de produção literária
ininterrupta, Hilda Hilst já nos presenteou com obras de uma
singularidade e uma força que dificilmente se repetirão em nossas
letras. Partindo de uma premissa que é teológica por princípio e
formal por decorrência, sua prosa e sua poesia são uma espécie de
dramatização consciente do Outro, que pode ser tanto a parte
irredutível da experiência mística e sua tensão permanente com a
linguagem quanto o ser Amado, aqui encarnado sob uma insígnia muito
semelhante à que encontramos na grande tradição sufi de Rûmî, Attar
e Hafiz, ou seja, na poética do esplendor e da iniciação. É assim
que o enigmático Qadós e a delicada Agda emergem da escrita: mais do
que personagens, são formas que se desenham na nossa percepção e
tentam nos remeter, no fluxo verbal fragmentado, a uma suposta
unidade supra-sensível, realizando um percurso inverso de
interpretação onde Deus cifra no mundo sua mensagem para que
possamos ler a sua prosa – a sua obra. Isso nos impede de aplicar
aos textos de Hilda o tão desgastado e sonífero ramerrão formalista
– e nos impede também de repudiarmos esses mesmos textos em
benefício de uma hipotética carência de significados de que eles
sofram. Espécie de espelho inverso, muito além do falso dilema entre
uerbum e res, entre as palavras e as coisas, cisão, aliás, que deu
origem à obtusidade da forma per si, que quer livrar-se a qualquer
preço da reificação que impingiu a si mesma, e à tagarelice de vozes
amorfas, a linguagem, para Hilda, é uma via de acesso à Coisa, que
tantos ascetas já tentaram predicar e definir sem sucesso, mas que,
nesse caso, se torna uma estrada ampla e fértil para a ficção.
Se a loucura é quem dá as chaves ou não, creio que
isso não interessa. Dona de uma poesia cristalina, que ora remete à
tradição elegíaca e amorosa grega e latina, como em Do Amor, Da
Morte e Odes Mínimas, ora desloca o sentido do ser amado para uma
dimensão quase alegórica, Hilda cumpre no artesanato verbal tudo
aquilo que quis mitificar e mistificar em torno de sua própria vida,
tornando assim ambas, mitificação e mistificação, inúteis. Se James
Joyce bebeu seu conceito de epifania em Vico, Tomás de Aquino e
Dante, e a partir deles deu um curso ao rio dos tempos,
equivalendo-os em punti luminosi unificados no grande Tempo, e
Guimarães Rosa partiu do Uno de Plotino para fazer a sua travessia
pelo sertão que é, a um só tempo, também o mundo, para quê ir buscar
no que é falível e singular em Hilda o que é muito maior que Hilda,
nascendo dela? Não é um debate escolástico, mas uma simples
constatação, por ironia e por acaso, escolástica. Porque a visão de
mundo que depreendemos da obra de Hilda nos remete sempre a uma
tradição que é, à primeira vista, de extração cristã, mas que se
estende para uma compreensão mais ampla dos fenômenos sensíveis e
esbarra no Deus panteísta dos antigos e no rito de outras
civilizações. E quando Tomás de Aquino diz que Deus participa, está
presente e se manifesta em todas as coisas, está retomando o nosso
velho Platão que cria que o Belo se atualiza em todas as coisas
belas, o que se assemelha muito, pela negativa e pelo escárnio, à
nossa autora, quando ela diz que Deus está até no mijo e no escarro,
e assim relê, talvez inconscientemente, o santo e o filósofo:
fazendo a sua contrafacção. Nesse percurso é que Hilda situa sua
ficção e sua poesia: nesse meio-fio onde o que se diz é mero indício
de um não dito maior e inatingível, e o que se nomeia é e sempre
será a sombra pálida do Verbo com que Deus nomeou inicialmente, mas
ainda hoje se esconde atrás de máscaras para que perscrutemos a sua
presença. Uma hora ele é o Cão de Pedra, outra o Grande Obscuro.
Está sempre mudando, como esta escrita fluída e suas metamorfoses,
mas é sempre idêntico a si mesmo. Afinal, ele nunca se move de si.
A obra completa de Hilda está sendo relançada pela
editora Globo, sob a batuta de Wagner Carelli e a curadoria de Alcir
Pécora, o que despensa quaisquer comentários sobre a qualidade desse
feito. Ela, como Herberto Helder, pertence à tradição de uma alta
modernidade que em nada transige com essa repetição infinita de
cacoetes modernistas que nos acomete e aborrece todos os dias. Sua
escrita é um dos feitos mais estimulantes e bem resolvidos que temos
hoje em nossas letras, tanto do ponto de vista conceitual quanto
técnico. E Hilda? Vai continuar sendo louca? Quererá continuar
fazendo o elogio de si mesma? Dirá que está esquecida e mal lida? Ou
falará mais alguma coisa sobre o seu desbunde sexual? Há um abismo
entre a religião e o mito, Hilda. Tudo isso é desnecessário. Apenas
os loucos de pedra não sabem o valor de sua obra.
Leia a obra de Hilda Hilst
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